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Processo n.º 160/04
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 435, foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. e mulher, B., foram condenados, por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003, de fls. 317 e seguintes, proferido no âmbito de recurso de revista, a reconhecer que sobre o seu prédio rústico, sito na -----------------, freguesia de -------------, concelho de
------------------, se acha constituída uma servidão de passagem de pessoas, carros de bois, tractores agrícolas e viaturas de transporte, a favor do prédio rústico, sito no mesmo lugar, freguesia e concelho, dos autores, C. e mulher, D., bem como a retirarem o portão de ferro que aplicaram na entrada do caminho da serventia junto à E.N. --------- e a absterem-se de quaisquer actos que impeçam ou prejudiquem o pleno exercício do direito de servidão dos autores.
Inconformados, os Réus vieram arguir a nulidade total do acórdão,
“ao abrigo do disposto nos artigos 2º, 9º b), 13º, 20º, n.ºs 1 (primeira parte),
4 e 5, 62º, 202º, n.º 2, 205º da CRP, 280º e 334º do C. Civil, 3º, n.ºs 1 e 3,
3º-A, 264º, n.º 2, 268º, 660º, n.º 2, 661º, n.º 1, 732º, 716º e 668º, n.º 1, d) e e), todos do C.P.Civil”.
Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de
2003, de fls. 404 e seguintes, foi indeferida a arguição de nulidade, nos seguintes termos:
“7º confrontando os fundamentos em que os arguentes assentaram a invocação dos vícios de nulidade e de inconstitucionalidade com o teor do acórdão, a conclusão não pode deixar de ser a seguinte:
a) não ocorre vício de nulidade por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido, ou por qualquer outro motivo. A argumentação dos arguentes deixa perceber a sua discordância com o decidido no acórdão por entenderem que aos factos provados e às normas aplicáveis corresponderia solução diferente para a causa, só que proferido o acórdão fica esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto ao objecto do pleito (artigo
666º, n.º 1, do C.P. Civ.) não permitindo a lei que as partes utilizem a faculdade de arguição de nulidades para conseguir a reapreciação do mérito da acção.
b) no acórdão não foi aplicada qualquer norma inconstitucional ou violadora de algum dos princípios na CRP consignados, designadamente os invocados pelos arguentes, nem se usou de interpretação susceptível de conduzir a algum dos mencionados vícios.
Improcede, em consequência, a invocação de nulidade e de inconstitucionalidades apresentada pelos réus a fls. 365 e seguintes.”
2. Ainda inconformados, A. e mulher, B., vieram recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2003, “ao abrigo das alíneas a), b) e i) dos n.ºs 1 e 2 do artigo
70º da Lei n.º 28/82, de 15/11, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro (cfr. artigo 29º da Lei n.º 30-E/2000, de 20/12)”.
Pretendem assim os recorrentes “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas e dos entendimentos nelas ancorados e delas extraídos”, de onde entendem ter resultado:
“a. – Que o S.T.J. exorbitou os limites enunciados na matéria de facto alegada na petição inicial.
Isto porque,
a.a. Ao longo da petição inicial os autores limitaram-se tão somente a alegar factos integradores da pretensa constituição de servidão por via de contacto [contrato] (o acordo escritural – cfr. artigos 33º e 34º da petição inicial).
a.b. estes mesmo factos e apenas estes, foram levados à base instrutória sob os pontos 19º e 20º, conformando-se os autores, que dela (b.i.) nunca reclamaram.
b. Do mesmo modo, o S.T.J. ultrapassou os limites enunciados na alínea a) do pedido dos autores.
c. Esta ampliação que o S.T.J. fez, relativamente aos limites definidos pelos autores sob os artigos 33º e 34º da petição inicial e sintetizados única e exclusivamente sob a alínea a) do pedido constante do final da petição inicial:
c.a. violou o princípio dispositivo na vertente relativa conformação objectiva da instância, na medida em que,
considerou factos e razões de facto, não só não alegados,
como sobretudo excluídos pelos autores!
e, por consequência absolutamente omissas da base instrutória.
c.b. Consequentemente violou os princípios da proporcionalidade, do contraditório e da igualdade das partes, bem como o da proibição de excessos que ao julgador se impõem, perante o objecto do processo,
porque ao considerar de per si matéria de facto estranha à própria vontade expressa pelos autores, não deu qualquer oportunidade aos RR. de sobre a mesma se pronunciarem e debaterem tempestivamente, com utilidade e eficácia.
c.c. Ofendendo de igual modo os princípios da segurança, da certeza, da previsibilidade e da adequação prática, sintetizados no princípio da proibição de decisões surpresa, que é elementar e estruturante de qualquer Estado de direito.
- Acham-se assim violados os princípios e as normas constantes dos artigos 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigos 1º, 2º,
3º, n.º 3, 8º, 9º, b), 12º, 13º 16º, 17º 18º, 20º, n.ºs 1 e 4, 62º, 202º, n.º 2,
204º e 205º, n.º 1, da Constituição.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Resulta claramente do requerimento de interposição de recurso para esta Tribunal que os recorrentes não definem qualquer questão de constitucionalidade normativa, susceptível de constituir o objecto do recurso que interpuseram, seja qual for as alíneas do n.º1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 a invocada – a), b) ou i).
Diferentemente, é à própria decisão de que recorrem que atribuem a violação das normas e princípios constitucionais que indicam.
Ora o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade das normas destina-se a que este tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida – ou que esta decisão recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade – e não das próprias decisões que as apliquem (ou recusem aplicar). Assim resulta da Constituição e da lei e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 612/94,
634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Janeiro de
1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
Não pode, portanto, o Tribunal Constitucional conhecer do recurso, por não lhe ter sido colocada qualquer questão que possa constituir o seu objecto. E tal obstáculo é insanável, o que justifica que não se utilize o mecanismo de correcção do requerimento de interposição de recurso previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82.
4. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs., em conjunto.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária. Sustentam que não é exacto não terem definido qualquer questão de constitucionalidade normativa, porque “invocaram no requerimento de interposição de recurso que as decisões recorridas pelo ora reclamantes violaram” os princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade das partes; que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça “exorbitou o seu poder cognitivo”, infringindo “os princípios da igualdade de armas, da proibição de excessos, da certeza, da segurança e da previsibilidde das decisões judiciais, sintetizados no princípio da proibição das decisões surpresa que é elementar e estruturante do estado de direito democrático”. Ora “a validade normativa e a eficácia prática dos princípios acabados de enunciar, acham-se assegurados na ordem jurídica portuguesa, pelas invocadas normas dos artigos 6º n º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pelos artigos 1º, 2º, 3º, n.º 3, 8º, 9º b), 12º, 13º, 16º, 18º, 20º n.ºs 1 e 4, 62º,
202º, n.º 2, 204º e 205º n.º 1 da C.R.P.”. Assim, concluem, pretendem que o Tribunal Constitucional “se pronuncie quanto à não observância dos referidos princípios e normativos constitucionais pelo S.T.J., concretamente no Acórdão proferido em 9-10-03 e na subsequente reclamação deduzida pelos ora reclamantes”. Ao não o fazer a decisão reclamada “enferma de nulidade ao violar o disposto nos artigos 221º e 223º n.º 1, ambos da C.R..P.,(...) porquanto se não pronunciou nem conheceu de questões que estão no âmbito da sua competência”.
Notificados para o efeito, os recorridos não responderam.
3. A presente reclamação é manifestamente improcedente, como se pode verificar pela transcrição efectuada. Com efeito, os reclamantes vêm confirmar que não estão a pretender que o Tribunal Constitucional aprecie uma questão de constitucionalidade normativa, mas sim que se pronuncie sobre a infracção de normas e princípios constitucionais que atribuem às próprias decisões do Supremo Tribunal de Justiça. Ora, na decisão reclamada já está suficientemente justificada a razão que impede o Tribunal Constitucional de conhecer de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto nestes termos, nada havendo a acrescentar quanto a esta questão. Apenas há que verificar que, não tendo sido definido um objecto susceptível de integrar o objecto do recurso interposto, a decisão sumária não enferma de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, não tendo qualquer sentido a alegação de violação dos artigos 221º e 223º da Constituição.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 18 ucs., em conjunto.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida