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Processo n.º 62/04
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 237 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. interpôs “recurso contencioso de anulação do acto do Senhor Ministro das Finanças, de indeferimento tácito do recurso hierárquico necessário interposto (...) da homologação (...) da lista de classificação final do concurso externo de ingresso para admissão a estágio na carreira técnica superior, com vista ao preenchimento de um lugar vago na categoria de técnico superior de 2ª classe, área funcional de relações públicas, do quadro de pessoal da Secretaria-Geral do Ministério das Finanças” (petição de fls. 2), alegando, em síntese, violação de lei, erro de facto e de direito nos pressupostos da avaliação feita pelo júri do concurso e ainda violação dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da transparência.
Na sua resposta, a Ministra do Estado e das Finanças veio dizer que através do despacho n.º 4101/2001, de 6 de Fevereiro, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro, e notificado à recorrente por ofício de
19 de Fevereiro de 2002, foi decidido “revogar, quer o acto de homologação da lista de classificação final impugnada pela (...) Recorrente, quer o próprio concurso, entendendo ter havido violação, no processo de concurso, bem como no acto de homologação, do artigo 5º do D.L. n.º 204/98, de 11.07, bem como dos princípios constitucionais da igualdade, justiça e imparcialidade, consagrados no artigo 266º, n.º 2, da Constituição, e dos artigos 4º e 5º do Código do Procedimento Administrativo” (resposta de fls. 115), o que determinaria a perda de objecto do recurso contencioso, devendo o mesmo ser extinto por inutilidade superveniente da lide.
Em resposta à questão prévia assim invocada pela Ministra de Estado e das Finanças, a recorrente veio requerer a suspensão do recurso contencioso, nos termos do disposto no artigo 279º, n.º 1, do Código de Processo Civil, até à decisão final dos recursos contenciosos do aludido despacho de 2 de Fevereiro de
2002, interpostos pela recorrente e pela recorrida particular, pois que “no caso de o acto de anulação administrativa do concurso vir a ser judicialmente anulado, por procedência de qualquer um dos recursos contenciosos dele interpostos, subsistirá o interesse da recorrente em ver apreciado o presente recurso”.
Na sequência do mencionado requerimento, a Ministra de Estado e das Finanças veio, por seu turno, requerer uma vez mais, perante a interposição de novo recurso contencioso, tendo por objecto o despacho de 6 de Fevereiro de
2002, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, tanto mais que a recorrente não teria exercido, nos presentes autos, a faculdade prevista no artigo 51º, n.º 1, da LPTA. Notificada deste último requerimento, a recorrente veio novamente pugnar pela suspensão da instância até à decisão final dos recursos contenciosos de anulação do acto de 6 de Fevereiro de 2002. Em seu entender, “se se decretar a extinção da presente instância ficam sem tutela os interesses que a recorrente pretende acautelar no presente recurso, ou seja, ser colocada em 1º lugar no concurso”, sendo, com isso “violada a garantia de tutela jurisdicional consagrada no n.º 4 do artigo 268º da Constituição” (fls. 154).
Por acórdão do Tribunal Central Administrativo de 30 de Janeiro de
2003, de fls. 158, foi julgada extinta a instância, por impossibilidade originária da lide.
Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 19 de Novembro de 2003, de fls. 218, lhe negou provimento, julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. O Supremo Tribunal Administrativo entendeu que “a prática do acto expresso faz desaparecer o indeferimento tácito impugnado da ordem jurídica, muito embora a eficácia do acto expresso se deva reportar à data da sua notificação ao interessado, que ocorreu já na pendência do recurso contencioso, ao invés do entendimento perfilhado no acórdão recorrido”. Considerou ainda o Supremo Tribunal Administrativo que “improcede também a alegação da recorrente de que a decisão recorrida viola a garantia da tutela judicial efectiva, consagrada no artigo 268º, n.º 4, da CRP, na medida e que tal direito se mostra assegurado pela oportuna interposição de recurso do acto expresso revogatório”.
2. Novamente inconformada, A. veio, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 19 de Novembro de 2003 do Supremo Tribunal Administrativo, “com fundamento em interpretação e aplicação inconstitucionais (suscitadas pela primeira vez na resposta, em 1ª instância, ao requerimento da Autoridade Recorrida em que se pedia a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide e, depois, nas alegações de recurso jurisdicional para o STA) da alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil e do n.º 1 do artigo 51º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação da garantia judicial efectiva contida no artigo 268º, n.º 4, da Constituição”.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode, porém, conhecer do presente recurso. Com efeito, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Não é, manifestamente, o caso dos autos. Sucede que a recorrente não suscitou perante o Supremo Tribunal Administrativo nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, nomeadamente referida aos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (artigos 287º, e), do Código de Processo Civil e 51º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos). Apenas acusou o acórdão do Tribunal Central Administrativo de violar o n.º 4 do artigo 268º da Constituição, como se pode verificar da leitura das alegações apresentadas no recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo.
4. Acresce que, no que respeita ao n.º 1 do artigo 51º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, não se trata de preceito que tenha sido aplicado no acórdão recorrido para negar provimento ao recurso, como ratio decidendi; o Supremo Tribunal Administrativo apenas se lhe refere para explicar as razões que terão levado o legislador a permitir a substituição do objecto do recurso contencioso incidente sobre um indeferimento tácito, em caso de prática de acto expresso na pendência do mesmo.
Ora, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 destina-se a conhecer da alegada inconstitucionalidade de uma norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como expressamente ali se refere
(“Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”) e o Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., por exemplo, Acórdãos n.ºs 367/94, 187/95 e n.º 366/96, publicados no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, de 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996, respectivamente).
5. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Assim, decide-se não tomar conhecimento do objecto do 4recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs. »
2. Inconformada, a recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária. Sucede, porém, que do requerimento apenas resulta que considera ter suscitado oportunamente a inconstitucionalidade que atribui à alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil, nada opondo à decisão sumária no que respeita às razões apontadas para o Tribunal Constitucional não conhecer daquela que, no requerimento de interposição de recurso, refere ao n.º 1 do artigo 51º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Considera-se, assim, que a reclamação se restringe à decisão de não conhecer da inconstitucionalidade da norma da alínea e) do artigo 287 do Código de Processo Civil.
3. Entende a reclamante que desde a primeira instância invocou de “modo processualmente adequado” a inconstitucionalidade que pretende ver apreciada, e que o Tribunal Central Administrativo conheceu da correspondente arguição; e que o mesmo sucedeu perante o Supremo Tribunal Administrativo, pois que, embora não tenha utilizado uma fórmula “feliz”, se percebe que estava a colocar a questão da “aplicação inconstitucional, por parte do TCA, da norma que fundou o decretamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (ou seja, o art. 187º, alínea e) do CPC), por violação da garantia contida no art.
268º/4 da CRP'.
E afirma ainda que o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão recorrido, “compreendeu bem a arguição de inconstitucionalidade no modo em que a mesma foi deduzida e a ela respondeu”.
Admitindo, todavia, que se pudesse entender não ter sido devidamente suscitada a questão de constitucionalidade, a reclamante alega que basta o seu conhecimento pelo tribunal recorrido para que seja admitido o recurso de constitucionalidade; e invoca o princípio “da promoção do acesso à justiça” para que seja conhecido o mérito do recurso.
Notificada para o efeito, a Ministra de Estado e das Finanças pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, pelas razões constantes da decisão reclamada e porque o referido princípio da promoção do acesso à justiça não pode conduzir ao conhecimento do mérito do recurso quando não estão, sequer, identificadas as normas que a reclamante pretende sejam apreciadas no Tribunal Constitucional.
4. A presente reclamação é, na verdade, improcedente.
Não é com efeito possível entender que a reclamante tenha colocado ao Supremo Tribunal Administrativo qualquer questão de inconstitucionalidade de uma qualquer norma contida na alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil, condição que é indispensável ao conhecimento do recurso.
Com efeito, ao exigir, na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada “durante o processo” e perante o tribunal recorrido, de forma a que este esteja obrigado a dela conhecer (artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei), a lei pretende que o mesmo tribunal exerça o seu poder de apreciar a constitucionalidade das normas que lhe cabe aplicar (artigo 204º da Constituição), e que o Tribunal Constitucional apenas a julgue em via de recurso.
Ora, no caso, a reclamante nunca colocou ao Supremo Tribunal Administrativo a questão da inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação do artigo 287º, e) do Código de Processo Civil; como se diz na decisão reclamada, apenas acusou o acórdão do Tribunal Central Administrativo de violar o n.º 4 do artigo 268º da Constituição. E foi apenas a essa questão que o Supremo Tribunal Administrativo respondeu negativamente, nunca apreciando a eventual inconstitucionalidade de uma qualquer norma constante da referida alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil.
Acresce que o princípio que a reclamante aponta para apoiar a sua reclamação não permite ultrapassar a falta – inequívoca, aliás – dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
5. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 20 de Maio de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes
Luís Nunes de Almeida