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Proc. n.º 226/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 - A., com os demais sinais dos autos, dizendo-se inconformado com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 20 de Fevereiro de 2003, que lhe negou provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Oliveira do Bairro, dele recorre para o Tribunal Constitucional, pretendendo que este aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação aí feita, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2 - Convidado por despacho do relator, no Tribunal Constitucional, a dar cabal cumprimento ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), o recorrente apenas veio explicitar o sentido segundo o qual a norma do art.º 359º do CPP havia sido interpretada pelo STJ, e que fora o “de (numa situação processual em que considerara estar-se perante um caso de alteração substancial dos factos descritos na acusação e não perante um caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação como havia ajuizado o tribunal recorrido) não exigir ser dada ao arguido a possibilidade de concordar ou não, de forma expressa, com a continuação da audiência de julgamento”.
3 - O Ministério Público requereu o julgamento do ora recorrente em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, imputando-lhe a prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, alínea a), e n.º
2, alínea e), do Código Penal (CP).
Durante a audiência de julgamento, o tribunal colectivo, depois de produzida a prova, mas antes das alegações orais, proferiu o seguinte despacho:
“Da prova produzida em audiência poderá resultar indiciada pelo arguido a prática de um crime de receptação - n.º 1 do artigo 231º do Código Penal - alteração esta não substancial da acusação, isto porque o arguido sabia que os bens apreendidos haviam sido furtados, e não obstante quis adquirir os mesmos, sabendo proibida a sua conduta”.
Não foi então levantada qualquer objecção a tal despacho judicial, nomeadamente por banda do arguido e o julgamento prosseguiu com a produção de alegações orais que se lhe seguiram.
A final, foi proferida decisão em que, além do mais, foi julgada improcedente e não provada a acusação quanto ao aludido crime de furto qualificado, dele se tendo absolvido o arguido, «convolando-se a acusação para o crime referido: condena-se o arguido A., como autor material de um crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3
(três) anos de prisão».
O arguido, ora recorrente, interpôs recurso para o STJ, quer do referido despacho de comunicação da «alteração não substancial dos factos», quer do acórdão final, tendo concluído a motivação respeitante ao primeiro recurso da seguinte forma:
«A) O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1º, nº 1, alínea f),
358º e 359º, todos do Código de Processo Penal. De facto, as alterações de facto que comunicou ao arguido após a produção da prova traduzem antes uma alteração substancial dos factos descritos na acusação já que traduzem a imputação de um crime diverso e autónomo - de receptação - daquele que lhe vinha imputado - de furto qualificado.
B) Ao ter consignado o despacho recorrido que se tratava de um caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação, e ter procedido o Tribunal a quo em conformidade com o disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal, violados foram ainda o princípio do contraditório e as garantias de defesa do processo criminal (artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). C) Pelo que o despacho recorrido é nulo por violação dos normativos supracitados, devendo ser declarado tal vício e ordenada a sua substituição por outro que cumpra os ditames do artigo 359º do Código de Processo Penal. Termos em que deve o presente Recurso ser considerado provido, com todas as consequências legais, nos termos mencionados nas conclusões, como é de DIREITO E JUSTIÇA.».
E, proferido o acórdão final, do mesmo, agora confortado com o benefício de apoio judiciário, entretanto logrado, interpôs novo recurso, agora confinado a este outro rol conclusivo:
«A) A imputação ao arguido de um crime de receptação dolosa p.p. pelo artigo
231º, n.º 1, do Código Penal, quando na acusação lhe vinha imputada a autoria de um crime de furto qualificado, constitui alteração substancial dos factos – o que deve ser declarado. B) O Acórdão recorrido, ao considerar tratar-se de alteração não substancial, incorreu em violação dos artigos 1º, n.º 1, alínea f), e 359º do Código de Processo Penal, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo
379º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal. C) O elemento subjectivo do tipo de receptação dolosa - intenção de obter vantagens patrimoniais - não estava inserido no texto da acusação (nem foi inserido na comunicação efectuada após a produção de prova). Ao acolher tal elemento subjectivo, a decisão condenatória incorreu em alteração substancial dos factos descritos na acusação. O que acarreta a nulidade da Sentença, nos termos dos normativos citados na conclusão anterior. D) Do mesmo modo, viola o Acórdão recorrido as garantias de defesa do processo criminal (plasmadas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), bem como o princípio do contraditório. E) Concomitantemente, declarada que seja a nulidade da Sentença, deve o Tribunal manter a absolvição do arguido pela prática do crime de furto qualificado, mandar extrair certidão de todo o processado, ordenar o arquivamento do processo e remeter essa certidão ao Ministério Público (vide artigo 359º, n.º 1, do Código Penal). F) Sem condescender, sempre se deverão considerar como violados pelo Acórdão recorrido os artigos 40º, 50º e 71º do Código Penal. Assim como os princípios da adequação, da proporcionalidade, da necessidade e da razoabilidade das penas. Atentos todos os factos provados, e demais considerações factuais do Acórdão recorrido, impunha-se a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, mas suspensa na sua execução. Termos em que deve o presente recurso ser considerado provido, nos termos enunciados nas conclusões, como é de DIREITO e JUSTIÇA!».
4 - Apreciando os recursos interpostos relativamente à alegada violação do disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal, com consequente nulidade da sentença, o acórdão recorrido discreteou do seguinte modo:
«Aqui chegados, importa então responder às questões postas pelo recorrente e acima sumariadas. A primeira questão - objecto de ambos os recursos - consiste em indagar se foi ou não violado o disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal e, por essa via, nomeadamente, o princípio do contraditório, e as garantias de defesa, como alega o recorrente. O processo penal, de estrutura acusatória, exige uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. A definição do thema decidendum na acusação é uma consequência da estrutura acusatória do processo. Para assegurar a plenitude da defesa, definido o objecto do processo na acusação, o tribunal não deveria, como regra, poder tomar em conta quaisquer outros factos ou circunstâncias que pudessem prejudicar a defesa antes estruturada. Sucede, porém, que por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo.(1) A liberdade de qualificação jurídica que no passado vigorava como presunção inilidível do conhecimento da lei, constituía uma importante derrogação ao princípio da acusação e do contraditório, já que o arguido acusado da violação de uma determinada norma poderia ser surpreendido pela condenação por outra sem que tivesse tido oportunidade de alegar as suas razões de facto e de direito sobre a norma que lhe era aplicada. Exige, porém, agora, a lei penal que o agente tenha consciência da ilicitude do facto, para que o que pode ser necessário que conheça a norma incriminadora. Por isso se vem entendendo que o tribunal não tem a liberdade de qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. É a indicação da norma incriminadora que dá aos factos naturais o seu sentido de desvalor jurídico-penal.(2) Mas o certo é que a referência à norma violada traduz apenas o sentido do desvalor do comportamento imputado ao arguido. Revela o interesse tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da protecção penal desse interesse e dos termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objecto da acusação.
«Ora, para que o agente tenha consciência da ilicitude do seu comportamento, não
é de exigir necessariamente o conhecimento da norma proibitiva, mas basta a consciência da protecção penal do interesse violado». A norma indicada na acusação dá o critério da valoração, revela ao acusado que é em função do desvalor penal que aquela norma traduz que é requerido o seu julgamento. Enquanto a variação do tipo incriminador não implicar alteração do critério essencial de valoração do interesse, o arguido não fica defraudado no direito de defesa»(3) De todo o modo, as meras alterações de qualificação jurídica têm assento processual no artigo 358º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Já o artigo 359º do mesmo Código contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime, a descoberta de um outro evento, ou a violação de uma outra norma incriminadora e ainda a descoberta de uma nova circunstância que agrave a pena aplicável ou a descoberta de um crime inteiramente distinto. Segundo o Mestre que vimos citando, o preceito correspondente do Código italiano prevê três hipóteses: - alteração de facto descrito na acusação; - revelação de um crime conexo cometido pela mesma acção ou omissão ou por outra acção ou omissão cometido em unidade de tempo e lugar ou revelação de uma circunstância agravante; - ou revelação de um facto novo. E o artigo 359º, n.º 1, abrange todas estas previsões do Código italiano. Pois bem. Se se tratasse in casu de mera alteração de qualificação jurídica, sem implicação alguma na descrição fáctica da acusação, o caso cabia, sem dúvida, na previsão do n.º 3 do artigo 358º. Porém, a não ter havido alguma modificação nos factos descritos, seria impossível a convolação do crime acusado - furto qualificado, p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 203º, n.º 1, e 204º, nºs 1, al. a), e 2, al. e) do Cód. Penal - para o de receptação previsto e punido no n.º 1 do artigo
231º do mesmo Código.
É que, tratando-se, embora, nos dois casos, de crimes contra o património(4)
-(5), o certo é que os crimes em causa são bastante diferentes na sua configuração típica objectiva e subjectiva, mormente naquela.(6) Daí que, no rigor das coisas, a alteração verificada, importando a alteração de um ou mais factos descritos na acusação, capazes de fazerem integrar a conduta acusada em crime distinto do acusado, se imponha como «alteração substancial dos factos», tal como emerge da definição do art.º 1º, f), do Código Penal. Donde, dever o caso ter merecido a convocação do formalismo do artigo 359º do Código de Processo, tal como defende o recorrente, pois, rigorosamente, não se tratou, apenas, de alterar a qualificação jurídica dos factos, antes, como se viu já, dos próprios factos acusados, donde não constava, designadamente, que o arguido tivesse adquirido por compra os objectos que lhe foram encontrados, bem como o correspondente elemento subjectivo. Mas fica-se por aqui a concordância com o recorrente. As regras dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, emanação directa do artigo 32º, n.º 5, da Constituição, destinam-se a garantir eficazmente o exercício do contraditório e do direito de defesa em geral. Daí que, submetida a situação emergente ao juízo do interessado, estando o MP e o assistente, se o houver, de acordo, a lei se baste com o consentimento dele para prosseguir com o objecto da acusação alterado. Na presunção de que, então, exercido o contraditório ou tendo-lhe sido dada oportunidade para o fazer, não há prejuízo relevante para o exercício do direito de defesa. Ora, no caso, como se viu do despacho supra transcrito, o tribunal recorrido, antes das alegações finais, informou o arguido da alteração de facto e de direito já que o alertou para que «a prova produzida em audiência», necessariamente distinta dos factos da acusação, apontava para a eventual convolação para o crime de receptação, ao invés do acusado crime de furto qualificado. Logo, ficou garantido o exercício do contraditório e do direito de defesa. Acontece que o arguido nada opôs, ali, ao que lhe foi transmitido pelo tribunal. Assim, embora tacitamente, deu o seu assentimento a que o julgamento prosseguisse, agora já com a informação da alteração do objecto do processo recebida e interiorizada. Assentimento tácito que também os demais sujeitos processuais concederam, mormente o MP. Logo, a remeter o caso para a previsão do n.º 2 do artigo 359º do Código de Processo Penal. E, assim, a precludir a possibilidade de, mais tarde, mormente em via de recurso, vir atacar a decisão de prosseguir o julgamento, a qual só foi tomada porque o recorrente silenciou qualquer oposição à comunicação que lhe foi feita. Tanto assim que, como resulta claro do disposto, quer do n.º 3 do artigo 359º, quer do n.º 1 do artigo antecedente, o requerimento para adequado exercício do direito de defesa proporcionado pela comunicação da alteração do objecto processual em causa, nomeadamente para concessão de prazo suplementar para o efeito, ou de oposição à alteração comunicada, tem de ser imediato.
É certo que o tribunal recorrido ter-se-á equivocado quanto à correcta qualificação da alteração que teve por «não substancial». Mas o arguido foi posto ao corrente da essência da alteração, que expressamente o advertira para a eventualidade de a prova produzida em audiência apontar para a prática de um crime de receptação previsto e punido no artigo 231º, n.º 1, do Código Penal, o que, necessariamente, implicava alteração dos factos correspondentes, mormente, ante a informação também prestada pelo tribunal recorrido de que, segundo tal prova, «o arguido sabia que os bens apreendidos haviam sido furtados, e não obstante quis adquirir os mesmos, sabendo proibida a sua conduta». Logo, conferindo-lhe todos os dados para ali se pronunciar e decidir a actuação que melhor se conformasse com o exercício dos seus aludidos direitos. Portanto, o eventual falado erro de perspectiva do tribunal a quo em nada afectou tais direitos de contradição e defesa, já que, em qualquer dos casos, isto é, fosse na previsão do artigo 358º, fosse na do artigo 359º, tal exercício nunca poderia ultrapassar a oposição à comunicação ou o mero requerimento para pedir prazo suplementar para o efeito. E, neste contexto, tal erro de perspectiva não terá passado de mera irregularidade, a ser arguida no acto – art.º 123º, do Código de Processo Penal. Conclui-se, assim, que, não tendo sido violado nem o direito de exercício do contraditório nem o de defesa em geral, não padece a sentença recorrida da nulidade que, a propósito, o recorrente lhe assaca em via de recurso.».
5 - Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, assim concluiu o recorrente a sua motivação antes expendida:
«1° O Tribunal da Comarca de Oliveira do Bairro, e no que concerne ao Processo Comum Colectivo n.º 40/01.2 GAOBR, ao condenar o arguido ora Recorrente pela prática de um crime de receptação dolosa, quando na acusação lhe vinha imputada a autoria de um crime de furto qualificado, incorreu em alteração substancial dos factos descritos na acusação.
2° O elemento subjectivo do tipo de receptação dolosa não estava inserido no texto da acusação, não tendo igualmente sido inserido na comunicação efectuada após a produção da prova.
3° O Tribunal de Primeira Instância apenas se referiu, ainda que sumariamente,
à eventualidade da prova produzida em audiência apontar para a prática de um crime de receptação, nunca chegando a concretizar tal entendimento, até ao momento do Acórdão.
4° O arguido ora recorrente em momento algum foi questionado relativamente à sua concordância, ou não, com a continuação da audiência de julgamento, concordância que, na verdade, aquele primeiro nunca expressou.
5° O artigo 359° do Código de Processo Penal exige a concordância expressa do arguido para que o julgamento prossiga, tendo para isso, obrigatoriamente, o Tribunal de o questionar se concorda ou não com tal continuação, o que não fez, tendo assim violado o artigo 359º do Código de Processo Penal.
6° Ao não interpretar o artigo 359º no sentido acima descrito, violou o STJ as garantias de defesa do processo criminal, plasmado no artigo 32°, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio do contraditório.
7° Nestes termos, deverá a interpretação efectuada pelo S.T.J. do artigo 359º do Código de Processo Penal ser declarada inconstitucional e, necessariamente, ser o Acórdão proferido declarado nulo por força do artigo 379º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, alterando-se a decisão em conformidade.».
6 - O Ministério Público contra-alegou, defendendo o não conhecimento do recurso e, subsidiariamente, o seu não provimento, com base nas razões levadas á seguinte síntese conclusiva:
«1º - Atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, carece de utilidade a apreciação do mérito das questões da eventual ofensa a preceitos ou princípios da Lei Fundamental, quando nenhuma influência ou efeito relevante possa ter na decisão recorrida.
2º - Tendo esta caracterizado a situação em apreço como de mera irregularidade, entretanto sanada, por falta de reacção em tempo útil, não se questionando em termos de constitucionalidade o quadro normativo, nesta concreta sede aplicado, não deve conhecer-se do objecto do recurso.
3º - A ter-se entendimento diverso, deverá o recurso improceder, uma vez que não
é exigência constitucional, face a uma alteração substancial de factos descritos na acusação, que o arguido tenha que formal e expressamente consentir no prosseguimento do julgamento pelos novos factos, nos termos do n° 2 do artigo
359° do Código de Processo Penal, quando, tendo previamente tomado conhecimento de poder vir a ser condenado por crime diverso, nada disse ou requereu, no exercício dos seus direitos e garantias de defesa, ainda que tal situação tivesse incorrectamente sido configurada como se de uma alteração não substancial se tratasse.».
7 - Ouvido sobre a questão prévia do não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, o recorrente respondeu-lhe do seguinte modo:
«1. O recorrente, e atento todo o sentido tanto das Alegações do seu recurso, como das Conclusões ora apresentadas, arguiu a nulidade do Acórdão que condenou o arguido pela prática do crime de receptação, por violação do artigo 379°, n.º
1, alínea b), do Código de Processo Penal, nulidade essa arguível mediante Recurso.
2. Na verdade, o que está verdadeiramente em causa é saber se o Tribunal de Primeira Instância deu ou não cumprimento ao preceituado no artigo 359º do Código de Processo Penal e se, não o tendo feito, tal poderá ter influência na decisão condenatória.
3. Nos termos do já referido artigo 379º , n.º 1, alínea b), 'É nula a sentença ... que condenou por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos
358° e 359º' - sublinhado nosso - sendo este manifestamente, o caso.
4. Ao entender-se que o Tribunal de Primeira Instância não deu cumprimento ao estatuído no artigo 359º do Código de Processo Penal (como pugnamos), estamos perante uma verdadeira nulidade (da decisão), e não uma mera irregularidade de procedimentos.
5. A questão levada ao conhecimento do Tribunal Constitucional e, concomitantemente, a decisão deste último, influirá, necessariamente no julgamento de causa, uma vez que, concluindo pela inconstitucionalidade da interpretação realizada pelo S.T.J. do artigo 359º do Código de Processo Penal, o Acórdão condenatório proferido será, necessariamente nulo.
6. Por outro lado, e tal como foi por nós salientado nas Conclusões apresentadas, e uma vez que não foi questionado sobre a sua concordância ou não relativamente à continuação do julgamento pelos factos novos (receptação), o Recorrente também em momento algum prestou o seu consentimento (quer expresso, quer tácito), não se tendo, por isso, verificado qualquer sanação, até porque não é de uma mera irregularidade (como atrás já evidenciámos) que se trata.
Assim, nunca estaremos no âmbito do artigo 359º n° 2, mas sim, no âmbito do artigo 359º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
7. Atente-se, ainda, ao disposto no artigo 79°-D da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, que, para todos os devidos e legais efeitos, aqui se invoca.»
B – A fundamentação
8 - Da delimitação do objecto do recurso
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente incluiu como objecto do mesmo as normas dos artigos
358º e 359º do CPP, “na interpretação feita pelo acórdão recorrido”. Acontece, porém, que nas alegações de recurso o recorrente veio a abandonar, como se colhe das respectivas conclusões acima transcritas, a questão da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 358º do CPP. É sabido que, embora o objecto do recurso de constitucionalidade seja delimitado no requerimento de interposição de recurso pelo pedido feito ao Tribunal de apreciação da
(in)constitucionalidade de certas normas, pode esse objecto ser restringido nas alegações de recurso (mas não aumentado ou modificado), de acordo com o disposto no art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao processo constitucional por força do disposto no art.º 69º da LTC. Aliás, o recorrente já havia abandonado essa questão aquando da apresentação do requerimento complementar de interposição do recurso, apresentado em resposta ao convite do relator efectuado nos termos do art.º 75º-A, n.º 5, da LTC, ao não definir qual a dimensão normativa daquele art.º 358º do CPP que teria sido determinada por via interpretativa pelo acórdão recorrido, desse modo inviabilizando, desde logo, que o tribunal pudesse conhecer da sua conformidade com a Lei Fundamental. Tem-se, pois, por restringido o objecto do recurso à norma do artigo 359º do CPP.
Anote-se, no entanto, que a questão de constitucionalidade que o recorrente pretende colocar sob os referidos termos verbais constantes do seu requerimento complementar de interposição de recurso – e que corresponde à acepção normativa efectivamente aplicada – é a de saber se pode ser havido como acordo do arguido com a continuação do julgamento pelos factos novos a que alude o n.º 2 do art.º
359º do CPP uma situação de alteração substancial dos factos descritos na acusação subsumível ao regime do n.º 1 do mesmo art.º 359º do CPP, mas comunicada ao arguido como importando apenas uma alteração não substancial da acusação, quando este, de imediato, nada tenha então dito ou requerido.
9 - Da questão prévia
O Ministério Público suscita a questão prévia do não conhecimento do recurso por, dada a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, carecer de utilidade a apreciação da questão de inconstitucionalidade definida pelo recorrente, em virtude de não vir questionada a constitucionalidade do quadro normativo ao abrigo do qual se considerou sanada a irregularidade da comunicação da alteração da acusação feita ao arguido. Como se colhe do acima relatado, maxime, no respectivo excerto que se deixou transcrito, o acórdão recorrido entendeu que, conquanto os concretos termos da comunicação feita ao arguido em audiência de julgamento, de alteração da acusação, se ajustem a uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, e logo a uma alteração substancial da acusação - e não, como entendeu o despacho da 1ª instância, a uma alteração não substancial da acusação - o certo é que cabia ao arguido deduzir imediatamente oposição ao prosseguimento da audiência sob pena de se considerar que deu assentimento, embora tacitamente, a que o julgamento prosseguisse, “a precludir a possibilidade de mais tarde, mormente em via de recurso, vir atacar a decisão de prosseguir o julgamento, a qual só foi tomada porque o recorrente silenciou qualquer oposição à comunicação que lhe foi feita”.
Mais considerou o acórdão recorrido que, numa situação, como a dos autos, em que o “arguido foi posto ao corrente da essência da alteração, que expressamente o advertira para a eventualidade de a prova produzida em audiência apontar para a prática de um crime de receptação previsto e punido no artigo
231º, n.º 1, do Código Penal, o que necessariamente implicava alteração dos factos correspondentes, mormente ante a informação também prestada pelo tribunal recorrido de que, segundo tal prova, “o arguido sabia que os bens apreendidos haviam sido furtados, e não obstante quis adquirir os mesmos, sabendo proibida a sua conduta” - e, “logo conferindo-lhe todos os dados para ali se pronunciar e decidir a actuação que melhor se conformasse com o exercício dos seus aludidos direitos” - se estava perante um erro de perspectiva (relativo a matéria de direito) do tribunal a quo que “em nada afectou tais direitos de contradição e de defesa, já que, em qualquer dos casos, isto é, fosse na previsão do artigo
358º, fosse na do artigo 359º, tal exercício nunca poderia ultrapassar a oposição à comunicação ou o mero requerimento para pedir prazo suplementar para o efeito”, e que, “neste contexto, tal erro de perspectiva não terá passado de mera irregularidade, a ser arguida no acto - art.º 123º do Código de Processo Penal”.
Respondendo à questão prévia suscitada, o recorrente defendeu a utilidade do conhecimento do recurso de constitucionalidade com o fundamento de que, em síntese, a proceder a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo STJ do art.º 359º do CPP, o acórdão condenatório será nulo, sendo essa nulidade uma nulidade de decisão cabível no art.º 379º, n.º 1, alínea b), do CPP, e não uma mera irregularidade de procedimentos, além de que, nunca tendo o arguido sido questionado expressamente sobre se concordava com a continuação do julgamento pelos factos novos, o recorrente em momento algum deu o seu consentimento.
Antes de mais cabe notar que do discurso do acórdão recorrido não é possível inferir qualquer posição do tribunal afirmada sem reserva de outro entendimento no sentido de que o erro de subsunção jurídica da concreta materialidade factual comunicada ao arguido e pela qual este passava a responder na audiência de julgamento – erro esse consubstanciado em a referida alteração ser havida pelo tribunal como alteração não substancial da acusação sujeita ao regime do art.º
358º do CPP e não como alteração substancial da acusação subsumível ao regime do art.º 359º do mesmo código, como veio a entender o STJ - tem a natureza de uma irregularidade (ou nulidade) que deva ter-se por sanada por falta de atempada arguição. O STJ abordou a questão dos termos factuais e jurídicos em que foi feita a comunicação ao arguido da alteração da acusação essencialmente sob o prisma material ou substancial, indagando sobre se eles violariam “o direito de exercício do contraditório e o direito de defesa em geral” e concluindo pela negativa. Trata-se de uma análise própria de um reexame da questão de fundo relativa à alteração substancial da acusação, traduzido em saber quais os efeitos que decorreram do erro de qualificação jurídica em que o tribunal de 1ª instância havia incorrido, e não de uma apreciação sobre se se verificou a prática ou omissão de um acto processual que fosse sancionado pela lei com a sanção da nulidade ou da irregularidade. Ao referir que, no contexto em que fora feita a comunicação ao arguido, “tal erro de perspectiva não terá passado de mera irregularidade, a ser arguida no acto - art.º 123º do Código de Processo Penal”, o acórdão recorrido não diz que esse erro de julgamento da alteração da acusação constitui uma irregularidade que devia ser arguida nos termos do art.º 123º do CPP, mas, postando-se num plano de avaliação e valoração dos efeitos jurídicos que decorreram desse erro de qualificação, que a afectação do direito de contraditório e do direito de defesa sofrida pelo arguido equivaleria a uma mera irregularidade. Acresce que a “preclusão” da possibilidade de alegação de não concordância com a continuação do julgamento, em momento posterior ao da comunicação da alteração da acusação, de que fala o acórdão recorrido, não é entendida, aí, enquanto efeito jurídico que esteja previsto na lei para a prática ou omissão de qualquer acto processual, mas antes como uma ilação factual que o tribunal retira da postura de silêncio tomada pelo arguido, aquando dessa comunicação. Assim sendo, não tendo a existência de qualquer irregularidade que devesse considerar-se sanada constituído ratio decidendi da irrelevância do erro de qualificação da alteração substancial da acusação comunicada ao arguido considerada pelo tribunal, não pode considerar-se que o recorrente estivesse obrigado, para garantir a utilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da norma do art.º 359º do CPP, na interpretação acima definida, a questionar também a conformidade constitucional da norma do art.º
123º do CPP num entendimento segundo o qual o erro de qualificação da alteração substancial da acusação comunicada ao arguido constituiria simplesmente uma irregularidade processual que se sanaria pela falta de arguição atempada. Improcede, pois, a questão prévia alegada pelo Ministério Público, razão pela qual se passa a tomar conhecimento do recurso.
10 - Do mérito do recurso
Desde já importa anotar que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da decisão recorrida na perspectiva da correcta aplicação da lei ordinária, mas tão-só apurar se o resultado interpretativo a que o acórdão recorrido chegou viola ou não disposições ou princípios constitucionais.
O artigo 359º do Código de Processo Penal, cuja conformidade à Lei Fundamental, na dimensão apontada, se questiona, dispõe o seguinte:
«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para a preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário».
A questão da alteração substancial da acusação tem sido frequentemente abordada na jurisprudência do Tribunal Constitucional a propósito das normas conjugadas dos artigos 1º, n.º 1, alínea f), e 359º do CPP, tendo-se concluído sempre pela sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, quando a diversa qualificação jurídico-penal dos factos implicasse a condenação do arguido em pena mais grave, mas isso apenas na medida em que não previa que ao arguido fosse dado conhecimento da nova qualificação e se lhe desse, quanto a ela, oportunidade de se defender [cfr. Acórdãos n.º 137/92, Diário da República, II Série (DR, II Série), 18.09.92; n.º 279/95, DR, II Série, 28.07.95; n.º
402/95, DR, II Série, 16.11.95; n.º 22/96, DR, II Série, 17.05.96; n.º 596/96, DR, II Série, 6.07.96; n.º 16/97, DR, II Série, 28.02.97; n.º 58/97, de
29.01.1997, inédito; n.º 179/97, DR, II Série, 19.04.97; n.º 330/97, DR, II Série, 3.07.97].
Também no Acórdão n.º 445/97 (publicado no DR, I Série-A, de 5 de Agosto de 1997) o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, «por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição -, da norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3,
309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de “Assento n.º
2/93”, na 1ª Série-A do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».
Ainda, num caso em que estava em causa uma alteração dos factos constantes da acusação, o Tribunal julgou “inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República (Acórdão n.º 674/99, DR, II Série, 25.02.2000).
Toda esta jurisprudência assenta na ponderação de dois pilares constitucionais dogmáticos do processo penal: de um lado, o de que o processo penal tem estrutura acusatória (art.º 32º, n.º 5, da CRP) e é pela acusação que se define o objecto do processo (thema decidendum) nas fases jurisdicionais
(princípio da vinculação temática do processo); do outro lado, o de que ao arguido é sempre assegurado o direito de ser ouvido e de contradizer a acusação
– direito de audição e de contraditório (art.º 32º, n.º 1, da CRP).
No seu Acórdão n.º 173/92 (DR, II Série, de 18 de Setembro de 1992), a propósito da norma ínsita no n.º 2 do art.º 418º do Código de Justiça Militar, e na parte em que permite que o tribunal condene por infracção diversa daquela pela qual o arguido foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os factos integrantes do tipo se encontrem descritos no libelo acusatório, este Tribunal questionou-se, após discretear sobre os fundamento e “alcance do princípio do contraditório, expresso na regra da tramitação contraditória de determinadas fases do processo”, se um tal princípio seria respeitado pela norma então em apreciação.
E a esse propósito escreveu-se aí:
«[...] A acusação, libelo ou requerimento acusatório, bem como o despacho judicial que os aprecia, representam a síntese da pretensão punitiva do Estado-Administração face ao arguido. São o coroar de todo um trabalho de investigação e de análise jurídica tendente à apresentação da causa ao tribunal do julgamento. Ora, assim como parece perfeitamente razoável que a defesa, na fase do julgamento, possa beneficiar, em princípio, de quaisquer deficiências da acusação em matéria de descrição dos factos, assim também não repugnará que a defesa beneficie de quaisquer deficiências da acusação em matéria de qualificação jurídico-penal desses mesmos factos, principalmente quando sobre a acusação recaiu uma pronúncia feita por um juiz, pronúncia que, ao fim e ao cabo, constitui um primeiro crivo de apreciação dos fundamentos factuais e jurídicos de tal acusação. Pelo menos, essa solução não parece menos razoável do que permitir a possibilidade de uma condenação que manifestamente exceda a pretensão punitiva constante da acusação e recebida na pronúncia.
[...] Mas, de qualquer modo, quando não se queira subordinar o poder de julgamento do tribunal a um eventual erro de qualificação da acusação e da pronúncia, então indispensável será obter um dispositivo processual que permita uma correcta qualificação sem que isso implique prejuízo para a defesa do arguido.
É que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa.
[...]».
E, passando a enfrentar a questão específica de inconstitucionalidade que aí se debatia, disse mais:
«[...]
É certo que a necessidade desta indicação [reportava-se ao dever de a acusação e a pronúncia indicarem a lei que proíbe e pune os factos, com a fito de destinar esclarecer principalmente o arguido sobre a imputação jurídico-penal que lhe era dirigida] não decorre de norma constitucional expressa; mas decorre necessariamente do princípio do contraditório, e particularmente do princípio da acusação e da defesa, na medida em que tal defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto uma incriminação legal precisa (mesmo que eventualmente se admita a possibilidade de uma rectificação posterior dessa incriminação, que é justamente a matéria que aqui se discute).
[...] Ora a referida preparação da defesa pode ser gravemente prejudicada não só se a acusação for omissa no que diz respeito à incriminação legal dos factos, mas também se, depois de encerrada a discussão, o tribunal vier a optar por uma qualificação jurídico-penal com que a defesa não contava. Não só a estratégia da defesa do arguido como a própria utilidade da defesa produzida podem resultar inteiramente frustradas por essa surpresa processual, conforme notam Silva e Sousa e Eduardo Correia [...].»
Por seu lado, no Acórdão n.º 279/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., pp. 389) afirmou-se a respeito do direito de ser ouvido e do direito de contraditório, em caso de alteração da acusação:
«O “direito a ser ouvido”, enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente as tomadas contra o arguido, traduz um dos aspectos fundamentais do direito de defesa. Esse direito é, na ordem jurídica norte-americana, um elemento fundamental do “justo processo legal” - o “due process of law” referido na V Emenda - possibilitador da aplicação de sanções criminais (Norman Vieira, Constitutional Civil Rights in a Nutshell, 2ª ed. St. Paul, Minnesota, 1990, pág. 36 e segs). Frisou-se no já por diversas vezes referido Acórdão n.º 173/92, - e tem total aplicação à presente situação - que um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso. Dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.) em termos que de modo algum podem ceder perante os valores subjacentes à liberdade
(mesmo que lhe chamemos correcção) na qualificação jurídica do comportamento descrito na acusação.
É da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados factos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (v. artigos 283º, n.º 3, e 308º, n.º 2, do CPP), é fornecido ao arguido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase do julgamento - destinando-se esta, aliás, à sua comprovação - e é em função dele que o arguido organiza a respectiva defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui como se disse um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta. As limitações quanto à possibilidade de conhecimento de novos factos (artigos
358º e 359º do CPP) visam precisamente impedir que o arguido seja confrontado com uma subsunção diversa daquela em função (na previsão) da qual preparou a sua defesa. Ora, é diverso e - num processo após a acusação ou a pronúncia - é novo tanto o modelo de subsunção que recaindo sobre novos factos leva a uma incriminação diversa, como o modelo que baseando-se nos mesmos factos tem como ponto de chegada uma incriminação diversa. Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. A solução está assim na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação, quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.».
E no referido Acórdão n.º 445/97, depois de assumir o discurso do Acórdão n.º
173/92, acima transcrito, discreteou-se sobre a mesma matéria, pelo seguinte modo:
«Naquelas garantias, indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo; e, em consequência, para que se efective adequadamente um tal direito, mister é que a lei adjectiva criminal preveja os adequados mecanismos possibilitadores, quer para alertar o arguido de que o tribunal do julgamento entende que não foi correcta a subsunção jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia
- subsunção essa que implicaria uma condenação criminal menos grave do que aquela intentada pelo juízo do julgamento -, quer para lhe facultar a oportunidade de, quanto à nova qualificação, exercer cabalmente os seus direitos de defesa. Como tem sido enfatizado pelas doutrina e jurisprudência constitucionais, as
“garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação” (palavras do Acórdão n.º 54/87 deste Tribunal publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17 de Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constituionais do princípio do contraditório “o direito do arguido ... de se pronunciar e contraditar ... argumentos jurídicos trazidos ao processo” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 206). Pois bem: Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada. Para obstar a um tal inconveniente não é forçoso que a porventura incorrecta qualificação jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia venha a subsistir na decisão do julgamento. Bastará que a perspectiva assumida pelo tribunal do julgamento seja transmitida ao arguido e lhe seja dada oportunidade de, quanto a ela e caso o deseje, se defender.».
A dimensão normativa que está concretamente em apreciação sub specie constitutionis não versa propriamente, ao contrário do que se passou nos casos apreciados nos acórdãos cujos excertos da fundamentação se transcreveram, sobre o dever de comunicação ao arguido da alteração dos factos e da respectiva qualificação jurídica constantes da acusação pelos quais respondeu, mas antes sobre a questão de saber se o princípio da estrutura acusatória do processo penal, o direito do arguido a ser ouvido e o direito de contraditório, consagrados no art.º 32º da CRP, postulam, no plano constitucional, que possa ser havido como acordo do arguido com a continuação do julgamento pelos factos novos a que alude o n.º 2 do art.º 359º do CPP, o silêncio do arguido, numa situação de alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia subsumível ao regime do n.º 1 do mesmo art.º 359º do CPP, mas comunicada ao arguido como importando apenas uma alteração não substancial da acusação.
O acórdão recorrido defendeu a resposta afirmativa com base, em síntese, no entendimento de que, tendo o arguido sido informado da «essência da alteração de facto e de direito», «já que [o tribunal] o alertou para que “a prova produzida em audiência”, necessariamente distinta dos factos da acusação, apontava para a prática de um crime de receptação, ao invés do acusado crime de furto qualificado», «ante a informação também dada pelo tribunal de que, segundo tal prova, “o arguido sabia que os bens apreendidos haviam sido furtados e não obstante isso quis adquirir os mesmos, sabendo proibida a sua conduta”» «[...] ficou garantido o exercício do contraditório e do direito de defesa” e que nada tendo oposto, «ali, ao que lhe foi transmitido pelo tribunal, [...] embora tacitamente, deu o seu assentimento a que o julgamento prosseguisse, agora já com a informação da alteração do objecto do processo recebida e interiorizada”.
Na perspectiva do acórdão recorrido será irrelevante, pois, do ponto de vista do respeito pelas garantias constitucionais do arguido a ser ouvido sobre os factos pelos quais pode vir a ser condenado, do contraditório e do direito de defesa, que lhe seja comunicado que a alteração dos factos constantes da acusação pelos quais passa a responder, é uma alteração não substancial (com enquadramento no art.º 358º do CPP) ou uma alteração substancial (sujeita ao regime do art.º 359º do CPP), e este nada tenha oposto aquando de tal comunicação, desde que esta seja feita em termos de o arguido ficar ao corrente da “essência da alteração dos factos” pelos quais poderá vir a ser condenado e da sua qualificação jurídica. Em rectas contas, a posição do tribunal a quo conduz a que, em tal situação, os regimes estabelecidos nos artigos 358º e 359º do CPP se justaponham. Mas uma solução deste tipo choca, como se verá, com a garantia constitucional de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, com o princípio de que o processo penal tem estrutura acusatória e com o princípio do contraditório.
Discorrendo sobre o quadro constitucional justificante do princípio da vinculação temática do processo penal que informa o regime estabelecido nos art.ºs 358º e 359º do CPP, escreveu-se no referido Acórdão n.º 674/99:
«61. No seu artigo 32º, a Constituição da República Portuguesa estabelece, entre os direitos, liberdades e garantias pessoais, as Garantias de processo criminal. Nos termos do preceituado nesse artigo 32º, «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» (n.º 1), sendo que o mesmo
«processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» (n.º 5). A propósito do princípio acusatório, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que ele «é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e
«uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial», significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205). Relativamente ao princípio do contraditório, assinalam os mesmos comentadores que ele implica o dever «de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão», bem como o «direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão», e ainda o «direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo», sendo certo que «o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição» (ibidem, nota X ao artigo 32º, pág. 206).
62. Os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente no quadro de um sistema processual que tem também – como vimos – de assegurar todas as garantias de defesa, ou seja, no quadro de um processo penal justo e equitativo. Escreveu-se no Acórdão n.º 172/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 350), acerca das garantias de defesa do arguido: O processo penal há-de, assim, configurar-se - como se disse já - em termos de ser 'um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido'
(cf. Acórdão deste Tribunal n.º 61/88, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n. 375, p. 138; cf. também o já citado acórdão n.º 393/89).
[...] O princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar o seu direito de defesa. “A máxima audiatur et altera pars ou ne absens damnetur” é, justamente, no dizer de EDUARDO CORREIA, “a expressão”, nesse sentido, “do princípio do contraditório” (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 110º, p. 99). Dizendo com a Comissão Constitucional, no seu Parecer n.º 18/81, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, volume 16º, p. 147: o sentido essencial do princípio do contraditório “está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar”. A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a sentença.
63. Como realça Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 45), a concepção típica de um «processo acusatório» implica a «estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa», em sede de determinação do objecto do processo como em sede de poderes de cognição e dos limites da decisão. E, mais adiante (id., pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma este autor:
Deve pois firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal [...] e a extensão do caso julgado. Como também se pode ler no Acórdão n.º 173/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 361): A questão não pode ser apresentada ao tribunal para julgamento sem que tenha sido previamente delimitado o seu objecto num documento (a acusação, ou requerimento acusatório) que indique os factos de que o arguido é acusado e qual o seu enquadramento jurídico-penal (esta questão está sistematicamente concatenada com o princípio da legalidade vigente em direito penal substantivo, do qual decorre a necessidade de fixação prévia de um determinado quadro fáctico e de uma determinada moldura penal adequada a esse quadro fáctico); por vezes, exige-se até que um juiz se pronuncie previamente sobre essa acusação (através da pronúncia) antes de a questão ser apresentada ao tribunal do julgamento. Mas a acusação não basta, porque é preciso dar também ao arguido a possibilidade de produzir ele próprio um documento (a contestação) que contrarie o anterior. Em segundo lugar, o princípio da correlação entre acusação e sentença. Como a acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da acusação e o tribunal não pode, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte acusadora, apreciar questões diversas das descritas na acusação, julgar um arguido por factos que foram atribuídos a outro, nem muito menos julgar pessoas nela não indicadas. Uma norma legal que o permitisse violaria este princípio processual penal. Como assinala António Quirino Duarte Soares (ibidem – “Convolações” in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo III, 1994, pp.14), do «princípio da acusação (segundo o qual é esta que define e fixa perante o juiz o objecto do processo)» decorre logicamente um outro princípio, corolário do primeiro - «tal princípio é o da identidade do objecto do processo, que representa a ideia de que o objecto da acusação se deve manter idêntico, o mesmo, desde aquela, até à sentença final». Ora, este princípio da identidade do objecto do processo significa, desde logo, que a correlação entre a acusação e a pronúncia se há-de prolongar numa necessária correlação entre a pronúncia e a sentença. Quando esta imputar ao arguido factos absolutamente novos, estranhos ao objecto do processo, tal como este resulta da pronúncia, ainda aí se estará, pois, perante uma ofensa ao princípio do acusatório.».
É dentro desta axiologia constitucional que há que situar os art.ºs
358º e 359º do CPP. Tais preceitos não pretendem mais do que expressar os limites da alteração temática do processo penal constitucionalmente admissíveis
à face destes princípios do asseguramento de todas as garantias de defesa, da estrutura acusatória do processo e do contraditório, distinguindo as situações de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia da alteração substancial, e, ainda, enunciar os instrumentos jurídicos cuja realização pretende fazer corresponder ao nível de concretização da normatividade constitucional decorrente de tais princípios, em cada uma dessas diferentes situações. Porque são muito diferentes a extensão e intensidade com que esses princípios sairiam afectados nas duas situações de alteração temática do processo configuradas nos art.ºs 358º e 359º, bem diferentes teriam que ser, e são, as exigências da sua admissibilidade. Digamos que a diferença de regimes
é necessariamente consequenciada pela medida em que esses princípios poderão sair afectados.
Tratando-se de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que tenha relevo para a decisão da causa, nela se incluindo a mera alteração jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, permite o art.º 358º do CPP que essa alteração temática do processo possa ser tida em conta pelo tribunal do julgamento no apuramento e na definição da responsabilidade criminal do arguido. No entanto, por mor do respeito devido aos referidos princípios, o preceito impõe que se comunique ao arguido essa alteração e que se lhe conceda o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. A comunicação da alteração temática havida e a concessão do tempo necessário para a preparação da defesa, dispensada por razões evidentes de desnecessidade quando a alteração derive de posição tomada pela própria defesa, apresentam-se como modos que procuram dar cabal satisfação às exigências postuladas pelos princípios examinados.
Já no caso de se tratar de alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o n.º 1 do art.º 359º do CPP impede que ela possa ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso. É um simples postulado dos princípios da estrutura acusatória do processo penal e da sua consequente vinculação temática, do contraditório e do asseguramento das garantias de defesa. Contra o respeito por um tal resultado não valem apenas por si, em tal hipótese, os argumentos do interesse público de celeridade na reparação do mal do crime e do aproveitamento da actividade desenvolvida pelos sujeitos processuais e pelo tribunal que são invocados, na outra situação, para justificar a continuação do julgamento no caso de alteração não substancial dos factos. A situação ofende em tão elevado grau e intensidade aqueles princípios que o legislador, movendo-se dentro dos critérios dos n.ºs 2 e 3 do art.º 18º da Constituição, não poderia optar por outra solução. Mas existe uma excepção, prevista no n.º 2 daquele art.º 259º do CPP - a dos “casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal”, sendo que nestes casos “o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para a preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário”. Note-se, no entanto, que, sendo exigido o acordo de todos os titulares dos interesses contrapostos que se digladiam em processo penal para que o julgamento possa prosseguir com o novo thema, a situação continua a ser de inteiro respeito pelos direitos e garantias constitucionais de cada um.
Vale isto por dizer que os preceitos dos artigos 358º e 359º do CPP surgem como disposições referentes ao estatuto substantivo do arguido em processo penal, na fase de julgamento, demandando o enquadramento da situação em um ou em outro desses preceitos por parte do tribunal a satisfação de diferentes exigências cuja configuração está informada directamente pela axiologia transportada pelos referidos princípios e o exercício de diferentes direitos de defesa.
Sendo assim, a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem a natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem a natureza de substancial corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido em uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito infraconstitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violando o n.º 1 do art.º 32º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento apenas possa continuar se ele der o seu acordo a essa continuação e o mesmo fizerem o Ministério Público e o assistente. Por outro lado, são também diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa: enquanto no caso do art.º 358º do CPP, ele apenas dispõe do tempo que o juiz considerar estritamente necessário, no caso do art.º 359º do CPP, ele poderá reclamar um prazo até 10 dias.
Dir-se-á que o arguido deverá controlar a qualificação jurídica feita pelo tribunal relativamente à alteração dos factos que lhe são comunicados e pelos quais passa a responder e, como entendeu o acórdão recorrido, que o seu silêncio significará dar o seu acordo à continuação do julgamento pelos novos factos.
Mas nenhum destes argumentos merece aceitação. Em primeiro lugar, a imposição ao arguido, que se encontra concentrado na defesa contra uma acusação da prática de certo(s) crime(s), de um ónus processual de imediatamente ter de reagir contra o erro de qualificação cometido pelo tribunal sobre a natureza da nova imputação dos factos e respectiva subsunção jurídica que lhe é feita no decurso do julgamento, da qual decorre que passa a responder por outro(s) crime(s) – solução para onde caminhou o acórdão recorrido – dificilmente se concilia com o reconhecimento de que o direito de defesa não pode deixar de demandar a disponibilidade de um tempo razoável de reflexão que permita exercê-lo de modo efectivo e eficaz, surgindo como um cerceamento manifestamente desproporcionado. Note-se, aliás, que foi exactamente com base nesta dimensão do direito de defesa que este Tribunal, no seu recente Acórdão n.º 203/04, publicado no Diário da República II Série, nº 130, de 3/6/2004, p. 8641 e também disponível em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia, julgou inconstitucional a norma constante do art.º 123º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no “sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência de julgamento, perante tribunal singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a necessária diligência”. Em segundo lugar, não se vê razão suficiente para colocar o arguido, sem a sua concordância, em posição substancialmente diferente quanto à oportunidade do exercício do seu direito de defesa da que dispõe quando é notificado da acusação ou da pronúncia “originárias”, como decorre do entendimento do mesmo ser obrigado a reagir imediatamente contra o despacho de alteração do thema do processo prolatado pelo tribunal no decurso do julgamento, quando este importe uma alteração substancial da acusação ou da pronúncia. Por outro lado, a comunicação feita pelo tribunal não poderá deixar de ser vista pelo prisma do princípio de processo penal de fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (formulação acolhida do Acórdão n.º 394/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., II, págs.
1087 e segs.). Assim sendo, não é de exigir que o arguido deva olhar, imediatamente, com desconfiança para a qualificação da alteração temática do processo, dado que a mesma é feita por um tribunal que deve agir com imparcialidade e independência e que está obrigado a respeitar o seu estatuto processual. Nesta linha de pensamento, não só não é de impor ao arguido qualquer ónus de tomada imediata de posição quanto à correcção da qualificação da alteração feita, como se impõe concluir que, na medida em que implica um “encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa”, haverá que considerar-se constitucionalmente ilegítimo o entendimento normativo seguido pelo tribunal a quo.
Depois, mesmo dentro da lógica do acórdão recorrido, não poderá sem quaisquer reservas valorar-se como correspondendo ao seu acordo com a alteração substancial dos factos a circunstância de o arguido nada ter oposto imediatamente à comunicação. É que, mesmo a sustentar-se – sem a existência de disposição legal que atribua esse valor jurídico ao silêncio e sem questionar a sua constitucionalidade - a possibilidade de formação de um acordo tácito, em caso de silêncio do arguido, não será de inferir esse sentido fora do quadro dos pressupostos constitutivos dos motivos determinantes da vontade: ora ao arguido foi comunicado que a alteração temática do processo tinha a natureza de não substancial, em contrário da natureza que lhe atribuiu o acórdão recorrido. Deste modo, não poderia ser entendido o silêncio mantido sobre uma situação processual comunicada como expressando um acordo relativamente a uma outra diferente situação processual.
C – A decisão
11 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do art.º 359º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de, em situação em que o tribunal de julgamento comunica ao arguido estar-se perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, quando a situação é de alteração substancial da acusação, pode o silêncio do arguido ser havido como acordo com a continuação do julgamento;
b) conceder provimento ao recurso revogando o acórdão recorrido que deverá ser reformado em função do juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos
(1) Cfr., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, 2ª edição, Verbo 2000, págs. 273-4
(2) Cfr. autor e ob. cits., págs. 278.
(3) Ibidem, págs. 279.
(4) Cfr., por todos, Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo 2, págs. 471 e 480.
(5) De algum modo a tornar possível a equiparação - ao menos para efeitos processuais - do interesse protegido e alegadamente violado.
(6) Comentário Conimbricense cit., págs. 475 e segs.