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Processo n.º 685/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A- Relatório
1 - O Ministério Público junto do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Braga, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão que julgou procedente o pedido de impugnação deduzida por A. contra um acto de liquidação de Imposto Automóvel (IA), efectuado pela Fazenda Pública, no montante de € 25 249,45 euros, tendo concretizado, no respectivo requerimento de interposição, que:
“(...) A douta sentença recorrida recusou a aplicação do n.º 7 do art.º 1º do Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro, com o fundamento de que tal norma contém um segmento, a tabela ali incluída, que é inconstitucional porque violador do art.º 90º do Tratado de Amesterdão e do art.º 8º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, com base no que julgou ilegal a liquidação impugnada. O presente recurso é interposto ao abrigo do art.º 70º, n.º 1, al. a) da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, o qual tem efeito suspensivo, sobe imediatamente e nos próprios autos (art.º 78º, n.ºs 2 e 4, idem). Assim, por ter legitimidade e estar em tempo, requer a V.a Ex.a se digne admitir o presente recurso (art.ºs 72º, n.º 1, al. a) e n.º 3, e 75º, n.º 1, idem)”.
2 - Por sua vez, a decisão recorrida louvou-se na seguinte fundamentação:
“(...) Acerca da questão de saber se o pedido de revisão oficiosa, do acto de liquidação, feito pelo impugnante, é intempestivo, porque deduzido para além do prazo de 90 dias de que fala o art.º 78°.1 da LGT, dir-se-á que o argumento invocado, pela AF e pelo MP, se bem que com o apoio literal retirado do n.º 1 daquele art.º 78°, não é definitivo, como, una voce, dizem os autores citados pelo impugnante, parecendo particularmente incisivo o argumento que se extrai do dever de decisão imposto, à administração fiscal (AF), pelo art.º 56° da LGT. O efeito útil da previsão daquele n.º 1 parece dever situar-se no campo do condicionamento da pronúncia da AF: sendo a revisão da iniciativa do contribuinte, tomada dentro do prazo do dito n° 1 , terá ele o direito de apresentar a questão nos termos em que entender; para além desse prazo, não poderá senão pedir a revisão oficiosa, sujeitando-se à formulação da questão no modo que a AF preconize. Em conclusão, o pedido de revisão oficiosa é tempestivo. Quanto ao mais, o impugnante terá razão, de acordo com a conhecida e douta jurisprudência sobre a matéria. A Tabela, porque não dará tal garantia, é, segundo esta jurisprudência, contrária ao direito comunitário, que só permite a um Estado membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas (...), se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional.
Ora, se uma norma (ou segmento de uma norma, como será aqui o caso) do direito interno ordinário contrariar outra de direito internacional convencional, tem-se por prevalecente o vício de inconstitucionalidade, que consome o de ilegalidade
- Acórdão 218/88, de 12.10, do Tribunal Constitucional, in BMJ 380, pp. 183 e segs.. A liquidação é, pois, ilegal, porque baseada numa norma, a do n° 7 do art.º 1 ° do DL 40/93, de 18.02, que contém um segmento, a tabela ali incluída, inconstitucional, porque violador do art.º 90º do Tratado de Amesterdão e do art.º 8°, 2 da Constituição Portuguesa.; O impugnante tem direito a juros indemnizatórios, desde a data do pagamento do valor da liquidação e até à data da emissão da respectiva nota de crédito - artigos 43°.1 da LGT e 61°.3 do CPPT.
[...]”.
3 - Interposto, nos termos supra referidos, recurso para o Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar, tendo o Ministério Público junto deste Tribunal sustentado, em síntese conclusiva, que:
«1.º Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível nos quadros de um recurso fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, a que decorre da alegada contradição entre uma norma de um tratado ou convenção internacional e uma disposição legal interna.
2.º É ao Tribunal Constitucional que cabe a “última palavra” acerca da qualificação jurídica do vício normativo, motivador da desaplicação da norma legal interna, podendo convolar-se de tal recurso para o tipificado na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma Lei.
3.º Ao Tribunal Constitucional apenas compete dirimir as questões jurídico-internacionais implicadas na recusa de aplicação normativa, determinando se a disposição de direito internacional convencional está em vigor e vincula o Estado e se deve prevalecer sobre a norma legal interna, alegadamente colidente com o preceito de direito internacional.
4.º As disposições dos tratados instituidores da União Europeia vinculam obviamente o Estado português e prevalecem sobre as normas conflituantes internas de natureza infraconstitucional».
4 - Nos autos o relator suscitou, ex oficio, questão prévia relativa ao não conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, tendo o Ministério Público respondido nos seguintes termos:
«1 - Reiteramos a posição que se havia manifestado no processo n° 885/03, em que foi proferido pela 3ª Secção o acórdão n° 46/04, que nos permitimos transcrever:
1 - Concordando inteiramente, quanto a este ponto, com o decidido na douta decisão reclamada, considera-se que efectivamente a 'inconstitucionalidade', motivadora do juízo de desaplicação normativa no Tribunal 'a quo', é uma
'inconstitucionalidade indirecta', decorrente de certo acto legislativo interno não ter, na óptica da decisão recorrida, respeitado o princípio do primado do direito internacional convencional, proclamado pelo artigo 8° da Lei Fundamental.
2 - Daí decorre, porém, que tal questão terá de ser abordada - como consequência de alteração de qualificação, mesmo oficiosa, do vício motivador da recusa de aplicação normativa - no âmbito do tipo de recurso previsto na alínea i) do artigo 70° da Lei n° 28/82.
3 - E parecendo evidente e incontroverso que nada obsta a que se proceda a tal convolação, já que a mesma surge - não como resultado de uma modificação
'discricionária' da estratégia processual do recorrente - mas como simples decorrência da correcção da qualificação jurídica da questão suscitada, da competência deste Tribunal Constitucional (cfr., v.g. Acórdãos n.ºs 100/92,
323/92 e 282/94).
4 - Entendemos, por outro lado, - operada tal correcção da qualificação do vício motivador da recusa de aplicação normativa - que, no caso dos autos, se verificam os pressupostos do recurso tipificado na alínea i) do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional; é que a decisão recorrida:
- recusou expressamente aplicar norma constante de acto legislativo;
- com o específico fundamento de que tal norma afrontava uma convenção internacional.
5 - Pendendo, aliás, na fase de alegações, sobre questão estritamente idêntica, o processo n° 685/03, da 2ª Secção.
6 - Questão diversa - que terá que ver com o âmbito dos poderes cognitivos deste Tribunal, mas já não com os pressupostos do recurso da referida alínea i) - é a que se traduz em saber de que questões jurídico-constitucionais e jurídico-internacionais, implicadas na recusa de aplicação normativa, deverá, ao apreciar o mérito do recurso, conhecer o Tribunal Constitucional.
7 - E sendo certo que efectivamente lhe não cumpre conhecer da existência da alegada contradição entre a disposição legal desaplicada e a disposição de direito internacional invocada como fundamento da desaplicação - devendo, todavia, pronunciar-se sobre duas outras questões, determinando:
- se a disposição do direito internacional convencional está em vigor e vincula o Estado Português;
- se deve prevalecer sobre a norma legal interna, desaplicada na decisão recorrida.
8 - Importa ainda notar que a situação dos presentes autos é substancialmente diferente da que foi objecto do Acórdão n° 466/03: é que este processo alcançou-se a fase das alegações, tendo a entidade recorrente delineado nas respectivas conclusões, como objecto do recurso, uma questão que transcendia manifestamente os poderes de verificação e qualificação do Tribunal Constitucional, previstos no artigo 71º da Lei n° 28/82.
9 - Como é evidente, tal situação processual nunca se poderia verificar um processo que - por ter sido objecto de decisão sumária - não alcançou a fase processual das alegações.
10 - Termos em que deverá proceder a presente reclamação, corrigindo-se a qualificação jurídica do vício motivador da recusa de aplicação normativa, convolando-se para o recurso tipificado na alínea i) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, cujos pressupostos se verificam, no caso dos autos.
2 - Não nos convence, na verdade, a posição assumida no douto Acórdão n° 46/04, já que continuamos a entender que a 'convolação' do recurso tipificado na alínea a) para o previsto na alínea i) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82 se configura como decorrência de uma re-qualificação jurídico-constitucional do vício motivador da recusa de aplicação normativa.
3 - Sempre se tendo entendido, de modo pacífico, que tal alteração da qualificação jurídica pode ser feita, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal Constitucional, já que lhe compete a 'última palavra' sobre tal matéria.
4 - Ora, a orientação expressa naquele acórdão acaba por restringir substancialmente os próprios poderes cognitivos do Tribunal Constitucional sobre a qualificação jurídico-constitucional do vício normativo motivador da recusa de aplicação normativa.
5 - Na verdade, interposto recurso, com base na referida alínea a) - já que o juiz 'a quo' configurou expressamente o vício normativo como
'inconstitucionalidade' - considera-se precludida a possibilidade de alterar tal qualificação jurídica, restringindo o âmbito do recurso ao vício de inconstitucionalidade, mesmo quando é evidente que a qualificação correcta, por estar em causa uma inconstitucionalidade 'indirecta', seria a de contrariedade com norma 'reforçada' convencional.
6 - Termos em que se continua a pugnar pelo conhecimento do mérito do recurso».
Cumpre, agora, apreciar.
B- Fundamentação
5.1 – Dada a sua natureza de questão prévia, começa-se pela apreciação da questão da convolação do recurso para a alínea i) do n.º 1 do artigo 70º - problema que é equacionado pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso e reiterado na resposta à questão prévia formulada pelo relator.
Este Tribunal teve ocasião recentemente de se pronunciar sobre essa matéria, tendo concluído pela inadmissibilidade da convolação. Fê-lo no seu Acórdão n.º 46/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia. Afirmou-se aí:
«[...]
7. A questão da convolação do tipo de recurso tem sido objecto de diversas decisões do Tribunal Constitucional, tendo, ainda recentemente, sido proferido nesta mesma 3ª Secção, o Acórdão n.º 468/03, em que, estando em causa as alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC e sendo invocados os mesmos acórdãos que o ora reclamante menciona na reclamação, se pretendeu, sem sucesso, que o Tribunal procedesse à convolação e, consequentemente, tomasse conhecimento do recurso. Nos presentes autos, coloca-se a questão da convolação de um recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional para o recurso tipificado na alínea i) do n° 1 do mesmo artigo. Ora, como é sabido, no recurso com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da LTC coloca-se uma questão de inconstitucionalidade directa, enquanto que no recurso fundado na alínea i) do mesmo artigo não é esse o caso. Assim, o recurso da alínea a) deriva de uma recusa de aplicação que se funda autonomamente numa norma ou num princípio constitucional, enquanto que o recurso da alínea i) decorre de uma recusa de aplicação de norma constante de acto legislativo que não resulta, primariamente, de uma contradição com a Constituição, mas antes de uma contrariedade com uma convenção internacional. Há, por conseguinte, uma diferença essencial. E essa diferença conduz a que, no caso de violação de convenção internacional, o recurso tenha um âmbito diferente, já que não se ocupa da questão de inconstitucionalidade suscitada, mas apenas, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º da Lei n.º 28/82, das “questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida”. Deste modo, ao contrário do que afirma o reclamante, o Tribunal não deve alterar a qualificação do vício motivador da recusa de aplicação normativa. Aliás, sendo tal recusa fundada em inconstitucionalidade sempre se suscitariam dúvidas – insolúveis – sobre se, qualificado o vício de outro modo, teria subsistido a recusa de aplicação da norma julgada inconstitucional. Por outro lado, se é certo que, após a publicação da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, deixou de se poder questionar a competência do Tribunal Constitucional para o conhecimento da eventual contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção internacional, o facto é que tal competência, como vimos, não só é restrita ao julgamento das “questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida”, como o Tribunal só deve exercê-la quando o recurso lhe seja presente ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, nos casos previstos nessa alínea e de acordo com os termos nela mencionados. Ora, não é esse o caso dos presentes autos. Acresce que, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, o recurso para o Tribunal Constitucional “interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a alínea do n.º 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto”, sendo certo que, se esse elemento faltar e não for suprido após convite para o efeito, o requerimento é indeferido, o mesmo sucedendo se a alínea indicada se referir a um recurso em relação ao qual não estão presentes os respectivos pressupostos. Daí que se possa também deduzir que não basta que o requerente indique uma qualquer alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC para que o Tribunal, forçado a convolar o recurso para a alínea eventualmente correcta e adequada, deva conhecer do objecto do recurso. Aliás, limitando-se o recurso da alínea i), única e exclusivamente, ao julgamento das “questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida” (artigo 71º, n.º 2, da LTC), é legítimo entender que tais questões devem ser identificadas , desde logo, no requerimento de interposição do recurso, à semelhança do que acontece com os restantes recursos, em que se exige que o requerimento identifique a questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade que se pretende que o Tribunal aprecie (artigo 75º-A, n.º 1, da LTC). E, no caso de tal não acontecer, o juiz, de acordo com o disposto nos n.ºs 4 e 5 do citado artigo 75º-A, convidará o requerente a prestar essa indicação. Ora, é manifesto que tal convite, no que se refere à identificação das “questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida” que se pretende ver apreciadas, só pode ser efectuado se a alínea ao abrigo da qual se recorre for a alínea i) e não se, como acontece no caso dos presentes autos, for a alínea a).
8. Assim sendo, e sem que seja necessário curar agora de saber se é admissível o recurso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da LTC nos casos de decisão de um tribunal português que recuse a aplicação de uma norma legal interna com fundamento na sua contrariedade com uma norma de direito comunitário primário, há que concluir que o Tribunal não pode convolar para aquela alínea i) do n.º 1 do artigo 70º o recurso interposto com fundamento na alínea a) do mesmo artigo. Nestes termos, em face do exposto, não pode efectivamente este Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso.
[...]».
Para quem, como o aqui relator, adira à bondade de tais fundamentos, a resposta à questão só poderá ser a da inadmissibilidade da convolação e, consequentemente, também, a do não conhecimento do recurso.
De resto, no caso em apreço, sempre se poderá afirmar que essa posição sai confortada com o facto de o recorrente não identificar, no requerimento de interposição do recurso quais as questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional, entendidas estas na acepção que abaixo se precisará, cuja resolução é solicitada ao Tribunal Constitucional. Ora, a admissibilidade da convolação não poderá dispensar, por força do princípio constitucional do acesso a uma tutela eficaz e efectiva ínsito no direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º da Constituição, a utilidade do novo meio processual. Numa situação, porém, em que o âmbito do recurso previsto na alínea i) do art.º 70º da LTC se terá de restringir ao conhecimento de tais questões, por força do disposto no n.º 2 do art.º 71º da mesma Lei, a circunstância de elas não serem identificadas no requerimento de interposição de recurso permite desde logo ajuizar pela inutilidade do recurso tido por adequado por falta de um dos pressupostos relativos ao seu objecto.
E diz-se que o recorrente não identifica aquele tipo de questões a cujo conhecimento se limita a competência do Tribunal Constitucional neste tipo de recursos – ou seja dos recursos de decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional – porque fundamenta o seu recurso apenas na verificação desta situação relativa ao sentido da decisão judicial recorrida sem suscitar quaisquer concretas questões daquela natureza a que o n.º 2 do art.º 71º da LTC cinge o âmbito do mesmo recurso.
5.2 – Mas para quem não adira à bondade dos fundamentos expostos, sempre concluirá pelo não conhecimento do recurso, conquanto por razões diferentes. Na verdade e em primeiro lugar, quanto ao conhecimento do recurso ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, tem sido jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional que os casos de inconstitucionalidade indirecta não se configuram como questões que integrem o seu âmbito de competência cognitiva.
Assim, e seguindo a exposição de José Manuel Cardoso da Costa (O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades europeias, in Ab Uno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, 1920 - 1995, Coimbra,
1998, p. 1363 ss,), considerou-se no Acórdão n.º 621/98 ser de «rejeitar a qualificação da incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário como uma situação de “inconstitucionalidade” que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar» (cf. igualmente com Maria Helena Brito, Relações entre a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica nacional, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, p. 310 ss), sendo que um juízo idêntico foi formulado também no Acórdão n.º 93/2001, publicado no Diário da República II Série, de 5 de Junho de 2001, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49º vol. pp. 347, e n.º 164/2001, disponível em www.tribunal constitucional.pt/jurisprudencia.
No Acórdão n.º 466/03, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Novembro de 2003, que abordou um problema semelhante ao que emerge dos presentes autos, concretizou-se, na esteira de jurisprudência anterior e em face da possibilidade do Tribunal sindicar os problemas de contrariedade de norma do direito interno com uma convenção internacional, que:
«[...]
Como se escreveu, por exemplo, no Acórdão n.º 405/93 (Diário da República II série, de 19 de Janeiro de 1994), «Os casos de contrariedade de norma constante de acto legislativo com uma convenção internacional só podem ser objecto de recurso para o Tribunal Constitucional - recurso que 'é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida' (cf. n.º 2 do artigo 71º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro) - na hipótese prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da mesma Lei. Ou seja: só pode recorrer-se para este Tribunal das decisões 'que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional'. O aditamento da alínea i) ao n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, feito pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, tem, justamente, o sentido de - como se sublinhou no Acórdão n.º 162/93, da 1ª Secção (por publicar) - enunciar 'um específico pressuposto que tem que ver com a competência deste Tribunal para apreciar a questão da contrariedade de acto legislativo com convenção internacional, nas dimensões jurídico-constitucional e jurídico-internacional'. Ou seja: após a publicação da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, deixou de poder questionar-se a competência do Tribunal Constitucional para o conhecimento da eventual contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção internacional. Essa competência é, no entanto, restrita ao julgamento das 'questões de natureza juirídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida', devendo o Tribunal exercê-la, quando para si se recorrer das decisões de outros tribunais ao abrigo da citada alínea i) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da mencionada Lei n.º
85/89, de 7 de Setembro, nos precisos casos e termos enunciados nessa alínea i).» Por sua vez, no Acórdão n.º 290/2002 (não publicado), o Tribunal Constitucional explicitou o significado da restrição a tais questões:
“Com efeito, nos termos desta última disposição legal, nestes casos, «o recurso
é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicados na decisão recorrida». Sobre a natureza destas questões, assinala José Manuel M. Cardoso da Costa (A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed. rev. e act., Coimbra, 1992, pág.
27, nota 27): Note-se que, no seu desenho legal, a competência agora reconhecida ao Tribunal não apresenta inteira homologia com a do controlo da constitucionalidade (ou da
«legalidade»): não só porque apenas é contemplada em sede de controlo concreto, como ainda porque é limitada aos casos, referidos no art. 70º, n.º 1, alínea i), cit., de desaplicação da lei interna pelos tribunais ou, então, de decisão destes contrária a orientação anterior do Tribunal Constitucional; e sublinhe-se, por outro lado, que o legislador se absteve intencionalmente de qualificar a situação, assim, e desde logo, não tomando posição sobre o controverso problema da primazia do direito convencional. Este, justamente, será um ponto a decidir pelo Tribunal, nele residindo o núcleo da questão ou das questões «jurídico-internacionais» que entram na sua competência; quando às questões «jurídico-internacionais», nelas caberá antes de mais, certamente, a da vigência e validade da convenção como instrumento jurídico-internacionalmente vínculante (cfr. cit. art. 71º, n.º 2). Face a uma sua tal configuração, bem se poderá dizer que esta competência do Tribunal se aproxima de (se não rigorosamente se identifica com) uma competência de «qualificação normativa» (à semelhança de certa competência do Tribunal Constitucional Federal alemão, por vezes assim catalogada). E, no mesmo sentido, sublinha J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, págs. 1031 e segs.): São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por ex., as questões referentes ao sistema de
«incorporação» das normas internacionais no direito interno (recepção plena, recepção condicionada), os problemas referentes à posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas relacionados com a qualificação de normas reguladoras de actos ou relações internacionais
(ex.: exclusão do carácter jurídico-constitucional do direito diplomático). Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analísá-las à face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado
(cumprimento de obrigações, responsabilidade internacional dos Estados).
[...] Diferentemente, porém, dos processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, não se trata de um verdadeiro processo de controlo de normas mas de um processo de verificação das questões jurídico-constitucionais ou jurídico-internacionais implicadas na decisão. Assim, por exemplo, num recurso motivado pela recusa de aplicação de uma norma legal contrária ao direito internacional convencional, o Tribunal Constitucional verifica se se trata de um tratado solene, caso em que admitirá porventura a superioridade hierárquica em relação a actos legislativos internos em contradição com ele, ou de um acordo em forma simplificada, hipótese em que poderá porventura julgar constitucionalmente mais correcto a decisão da questão partindo do princípio da igualdade hierárquica entre lei e acordo internacional ou até do princípio de supremacia do direito interno quando estejam em causa leis com valor reforçado. Da mesma forma, o recurso para o Tribunal Constitucional permitirá a verificação e qualificação das regras de direito internacional. Assim, por exemplo, o Tribunal averiguará se a questão de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional relativa ao valor normativo de tratado-contrato deve, no caso concreto, ser decidida no sentido de o tratado-contrato ser um acto normativo, com possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, ou se ele não reúne as características de uma norma, caso em que será arredado o «controlo de normas» (cfr., Ac 494/99 – Caso do Acordo de Segurança Social com o Chile). O recurso para o Tribunal Constitucional permitirá ainda a este verificar, por exemplo, a vigência ou não de uma norma convencional ou se esta deixou de vincular o Estado português pela ocorrência da cláusula rebus sic stantibus
(questão de natureza jurídico-internacional). A LTC eleva, deste modo, o Tribunal Constitucional a intérprete qualificado
(cfr. LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte, e 72º/4) das questões jurídico-constitucionais (cfr. CRP, art. 221º) e jurídico-internacionais implicadas num processo concreto (cfr., sobretudo, LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte) e a «guardião do valor paramétrico do direito internacional convencional» nos casos onde a parametricidade deste direito em relação ao direito interno se revelou justificada através da interpretação/concretização de normas constitucionais e normas internacionais. O processo de verificação consagrado nos art. 70º/1/i e 71º/2 da LTC converte-se, assim, no instrumento processual de concretização das normas constitucionais, em especial do art. 8º da CRP. Ao mesmo tempo, o processo de verificação de contrariedade de normas do direito interno com normas de direito internacional ou da desconformidade de decisões dos tribunais incidentes sobre o mesmo problema em relação a anteriores decisões do Tribunal Constitucional, abre o caminho para uma espécie de processo de qualificação de normas. Com efeito, se por qualificação de normas se entender a determinação da hierarquia de normas de direito internacional, então o TC tem um meio processual de, caso a caso, proceder a essa qualificação. Em conclusão: o TC verifica se uma norma convencional internacional faz parte do direito interno, se ela cria direitos e deveres para os particulares e qualifica essa norma para efeitos de inserção no plano da hierarquia das fontes de direito
(cfr. CRP, art. 119º/1/b).»
E no acórdão que se vem citando acrescentou-se ainda um fundamento só por si bastante para conduzir ao não conhecimento do recurso. Na verdade disse-se aí:
9. Acresce que, no caso presente, está em causa uma alegada incompatibilidade com uma norma constante de um tratado comunitário. Como escreveu JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA (O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes, Coimbra,
1998. p.1363 e segs., pág. 1371, há “(...) uma circunstância específica que nesta última” hipótese “ocorre e que, mais facilmente (ou com maior razão) do que na hipótese de contrariedade de uma norma interna com uma qualquer convenção internacional, pode (ou mesmo deve) conduzir a que se rejeite a qualificação da incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário como uma situação de ‘inconstitucionalidade’ que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar. Reside essa circunstância no facto de que, diferentemente (ou para além) do que sucede na recepção interna do direito internacional convencional em geral, a recepção do direito comunitário envolve (ou envolveu) também a dos mecanismos institucionais que visam especificamente garantir a sua aplicação. Ora, compreendendo a ordem jurídica comunitária – recebida nestes termos
‘compreensivos’ e globais pelo direito português, logo por via de uma cláusula da própria Constituição – uma instância jurisdicional precipuamente vocacionada para a sua mesma tutela (e não só no plano das relações interestaduais ou governamentais), e concentrando ela nessa instância a competência para velar pela aplicação uniforme e pela prevalência das suas normas, seria algo incongruente que se fizesse intervir para o mesmo efeito, e no plano interno, uma outra instância do mesmo ou semelhante tipo (como seria o Tribunal Constitucional). Dir-se-á, assim, que não deverá reconduzir-se a contrariedade de uma norma interna com outra de direito comunitário a uma categoria ou a um conceito dogmático cuja utilização ou aplicação na hipótese (embora possível num certo entendimento dele) implicaria retirar aos tribunais internos comuns a decisão definitiva daquela questão, na correspondente esfera”».
Estas considerações, que são completamente transponíveis para o caso sub judicio, conduzem, igualmente, a que este Tribunal não possa tomar conhecimento do presente recurso.
C- Decisão
6 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos