Imprimir acórdão
Processo n.º 599/03
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. impugnou judicialmente a liquidação de IRS, referente ao ano de 1996, pedindo a respectiva anulação com fundamento em ilegalidade. Alegou, em síntese, não ter sido considerado por parte da Administração Fiscal que a impugnante sofre de incapacidade em grau igual ou superior a 60%, o que lhe confere direito aos benefícios fiscais consagrados na lei.
Pela sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Viana do Castelo de 25 de Setembro de 2000, de fls. 48 e seguintes, a impugnação foi julgada integralmente improcedente. O tribunal, depois de observar que apenas estava em causa saber se a referida incapacidade se encontrava ou não
«”devidamente comprovada pela entidade competente” mediante a apresentação do atestado médico junto aos autos», emitido de acordo com o regime legal anterior ao que foi considerado aplicável, que é o que foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro e instruções anexas, entendeu que não e que, portanto, a impugnação tinha de improceder.
2. Inconformada, a impugnante interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo, o qual, por acórdão de 12 de Março de 2002, constante de fls. 79 e seguintes, concedeu provimento ao recurso e anulou a liquidação impugnada.
Em síntese, o Tribunal Central Administrativo concluiu que o Decreto-Lei n.º 202/96 não era aplicável aos processos de avaliação já concluídos à data da sua entrada em vigor; que, nessa mesma data, “já havia nascido (...) o direito ao benefício fiscal aqui em causa, porque já se encontrava comprovada a factualidade descrita na hipótese legal (...) pelo (...) atestado médico, passado pela entidade competente, no domínio da lei anterior e de acordo com esta, comprovativo de um grau de incapacidade relevante para o efeito”.
3. Veio então a Fazenda Pública recorrer para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 30º, 72º, 73º e 74º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 131º, n.º 3, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, invocando oposição de julgados e indicando como acórdão fundamento “o Acórdão de 5 de Dezembro de 2000, Rec. N.º 4236/00”.
Nas contra-alegações de recurso então apresentadas, A. veio invocar a inconstitucionalidade da aplicação, por via do disposto no n.º 2 do artigo 7º respectivo, da aplicação do regime definido pelo Decreto-Lei n.º 202/96 a processos de avaliação de incapacidade já findos, como seria o caso. Verificada a oposição, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Maio de 2003, de fls. 148, concedeu provimento ao recurso, revogando o acórdão então recorrido e determinando que ficava “a valer a sentença da 1ª Instância, que julgou improcedente a impugnação, mantendo-se assim a liquidação impugnada”, nos seguintes termos:
«(...) Está em causa, como dissemos, o IRS de 1996. Estamos assim já em plena vigência do DL 202/96, de 23/10. Ora, como se escreveu no Acórdão deste STA de 17/05/00, cuja doutrina seguiremos de muito perto, por merecer a nossa inteira concordância, o dito diploma veio estabelecer um regime de avaliação de incapacidades das pessoas com deficiência, para efeito de acesso das mesmas às medidas e benefícios previstos na lei, com normas próprias para tal avaliação e diferentes das anteriores. Reconhece-se, de acordo com o respectivo preâmbulo, a necessidade tanto de explicitar a competência para avaliação de tal incapacidade, com relação às pessoas com deficiência, como de criar normas de adaptação da anterior TNI, tornando-se pois necessário proceder à actualização dos procedimentos adoptados no âmbito de tal avaliação. Nos termos desta TNI só releva agora a 'disfunção residual', pelo que o coeficiente de incapacidade deve ser encontrado apenas após a aplicação dos respectivos meios de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros), sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na tabela – n.º 5, al. e). Exigência que não constava da lei anterior (Lei n.º 9/89, de 2/5) nem da TNI aprovada pelo dito DL 341/93, cujas Instruções Gerais dispunham – n.º 5, al. c)
– que, quando a função fosse substituída, no todo ou em parte, por prótese, a incapacidade poderia ser reduzida, consoante o grau de recuperação da função e da capacidade de ganho do sinistrado, não podendo, porém, tal redução, ser superior a 15%. Ora, o atestado apresentado pela impugnante foi emitido em função da TNI vigente
à data, ou seja, antes da vigência do DL n.º 202/96, já que então vigorava ainda o DL n.º 341/93, de 30/09. Porém, a exigência da Administração em exigir a apresentação de um novo atestado, ao abrigo do disposto no dito DL n.º 202/96, tem cobertura legal, já que estamos perante o IRS de 1996.
É certo que o atestado apresentado pela impugnante certifica um acto constitutivo de direitos, como atributivo de um direito subjectivo a um benefício fiscal. Mas só na medida do respectivo conteúdo, ou seja, sem ter em conta a possibilidade integral – sem redução – da redução da incapacidade. Trata-se, por outro lado, de um acto de efeitos permanentes ou duradouros pelo que a sua relevância teria naturalmente um fim com a alteração da lei: só a aplicação retroactiva desta – o que não é o caso – afectaria tal direito constituído na esfera jurídica da impugnante. Acresce que a questão não é a de impugnação do acto da ARS pela AF – que não era possível face ao princípio da unicidade da administração – mas da sua validade face à lei nova. Refira-se finalmente que não foram postos em causa princípios constitucionais, como o da legalidade, da confiança, e da segurança jurídica dos contribuintes, já que estes não podem legitimamente esperar que as leis se mantenham imutáveis. Ao invés, hão-de perspectivar a sua alteração face às novas situações da vida real que as leis procuram regular, de acordo até com o progresso da ciência e a sua incapacidade efectivamente real (que não apenas virtual). Dir-se-á agora que não se está perante uma exigência da Administração Fiscal decorrente de uma circular. A circular concretiza isso sim o comando legal. Nem se diga que a Administração Fiscal pôs em causa o documento emitido pela autoridade administrativa competente. Não. O atestado não está em causa. O que se pretende é um novo atestado, a emitir, de acordo com as novas regras legais. Exigência compatível com o normal desempenho de funções da AF . E esta não exige novas obrigações à impugnante. Antes, exige um atestado que se adeqúe às novas exigências da lei. Que, como sabemos, deixa de atender à disfunção natural, mas, aproveitando as novas conquistas da ciência, se circunscreve à disfunção residual, ou seja, aquela disfunção final, já após a respectiva correcção. A AF não exorbitou das suas funções, dando antes cumprimento escrupuloso às novas normas legais.
É certo que a exigência do atestado será, ao que parece, anterior à vigência do referido Dec.-Lei, não tendo sido tal exigência renovada para o ano de 1996. Mas, na vigência do dito Dec.-Lei, e para poder usufruir do beneficio fiscal, necessário seria apresentar um atestado com as aludidas características, o que a impugnante não fez. Digamos que a AF se antecipou à lei. Ou seja: a exigência da administração, vertida em circular, acabou por ter consagração legislativa. Daí que proceda a pretensão da FP. A decisão recorrida não pode pois manter-se.
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, ficando a valer a sentença da 1ª Instância, que julgou improcedente a impugnação, mantendo-se assim a liquidação impugnada.
(...)»
4. Novamente inconformada, a impugnante veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. A recorrente pretende “que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade material do D. L. n.º 202/96 de 23/10 que veio estabelecer o novo critério para aferir da incapacidade para efeitos de benefícios fiscais, designadamente do seu art. 7º, n.º 2, e a alínea e) do n.º 5 do Anexo I, na interpretação e aplicação retroactiva que desse normativo foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo no seu douto acórdão recorrido, no sentido de tal norma legal ser aplicável às situações jurídicas em cujos processos de verificação de incapacidade já se encontravam findos”. Ainda de acordo com a recorrente, “tal interpretação e aplicação do referido D. L. n.º 202/96 está ferida de inconstitucionalidade material, pois esbarra frontalmente com o princípio do Estado de Direito Democrático, atentando contra o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança jurídica previstos no art. 2º da CRP, bem como viola o princípio da não retroactividade previsto no art. 103º, n.º 3, da CRP”.
5. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as suas alegações, que concluiu nos seguintes termos:
“1ª
O processo da recorrente referente à avaliação da incapacidade ficou concluído com a demonstração da sua incapacidade, pelo meio normal e como tal aceite, encontrando-se a A.F. impedida de vir novamente a exigir a apresentação de outro atestado médico, a partir de novos critérios de avaliação, pois é disso que se trata, pretendendo reabrir o processo.
2ª A situação da recorrente é um caso encerrado, concluído quanto à questão da verificação dos pressupostos de que depende o benefício fiscal, mormente a questão da avaliação da incapacidade e sua prova, porquanto tais pressupostos terem sido apreciados à luz de um quadro normativo espacio-temporalmente definido.
3ª Salvo melhor entendimento, afigura-se-nos claro que o entendimento sufragado pelo douto acórdão recorrido enferma de manifesta inconstitucionalidade no que tange à interpretação e aplicação, quer da circular n.º 1/96, de 31/01, do Director-Geral dos Impostos, quer do D.-L. n.º 202/96, pelos seguintes fundamentos:
(...)
10ª Do mesmo modo, quanto ao entendimento sufragado pelo douto acórdão recorrido relativamente à interpretação e aplicação retroactiva do regime jurídico vertido no D. L. n.º 202/96, salvo melhor entendimento, enferma o mesmo de manifesta inconstitucionalidade material, uma vez que ao efectuar a aplicação nos moldes em que o faz, está necessariamente a violar o princípio da confiança, da segurança e da certeza ínsitos no princípio do Estado de Direito, densificados no art. 2º da CRP, bem como o princípio da proibição da aplicação retroactiva das normas de incidência fiscal plasmado no art. 103º, n.º 3, ambos da CRP.
11ª O princípio da segurança significa que os contribuintes não podem ser privados de direitos subjectivos adquiridos a luz de um quadro normativo válido e como tal aceite, em virtude de aplicação retroactiva de uma qualquer nova interpretação jurídica, com a qual os contribuintes não podem razoavelmente contar, e que visa restringir ou mesmo eliminar esses direitos já reconhecidos. Nesse sentido o cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 172/2000 in 2ª série do D. R. de 25/10/2000. Tal princípio significa ‘in casu’ que a lei nova, salvo intenção expressa do legislador, não pode arrasar com os critérios e pressupostos vigentes à data da avaliação da incapacidade da recorrente, à luz dos quais se constituiu e adquiriu o direito, mas apenas poderá definir situações jurídicas futuras, aliás como resulta claro de uma correcta interpretação e aplicação do art. 7º do D. L. n.º 202/96. Por outro lado, a lei nova não pode bulir com os direitos subjectivos adquiridos à luz de um quadro normativo anterior, tanto mais que se trata de direitos fundamentais: cfr. art.
71º da CRP.
12ª O princípio da confiança impõe que a lei nova não possa pôr em causa a estabilidade do sistema jurídico mormente, não possa pôr em causa os interesses juridicamente reconhecidos aos cidadãos deficientes na manutenção de um benefício fiscal já constituído e reconhecido à luz de um quadro normativo anterior. Não seria certamente normal que, face a um certo comando normativo, tendo um cidadão inteiramente agido conforme o mesmo, pudesse ser de súbito surpreendido com uma consequência com a qual não poderia legitimamente contar. A admitir tal possibilidade, seria compactuar com um completo retrocesso de todos os princípios e garantias que todos os cidadãos têm vindo paulatinamente a conquistar ao longo dos tempos. Mais, seria uma afronta ao nosso próprio modelo de estado e isso sim é impensável face à evolução do próprio direito.
13ª O legislador, que presume-se ter-se expressado correctamente, art. 9º, n.º 3, do CC, expressamente fixou o âmbito excepcional de retroactividade quando no art.
7º, n.º 2, do referido diploma, mandou aplicar o seu regime apenas aos processos
(de avaliação de incapacidade) que à data da sua entrada em vigor se encontrassem pendentes, pelo que, a interpretação normativa do referido preceito atribuindo-lhes efeito e aplicação retroactivos, gera inconstitucionalidade material sucessiva do mesmo nos termos do art. 103º, n.º 3, da CRP, uma vez que a retroactividade intolerável se trata por ofender de forma inadmissível os direitos e expectativas legítimas do contribuinte.(...)
14ª Assim, tratando-se como se trata de uma interpretação e aplicação inconstitucional que o douto acórdão recorrido faz do art. 7º, n.º 2, e a al. e) do n.º 5 do Anexo I do D.L. n.º 202/96, conclui-se que o acto de liquidação é nulo e o douto acórdão recorrido inconstitucional pelas razões expostas, devendo, por isso ser declarada inconstitucional a circular n.º 1/96 e bem assim o artigo 7º, n.º 2, e a alínea e) do n.º 5 do Anexo I do D. L. n.º 202/96 de
23/10, na interpretação e aplicação de que tais normas jurídicas foi efectuada pelo douto acórdão recorrido, ordenando-se ao tribunal ‘a quo’ que seja proferida decisão em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade.”
A Fazenda Pública não apresentou alegações.
6. Cabe começar por delimitar o objecto do recurso.
E, em primeiro lugar, há que dele excluir, quer a apreciação da
“inconstitucionalidade material do D.L. n.º 202/96 de 23/10”, como a recorrente começar por indicar no requerimento de interposição de recurso, quer a apreciação da“circular n.º 1/96”, que a recorrente acrescenta nas alegações.
Quanto ao Decreto-Lei n.º 202/96, não pode o Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade material que a recorrente lhe atribui por não estar definido o objecto do recurso. O recorrente tem o ónus de definir as normas cuja apreciação pretende, como exige a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 (cfr. ainda o n.º 1 do artigo 75º-A da mesma lei) e tem sido afirmado repetidamente por este Tribunal. Com efeito, tem o Tribunal Constitucional tem julgado uniformemente não poder considerar-se satisfeito este pressuposto processual nos casos em que o recorrente se limita a imputar a inconstitucionalidade (ao menos, a inconstitucionalidade material) a todo o diploma legal (cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 442/91, 21/92, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, vols. 20º, pág. 469 e segs. e 21º, pág. 125 e segs.), não indicando, de entre as normas aplicadas na decisão recorrida, aquela ou aquelas cuja compatibilidade constitucional pede que seja apreciada.
Quanto à circular, também não pode ser apreciada porque, para além de se tratar de um regulamento meramente interno da Administração, não revestindo as características de “norma” que permitiriam a sua apreciação pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão deste n.º 1058/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., p. 25 segs., por exemplo), apenas foi requerida a sua apreciação nas alegações apresentadas no recurso, e não no requerimento de interposição. Ora, como se sabe, o requerimento de interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 69º da Lei n.º 28/82, conjugado com o nº 1 do artigo 75º-A desta última lei), sem prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, nº 3). O que a recorrente não pode fazer é, nas alegações, ampliar o objecto do recurso antes definido (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs
366/96 e 589/99, publicados no Diário da República, II série, de de 10 de Maio de 1996 e de 20 de Março de 2000, respectivamente). Entende-se, pois, que o recurso se circunscreve à apreciação das normas do artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, bem como da alínea e) do n.º 5 do Anexo I do mesmo diploma, cujo texto é o seguinte:
Artigo 7º
(Entrada em vigor)
1. ...
2. O presente diploma aplica-se com as devidas adaptações aos processos em curso. Anexo I
1. ...
2. ...
3. ...
4. ...
5. Na determinação do valor final da incapacidade, devem ser observadas as seguintes normas gerais, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número, desde que não contraditórias destas:
a)...
b)...
c)...
d)...
e) Sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação de meios de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros), o coeficiente de capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção residual após aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na Tabela.
O sentido com que as referidas normas foram interpretadas e aplicadas foi o de se entender que, a partir da data da sua entrada em vigor, os critérios e procedimento de avaliação de incapacidade delas constantes são aplicáveis para efeitos de atribuição de benefícios fiscais. Assim, logo na sentença do Tribunal Tributário de Viana do Castelo se afirmou que o “modus operandi da determinação dos coeficientes de incapacidade, legalmente fixado, vale igualmente no que ao acesso a benefícios fiscais concerne”, referindo-se ainda que “a partir da entrada em vigor daquela lei, tal acesso, por parte de quem alegue ser portador de deficiência em grau igual ou superior a 60%, passou a estar dependente de comprovação nos termos que decorrem dessa mesma lei. Só mediante uma avaliação processada nos termos ali fixados é que a incapacidade se tem por devidamente comprovada para efeitos fiscais”.
Mais adiante, afirma-se na referida sentença o seguinte: “Tudo se passa, portanto, como se a lei fiscal, a partir de 30 de Novembro de 1996, passasse a dizer que o acesso aos benefícios que nela se consagram a favor de cidadãos portadores de deficiência ficou dependente da comprovação da deficiência através de atestado médico resultante de um processo de avaliação tal como se encontra regulado no Decreto-Lei n.º 202/96”. Por seu turno, o acórdão recorrido veio confirmar este mesmo entendimento, segundo o qual “o atestado apresentado pela impugnante foi emitido em função da TNI vigente à data, ou seja, antes da vigência do Decreto-Lei n.º 202/96, já que então vigorava ainda o Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro”. Todavia, como se afirma logo de seguida, “a exigência da Administração em exigir a apresentação de um novo atestado, ao abrigo do disposto no dito Decreto-Lei n.º
202/96, tem cobertura legal, já que estamos perante o IRS de 1996”.
A recorrente impugna as normas mencionadas, com a interpretação apontada, considerando que a “aplicação retroactiva do regime jurídico vertido no D. L. n.º 202/96” faz enfermar o mesmo de “manifesta inconstitucionalidade material, uma vez que ao efectuar a aplicação nos moldes em que o faz, está necessariamente a violar o princípio da confiança, da segurança e da certeza
ínsitos no princípio do Estado de Direito, densificados no artigo 2º da CRP, bem como o princípio da proibição da aplicação retroactiva das normas de incidência fiscal plasmado no artigo 103º, n.º 3, ambos da CRP”.
7. Sobre a alegada inconstitucionalidade material das normas impugnadas no presente recurso pronunciou-se, entretanto, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 585/03 (Diário da República, II série, de 1 de Março de 2004) , nos seguintes termos:
“Quanto à suposta retroactividade do regime do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro – em vigor a partir do dia 30 de Novembro de 1996, por força do disposto no n.º 1 do seu artigo 7º (‘O presente diploma entra em vigor no último dia do mês seguinte ao da sua publicação’) –, quando aplicado ao ano fiscal de 1996, decidiu o acórdão recorrido que não existia tal retroactividade, desde logo, porque, nos termos do disposto no artigo 13º, n.º 7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, ‘a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita.
(...) aferindo-se a situação pessoal dos sujeitos passivos de IRS, no caso, a incapacidade fiscalmente relevante, a 31/12 do ano a que disser respeito, forçoso é concluir não se mostrar retroactiva a aplicação do D.L. 202/96, pois que, naquela data, já este se encontrava em vigor, com o que se mostram respeitados os princípios da legalidade tributária, certeza, confiança, segurança e protecção das expectativas dos cidadãos, uma vez que estes não podem legitimamente esperar a imutabilidade das leis, havendo antes que contar com a sua alteração pois que são instrumentos dinâmicos que visam moldar e regular situações de vida real, também estas em constante mutação.’ A decisão recorrida afastou, pois, expressamente, qualquer aplicação retroactiva da norma em questão. Ora, não existindo, segundo o juízo do Tribunal a quo, aplicação retroactiva das normas impugnadas, é óbvio que a eventual inconstitucionalidade resultante de uma dimensão normativa que incluísse tal aplicação retroactiva não pode ser apreciada no âmbito do presente recurso: por um lado, porque o sentido julgado inconstitucional não obteve expressão na decisão recorrida, falhando logo um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto; por outro lado, porque uma eventual pronúncia de inconstitucionalidade em relação a essa dimensão normativa seria de todo irrelevante, na medida em que se não poderia projectar na decisão recorrida – o que, à luz da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr. Acórdãos n.ºs 208/86 e 275/86, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro e de 17 de Dezembro de 1986) se não pode admitir. Pode, por outro lado, deixar-se em aberto a questão de precisar os exactos termos em que a proibição de retroactividade é de aplicar a normas que afectam apenas benefícios fiscais do tipo dos que estão em causa no presente recurso, atendendo à sua específica natureza. Na verdade, ainda que se entenda que as normas em causa vêm impugnadas em si mesmas, e não numa sua dimensão interpretativa que conduza a uma aplicação retroactiva, é claro que, como decidiu o tribunal a quo, não se verifica no presente caso qualquer verdadeira retroactividade, uma vez que, segundo o citado artigo 13º, n.º 7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é apenas ‘aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita’, encontrando-se nesta data já em vigor a norma em questão. Ou seja: por força da norma em questão, os recorrentes sabiam, ou deviam saber, de antemão, que, antes do último dia do ano fiscal em causa, não podiam formar uma confiança legítima na manutenção do quadro legal vigente quanto ao apuramento do grau de incapacidade a considerar para efeitos fiscais – designadamente, quanto à consideração ou não dos meios de correcção ou compensação da disfunção. Por virtude dessa norma, que os deveria deixar de sobreaviso quanto à eventualidade de alteração do quadro legal, a frustração de qualquer eventual expectativa que hajam formado na imutabilidade das leis e com base em certificações médicas obtidas não pode ser considerada como resultante de uma qualquer aplicação retroactiva da lei constitucionalmente censurável.”
8. No caso dos autos está também em causa o IRS de 1996 e também aqui a decisão recorrida entendeu não se verificar qualquer aplicação retroactiva do regime constante do Decreto-Lei n.º 202/96. Afirma-se aí, com efeito que o atestado apresentado pela impugnante consiste num “acto de efeitos permanentes ou duradouros, pelo que a sua relevância teria naturalmente um fim com a alteração da lei: só a aplicação retroactiva desta – o que não é o caso – afectaria tal direito constituído na esfera jurídica da impugnante”. Por outro lado, também no caso dos autos, à semelhança do que se afirmou no citado Acórdão n.º 585/03, parece claro que, ainda que se entenda que as normas em causa vêm impugnadas em si mesmas, e não numa sua dimensão interpretativa que conduza a uma aplicação retroactiva, não se verifica, como decidiu o tribunal a quo, qualquer verdadeira retroactividade, uma vez que, segundo o artigo 13º, n.º
7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é apenas
“aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita”, encontrando-se nesta data já em vigor a norma em questão.
É irrelevante que, aqui, a recorrente considere que as normas em apreciação violam os princípios da segurança jurídica e da confiança (artigo 2º) ou o princípio da não retroactividade, constante do n.º 3 do artigo 103º da Constituição, e que no recurso julgado pelo Acórdão n.º 585/2003, se apontassem outras normas constitucionais, pois que, como resulta da transcrição feita, as questões levantadas são as mesmas.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida