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Processo n.º 504/02
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi condenado, por acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de ---, de 9 de Maio de 2001, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, conjugado com o artigo 202.º, alínea a), do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão e no pagamento ao lesado B. da indemnização de 3 250 000$00, sendo 3 000 000$00 correspondentes à quantia titulada pelo cheque e 250 000$00 a título de danos não patrimoniais, com suspensão da execução daquela pena por 3 anos sob condição de o arguido pagar a indemnização arbitrada, no prazo global de 2 anos e em 3 prestações (de 8 em 8 meses, a contar do trânsito), sendo as 2 primeiras de 1 000 000$00 cada e a
última relativa ao restante.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de
Évora, suscitando, na respectiva motivação, além do mais, as questões de, ao ser recusada a realização de prova pericial ao cheque, se ter violado o artigo
32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e de, ao criminalizar-se a emissão de cheques sem provisão e ao condicionar-se a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização ao lesado, se camuflar uma “prisão por dívidas”, constituindo esta aplicação dos artigos 11.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, e 51.º do Código Penal violação do disposto nos artigos 8.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP.
Por acórdão de 16 de Abril de 2002, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, salvo quanto à indemnização por danos não patrimoniais, que foi revogada. Relativamente à questão da não realização de exame pericial ao cheque, consignou-se nesse acórdão:
“O arguido põe em causa a omissão da realização do exame pericial por si requerida, alegando a verificação de uma nulidade insanável.
Todavia, tal diligência, no caso de ter sido requisitada, por útil para a descoberta da verdade, pelo tribunal a quo, o que não acontece, seria um elemento de prova a juntar aos demais.
A convicção do julgador a quo poderia divergir do juízo contido no parecer dos peritos, devendo, então, fundamentar a divergência, nos termos do artigo 163.°, n.º 2, do CPP.
Acresce que, sobre tal questão se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 1997, proc. n.º 315/97-5.ª, referindo: «O artigo 151.º do CPP não impõe, em termos de obrigatoriedade absoluta, o deferimento da realização de perícias. Existe para o efeito uma margem de discricionariedade legal, em ordem a permitir uma recusa que se mostre justificada, o que sucederá, nomeadamente, quando a realização da diligência não se mostre essencial para a descoberta da verdade. Compete em exclusivo ao tribunal de instância ajuizar da necessidade da realização de determinada perícia, sendo que tal tipo de decisão, por extravasar os seus poderes de cognição, não é sindicável pelo STJ.»
O M.mo Juiz de Instrução, no douto despacho de fls. 72, datado de 13 de Junho de 1996, indeferiu – e bem – a realização de tal diligência.
E apesar de o arguido ter requerido, de novo, a realização de tal diligência na contestação, a verdade é que, no douto despacho de fls. 146 e
147, por ter sido reputada irrelevante e supérflua relativamente à decisão da causa, foi indeferida a realização desse exame pericial ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 340.° do CPP.
O arguido não impugnou tal decisão, aparentemente, aceitou tal indeferimento.
Contudo, caso se considerasse tal diligência essencial para a descoberta da verdade e enquadrável a sua omissão na previsão do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, o certo é que tal nulidade se mostraria sanada, pois o arguido conformou-se com o indeferimento dessa diligência, pois não arguiu essa nulidade nos momentos oportunos para esse fim, expressos na lei, conforme preceitua o artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e c), do mencionado compêndio adjectivo.
Portanto, não existe qualquer nulidade, nem se vislumbra violação das garantias de defesa do arguido, nem se mostra violado o artigo 32.º da CRP.”
E, quanto ao condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização arbitrada ao lesado, ponderou-se:
“Dir-se-á que o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal revisto prevê expressamente a possibilidade de a suspensão da execução da pena de prisão ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado a reparar o mal do crime, nomeadamente: «a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado...».
Não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade no preceito, parecendo, pelo contrário, que com o mesmo se pretende fazer justiça.
A situação sócio-económica do arguido ficou minimamente apurada: «O arguido é casado, tem como habilitações a 6.ª classe e é industrial de cortiça, no que é coadjuvado por sua mulher. Possui uma fábrica de cortiça, na qual laboram 2 trabalhadores.»
Dado o valor indemnizatório, o tempo fixado para o pagamento e a situação sócio-económica do arguido, mostra-se justa e adequada tal imposição.
Como é referido no douto parecer do Ministério Público junto desta Relação, «tal é a orientação que vem sendo sufragada pela jurisprudência, como decorre, entre outros, dos seguintes acórdãos: Acórdão da Relação de Évora, de
12 de Janeiro de 1993, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 423, pág. 630: “A lei permite a suspensão da execução da pena condicionada ao pagamento ao ofendido duma quantia determinada, ainda que não haja sido formulado pedido de indemnização”; Acórdão da Relação do Porto, de 10 de Janeiro de 1996, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 453, pág. 568: “Mesmo nos casos em que não existe pedido civil, é legal condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento de uma indemnização à vítima”; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 1998, publicado na Base da Dados da DGSI sob o n.º SJ1998070 1 0005173:
“A reparação pelo arguido do prejuízo causado ao lesado constitui uma das vias adequadas e proporcionais à satisfação das exigências de prevenção geral, o que favorece o juízo de prognose, que constitui o pressuposto material da suspensão da execução da pena”.»
Improcedem, assim, as conclusões V a X vertidas na motivação de recurso.”
É deste acórdão que, pelo arguido, vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade:
– “do artigo 11.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, ou quando conjugada com o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal”; bem como
– “da douta sentença ao declarar suprida a nulidade de vício na produção de prova requerida pelo recorrente com a sua contestação para realização de perícia, secundando-se, para tal, no artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e c), do CPP, norma essa que, a ser certa tal interpretação, é contrária à CRP”.
Mais consignou, no requerimento de interposição do recurso, que “a referida norma do artigo 11.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º
316/97, de 19 de Novembro, viola, entre outros, os artigos 8.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, e com eles os Princípios do Direito Internacional Geral e da Liberdade” e que “a referida fundamentação da sentença no artigo 120.º, n.º
3, alíneas a) e c), viola o artigo 32.º da CRP”, referindo que a questão de inconstitucionalidade fora suscitada na motivação do recurso para o Tribunal da Relação.
No Tribunal Constitucional, o primitivo Relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do recurso, por entender faltar “um pressuposto processual específico do tipo de recurso utilizado pelo recorrente, pois não há uma arguição de inconstitucionalidade normativa durante o processo, feita de modo processualmente adequado perante o tribunal de relação, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, como é exigência do n.º 2 do artigo
72.º da Lei n.º 28/82, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro”.
O recorrente reclamou desta decisão sumária para a conferência, que, pelo Acórdão n.º 480/2002, ordenou o seguimento do recurso para alegações.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“I – O artigo 11.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, actualizado pela versão que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, ao sujeitar à acção e sanção penal a emissão e entrega de um cheque que se destine ao pagamento de uma dívida actual baseada em negócio jurídico, padece de vício de inconstitucionalidade;
II – Tal inconstitucionalidade resulta da consagração legal, efectiva e inconsentida de uma autêntica «prisão por dívidas» contrária à nossa tradição jurídica e especialmente às normas e princípios do Direito Internacional Geral ou comum em que Portugal se insere, constituindo violação dos artigos 8.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2 , da CRP;
III – Modestamente se entende, aliás, que no caso concreto tal vício se torna mais evidente, face à suspensão da sanção penal decretada ao recorrente secundada no artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, ou seja, na condição de pagamento por parte do recorrente, tanto mais que nem sequer se apura nem demonstra (como se constata da douta sentença recorrida e a proferida em 1.ª instância e como obriga o n.º 2 do mesmo artigo do CP), que o arguido disponha de condições efectivas para cumprir a referida condição e, com isso, possa evitar a pena de privação da liberdade;
IV – O artigo 27.º, n.º 3, da CRP, de resto, ao estabelecer o elenco das situações em que a lei pode prever a sanção da privação da liberdade, em caso algum concede que essa possa decorrer da falta de meios pecuniários do arguido para a garantir.
V – Ainda sobre a inconstitucionalidade do artigo 11.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, conjugado ou não com o mencionado artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, diga-se que até mal se perceberia que o legislador isente de penhora o devedor com falta de meios que tenha entrado em inadimplemento (artigo 824.º, n.º 3, do CPC) e, pelo contrário, não tenha tido superior entendimento exigência [sic] no que respeita à privação da liberdade resultante de ilícitos penais.
Com o que não será despiciendo invocar que uma tal tese acrescidamente violaria o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, o qual se encontra consagrado no artigo 13.º da CRP.
VI – Noutro ponto nos parece que a douta sentença recorrida lesa a Constituição.
Na verdade, tendo o recorrente e arguido por diversas vezes suscitado a perícia do cheque nos autos controvertido a fim de apurar se o mesmo foi ou não emitido de forma pré-datada (elemento do tipo legal que, a obter resposta afirmativa, excluiria a ilicitude do acto), certo é que a mesma lhe foi sucessivamente negada, mormente por omissão de pronúncia.
VII – Sustenta o douto acórdão recorrido, em desabono da pretensão do recorrente, que deixou precludir no iter processual o direito a arguir a nulidade da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, já que, de acordo com o n.º 3, alíneas a) e c), do mesmo artigo, o deveria ter feito até aos momentos nessas alíneas previstos.
VIII – Ora, até de acordo com o artigo 340.º do CPP, o Tribunal, mesmo o de recurso, sempre que esteja em causa prova que possa contribuir para a descoberta da verdade material, deve consentir a sua efectivação, mesmo para além dos prazos ou momentos fixados no supramencionado artigo 120.º, n.º 3, do CPP, como assim bem o entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Évora (Acórdão de 2 de Maio de 2000, registado sob o n.º 60) no primeiro recurso do arguido e que, infelizmente, não demoveu o M.mo Juiz da 1.ª instância a ordenar a requerida perícia.
IX – O artigo 120.º, n.º 3, do CPP, atenta a interpretação preclusiva ou restritiva da descoberta da verdade material como adopta o Tribunal recorrido, padece de inconstitucionalidade, devendo ter sido recusada a sua aplicação já que constitui uma mitigação inadmissível do direito de defesa guindado a bem jurídico fundamental no artigo 32.º da CRP .
Termos em que devem, por conseguinte, julgar-se inconstitucionais – e recusada a sua aplicação no caso concreto – as normas contidas nos artigos
11.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na versão dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 11 de Novembro, em conjugação, ou não, com o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por violação dos artigos 8.º, n.º 1, 27.º e até 13.º da CRP, bem como o artigo 120.º, n.º 3, do Código do Processo Penal Português, na interpretação restritiva que lhe deu o Tribunal recorrido, dado que viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1.° – São inteiramente conformes à Lei Fundamental as normas que tipificam como crime a emissão de cheque sem provisão e admitem que a suspensão da pena de prisão seja condicionada ao ressarcimento do ofendido.
2.º – Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional o regime processual que leva a considerar precludida uma alegada insuficiência instrutória, como decorrência de o arguido não a ter suscitado atempadamente e se ter conformado com a decisão judicial que expressamente a rejeitou, por inútil.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão da inconstitucionalidade da criminalização da emissão de cheque sem provisão foi apreciada pelo plenário do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 663/98 (Diário da República, II Série, n.º 12, de 15 de Janeiro de 1999, pág. 592; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41.º vol., pág. 457), tendo, por unanimidade, decidido não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 11.º, 11.º-A, 12.º, 13.º, 13.º-A e 1.º-A do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro. É orientação que ora se reitera – relativamente
às normas, em causa no presente recurso, do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), e 2, do referido diploma, na aludida redacção –, e cuja fundamentação está sintetizada no seguinte sumário:
“I – Identificado o princípio constitucional relevante para a questão de constitucionalidade suscitada, ancorado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, desnecessário se torna averiguar da violação de norma idêntica eventualmente contida no direito internacional geral e das questões de violação indirecta da Constituição (n.ºs 1 e 2 do artigo 8.º).
II – Deve entender-se que as normas penais em questão sobre os vários tipos de crime de emissão de cheque sem cobertura não violam o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicada pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição).
III – Há duas espécies de bens jurídicos que têm sido protegidos pela incriminação da emissão de cheques sem provisão: os patrimónios do tomador e dos giratórios e a fé pública na validade do cheque como título de crédito abstracto em circulação. Os vários regimes jurídicos que se sucederam diferiram na importância relativa de uma e de outra espécie de bem jurídico. O actual regime do Decreto-Lei n.º 316/97 dá clara prevalência à primeira espécie de bens jurídicos, acentuando, por isso, as semelhanças com a burla.
IV – Reconhecer, perante a nova redacção dada ao artigo 11.º e a introdução do n.º 2 do artigo 11.º-A pelo Decreto-Lei n.º 316/97, que o crime de emissão de cheque sem provisão é, por força deste último decreto-lei, um crime primariamente contra o património não implica, porém, a conclusão de que o regime é inconstitucional, por ofensa da proibição da prisão por dívidas. É que um dos princípios constitucionais que fundamentam a proibição da prisão por dívidas é o princípio da culpa, que poderá ter sofrido alguns «maus tratos» num entendimento «formal» do crime de emissão de cheque sem provisão, com a consequente irrelevância da relação jurídica subjacente e das circunstâncias de facto objectivas e subjectivas, intercedentes entre o subscritor e o apresentante. Não os sofre, certamente, se for entendido, como deve, como crime de dano doloso contra o património, sem prejuízo do relevo que tem no seu regime a protecção da confiança na circulação do cheque.”
Este entendimento foi reafirmado, no que respeita ao artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do diploma em causa, na aludida redacção, pelo Acórdão n.º 596/99 (Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de
2000, pág. 3600; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 491, pág. 5; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º vol., pág. 273) e agora de novo se reitera, o que conduz à improcedência da primeira questão de inconstitucionalidade suscitada.
2.2. A questão da constitucionalidade do condicionamento da suspensão da execução de pena de prisão ao pagamento de indemnização ao ofendido também já foi objecto de anteriores decisões deste Tribunal.
Assim, no Acórdão n.º 440/87 (Diário da República, II Série, n.º 39, de 17 de Fevereiro de 1988, pág. 1497; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, pág. 178; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º volume, pág. 521), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva, o seguinte:
“(...) nos termos do artigo 50.º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v. g., o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» (artigo 49.º, n.º 1, alínea a), primeira parte). Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a prática de um «facto punível» (artigo 48.º do Código). Como se escreveu no acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena era apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal pelo citado artigo 50.º para o caso de, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença: – na verdade, “conforme os casos”, podia o tribunal, em vez de revogar a suspensão, “fazer-lhe (ao réu) uma solene advertência» (alínea a)), «exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» (alínea b)) ou «prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano» (alínea c)).”
Por outro lado, no já citado Acórdão n.º 596/99, o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo
51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (já na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março – que é a relevante para o presente recurso), na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea». Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se extrai do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, traduz uma violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição). Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.”
Este entendimento foi reiterado no Acórdão n.º 305/01
(Diário da República, II Série, n.º 268, de 19 de Novembro de 2001, pág. 19
139; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 715) e recentemente reafirmado em casos em que estava em causa a imposição directa pelo legislador desse condicionamento, no artigo 11.º, n.º 7, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, e/ou no artigo
14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho: cf. Acórdãos n.ºs 256/2003 (Diário da República, II Série, n.º
150, de 2 de Julho de 2003, pág. 9872), 335/2003 e 376/2003 e Decisão Sumária n.º 205/2003.
Essencialmente pelas razões expendidas no Acórdão n.º
596/99, acima reproduzidas, julga-se improcedente a segunda questão de inconstitucionalidade suscitada.
2.3. Por último, quanto à questão da inconstitucionalidade de alegada omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade, que o recorrente ancora em interpretação que terá sido feita, no acórdão recorrido, à norma do artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal (“3. As nulidades referidas nos números anteriores
[nulidades dependentes de arguição, entre as quais a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade – alínea d) do n.º 2] devem ser arguidas: a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado; (...) c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito; (...).”), a mesma surge como manifestamente improcedente.
Desde logo, nada na Constituição obsta a que o legislador imponha ao arguido o ónus de suscitar atempadamente determinadas invalidades processuais. A este propósito, ponderou-se no Acórdão n.º 192/2001
(Diário da República, II Série, n.º 163, de 17 de Julho de 2002, pág. 12 701; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 295):
“Sobre a matéria da prova, cuidou a CRP de estabelecer um conjunto de nulidades processuais, assim directamente impostas ao legislador ordinário e a qualquer processo penal em concreto, sem necessidade de mediação de outro diploma legal, a saber «todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (artigo 32.º, n.º 8).
Nesta matéria, e ressalvados os casos expressamente previstos na CRP, e à luz do princípio da ponderação de interesses, “há-de identificar[-se] uma área mais ou menos extensa em que os direitos individuais poderão ser sacrificados em sede de produção e valoração da prova, em nome da prevenção e repressão das manifestações mais drásticas e intoleráveis da criminalidade», como escreveu Costa Andrade (Sobre as proibições de prova em processo penal, pág. 28).
A par das proibições de prova – cujos destinatários privilegiados são as autoridades judiciárias – e atento o primado da descoberta da verdade material, assume especial relevo a figura da «invalidade», concebida como a principal sanção da inobservância das pertinentes disposições processuais, o que não se identifica, nem tão-pouco significa a sua total ineficácia. A doutrina e a jurisprudência são unânimes no entendimento de que um acto processual inválido é susceptível de produzir efeitos que podem ser destruídos mediante a utilização de mecanismos processuais adequados à gravidade do vício e às exigências de justiça e eficácia processual, podendo ser anulados, declarados nulos ou ineficazes.
Ora, ressalvadas as proibições expressas no citado artigo 32.º, n.º
8, a CRP deixa ao legislador uma considerável margem de liberdade de conformação, legislador esse que, balizado no princípio da proporcionalidade, consagrou um regime de invalidades segundo o qual quanto maior for a gravidade do vício de que enferma o acto, maior deve ser a sanção processual aplicável e menor a possibilidade de sobrevivência do acto praticado (nulidades progressivas) e em que os casos mais graves são enumerados expressa e restritivamente, ao lado de uma cláusula geral válida para as outras situações
(cf. João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Studia Juridica, n.º 44, Coimbra, 1999, pág.
194).
Trata-se, portanto de um domínio em que a protecção dos direitos individuais – que avulta na criação dos mecanismos que conduzem à destruição dos efeitos produzidos pelos actos inválidos (nulidades insanáveis) – se contrapõe aos fins de realização da justiça penal e ao restabelecimento da paz jurídica que assentam na conservação desses mesmos actos.
O regime da invalidade, no CPP, completa-se com a disposição do artigo 122.º onde se estabelece a comunicação do vício do primeiro acto aos sucessivos, mas procurando circunscrever os seus efeitos aos que daquele dependem ou por ele sejam afectados e se determina que o juiz, uma vez declarada a invalidade, os actos em concreto inválidos e os actos ineficazes originária e subsequentemente, determine a repetição – se necessária e possível
– de alguns desses actos; por último, segundo o mesmo preceito, o juiz aproveita os actos que ainda puderem ser salvos do efeito do acto inválido.
Sinteticamente delineado o regime processual penal da invalidade, regressemos ao caso dos autos.
Como se referiu, a invalidade verificada consistiu na omissão de apreciação/validação imediata das buscas não domiciliárias efectuadas e comunicadas ao juiz de instrução, que o Tribunal a quo qualificou de nulidade.
Trata-se, com efeito, de nulidade substancialmente diversa das nulidades enumeradas no artigo 32.º, n.º 8, da CRP e que o acórdão recorrido considerou sanável ainda que decorrido determinado lapso de tempo.
Tendo como parâmetro de constitucionalidade o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, atender-se-á a que, na expressão «todas as garantias de defesa» se
«engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 202); e a que, como se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º
17/86, in Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1986, o núcleo essencial das garantias de defesa se consubstancia no próprio direito de defesa e «impõe-se em toda a sua plenitude, a partir do momento em que é admitida no processo penal a possibilidade de aplicação de uma norma incriminadora a alguém que adquire o estatuto de arguido. Outro não pode ser o seu alcance: ao garantir a defesa do arguido, necessariamente a assegura ao longo de todo o iter processual em que este estatuto se conserve». Ora, não se vislumbra em que medida a sanação a posteriori da nulidade consubstanciada na omissão de validação imediata de buscas não domiciliárias conflitue com essas garantias de defesa, tendo especialmente em conta que, no caso, e em contrário do alegado pelo recorrente, a busca foi imediatamente comunicada ao juiz de instrução (facto que é dado como assente no acórdão recorrido – fls. 147).”
Mas, no presente caso, o fundamento da decisão recorrida, no aspecto ora em apreço, não consistiu, em rigor, no facto de considerar sanada certa nulidade processual por o recorrente não a ter atempadamente arguido, mas antes de sobre a pretensão de realização de prova pericial ter recaído decisão judicial expressa de rejeição, que, por não impugnada tempestivamente, transitou em julgado. Na verdade, tendo o arguido requerido, no requerimento de abertura de instrução, a recolha de autógrafos seus e do queixoso a fim de determinar posteriormente no Laboratório de Polícia Científica a autoria da letra aposta no cheque participado (fls. 68 verso), tal diligência foi indeferida por despacho de 13 de Junho de 1996 (fls.
72), por não se revelar qualquer utilidade na sua realização, “uma vez que das declarações prestadas, quer pelo queixoso, quer pelo arguido, em sede de inquérito, resulta claro que o cheque foi entregue sem data (cf. fls. 11 e 25) e que tal elemento lhe foi aposto pelo próprio queixoso (cf. fls. 35 e 36)”, acrescendo que “nem o contrário vem mencionado na acusação, que apenas alude a um acordo entre queixoso e arguido relativamente à data a apor”, pelo que “não há qualquer dúvida a dissipar através da diligência requerida”. E tendo o recorrente, na contestação (fls. 135 a 140), reiterado aquela pretensão, agora com a invocação da finalidade de, além de determinar a autoria da letra que preencheu o cheque e da que o datou, apurar a existência de algum estado de perturbação ou medo na letra que preencheu o cheque, por despacho de 27 de Março de 1998 (fls. 146 e 147) foi a mesma indeferida, por não persistirem dúvidas (até por confissão do próprio) de que foi o recorrente quem preencheu o cheque, por não estar em causa quem lhe apôs a data (se o arguido, se o queixoso), pois o que relevava na pronúncia era que essa data havia sido aposta
“por acordo entre o arguido e o ofendido”, e por dificilmente se poder concluir de exame pericial à letra constante do cheque se este foi emitido sob um estado de perturbação ou medo, para além de o arguido poder fazer a prova de tal factualidade por outros meios. Deste despacho o arguido não interpôs recurso, pelo que sobre o nele decidido se constituiu caso julgado, e foi com este fundamento que, determinantemente, o acórdão recorrido indeferiu a pretensão do recorrente.
Surge, assim, como manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, tendo por objecto as normas que regulam a sanação de nulidades por falta de atempada arguição.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos