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Processo n.º 204/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
No processo de inquérito n.º ---------------- do ---.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal d-- -------, o respectivo magistrado do Ministério Público proferiu, em 7 de Fevereiro de 2003, o seguinte despacho:
“Investiga-se, nestes autos, a prática pelo arguido A. de um crime de injúrias agravadas, previsto pelo artigo 184.º, com referência ao artigo
181.º e ao artigo 132.º, n.º 2, alínea j), do Código Penal.
Aberto o presente Inquérito, e de acordo com as diligências de prova produzidas, veio a apurar-se que – efectivamente – ao início da tarde de 18 de Dezembro de 2001, nas instalações do Tribunal de Instrução Criminal d- ------, o arguido apelidou o ofendido B. de «burro».
Mas importa aqui tecer um determinado número de considerações que influem – quanto a nós – no grau de culpa imputável ao arguido.
Por um lado, estamos face a dois colegas de trabalho – funcionários de justiça – em que o grau de confiança e de camaradagem que se estabelece
«consente», na maior parte dos casos, interpelações similares, sem que o destinatário se sinta atentado na respectiva honra e consideração e, sobretudo, sem que o seu autor tenha essa mesma intencionalidade.
No caso concreto, o ofendido não tinha verbalizado qualquer expressão idêntica, mas – em momento prévio e que deu causa aos factos em apreço
– havia desautorizado o arguido frente a indivíduo detido, instando este a receber um jornal cuja disponibilidade lhe tinha sido negada pelo A.. E esta atitude revela-se, também, objectivamente atentatória à dignidade profissional do arguido (que, por estes factos, não manifestou vontade de procedimento criminal), sem aqui que nos restem grandes dúvidas sobre o propósito do ofendido.
A somar ao exposto, surge o depoimento que o B. já «teve problemas com outros colegas e outras pessoas e com os agentes policiais que ali costumam prestar serviço».
Isto posto, entendemos ser de aplicar, nestes autos, o preceituado no artigo 280.º do Código de Processo Penal.
«A dispensa de pena é um instituto destinado a resolver casos de bagatelas penais, em que se verificam todos os pressupostos da punibilidade mas em que se não justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já que tanto não seria exigido pelos fins das penas» (M. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 13.ª edição, pág. 263).
Trata-se aqui de um dispositivo geral para crimes cuja moldura da pena não ultrapasse 6 (seis) meses de prisão ou 120 (cento e vinte) dias de multa.
Atentas as considerações aduzidas, mas porque se trata de recorrer a um critério de oportunidade (vinculada), não é despicienda a ausência de antecedentes criminais do arguido, a respectiva inserção social e profissional, o lapso de tempo que já decorreu sobre os factos em apreço e as parcas necessidades de prevenção especial. Por tudo isto, entendemos arquivar os presentes autos nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do Código de Processo Penal.
Conclua os presentes autos ao M.mo Juiz de Instrução nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 280.º do Código de Processo Penal.”
Conclusos os autos ao Juiz do --.º Juízo de Instrução Criminal d- --------, este, em 25 de Fevereiro de 2003, proferiu o seguinte despacho:
“Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do CPP, pode o Ministério Público, com o concordância do juiz de instrução, arquivar o processo se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena, se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista tal dispensa.
Compulsados os autos, verifica-se estarem reunidos os requisitos de que depende a aplicabilidade do preceito em causa, merecendo-nos total concordância o doutamente promovido, devendo os autos serem arquivados relativamente ao arguido A..”
Notificado deste despacho judicial, o queixoso B. veio requerer a constituição como assistente e interpor recurso desse despacho para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando, na respectiva motivação, além do mais, a não verificação, no caso, dos pressupostos de dispensa de pena no crime de injúrias, enunciados no artigo 186.º, n.º 1, do Código Penal (prestação, pelo agente, em juízo, de esclarecimentos ou explicações da ofensa e sua aceitação como satisfatórios pelo ofendido).
Por despacho de 18 de Junho de 2003, foi admitida a constituição de assistente e a interposição do recurso.
Na resposta a esse recurso, o representante do Ministério Público sustentou, além do mais, a recorribilidade, pelo assistente, do despacho judicial proferido nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), que determine o arquivamento dos autos quando não se verificarem os pressupostos da dispensa de pena, e que tais pressupostos, no caso, não ocorriam, pois, indiciando-se a prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelo artigo 184.º, com referência aos artigos 181.º e 132.º, n.º 2, alínea j), do Código Penal, não estavam verificados os requisitos cumulativos da dispensa de pena referidos no artigo 74.º, n.º 1, do Código Penal, designadamente a reparação do dano.
No Tribunal da Relação do Porto, o representante do Ministério Público, no seu visto inicial, emitiu parecer – que não foi notificado ao recorrente – no sentido da rejeição do recurso por ser manifestamente improcedente (artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do CPP), porquanto a decisão de arquivamento é do Ministério Público, e não do juiz de instrução, que se limita a concordar com aquela decisão, que, não sendo uma decisão judicial, não é recorrível para o Tribunal da Relação.
Por acórdão de 12 de Novembro de 2003, o Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso, por ser manifestamente improcedente, com base na seguinte fundamentação:
“Diz o artigo 280.º do CPP: «Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa».
De acordo com tal preceito, não restam dúvidas que a decisão do arquivamento do inquérito cabe ao Ministério Público, embora a validade e eficácia dessa decisão seja condicionada à concordância do juiz de instrução. Mas quem decide acerca do arquivamento é o Ministério Público.
No caso em análise, o despacho sob recurso não deixa margem para qualquer dúvida; não há uma decisão de arquivamento propriamente dita mas antes pelo contrário uma manifestação de concordância com a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito.
Como diz e bem o Senhor Procurador Geral-Adjunto, afinal sobre que despacho ou decisão incide o recurso? Não se percebe muito bem; uma coisa é certa: não é do despacho de arquivamento do Ministério Público constante de fls.
63 destes autos, o qual não é susceptível de recurso, tanto mais que o assistente no seu requerimento faz referência ao despacho de fls. 66 que ordenou o arquivamento dos autos, ou seja, o despacho judicial.
Mas este despacho de concordância não é propriamente uma decisão, é acima de tudo um despacho de simples concordância; e, nos termos do artigo
280.º, n.º 3, do CPP, a decisão de arquivamento do Ministério Público em conformidade com os números anteriores, e não a manifestação de concordância do juiz de instrução, não é susceptível de impugnação.
No fundo o que está em causa nos presentes autos é um despacho de arquivamento do Ministério Público com o qual o juiz de instrução concordou, e não um despacho deste e, não sendo aquele recorrível, o presente recurso carece de objecto e nem deveria ter sido admitido como separação de processos a que o assistente também se refere na sua motivação de recurso.
Assim e pelas sobreditas afirmações o recurso é manifestamente improcedente, devendo ser rejeitado.”
É contra este acórdão que, pelo assistente, vem interposto o presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), visando a apreciação da inconstitucionalidade – por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 1.ª parte, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – da norma do n.º 3 do artigo 280.º do CPP, “na interpretação feita no dito acórdão de que não é admissível recurso da decisão de arquivamento por entenderem que o respectivo despacho é do Ministério Público e não do juiz de instrução”, questão de inconstitucionalidade só então suscitada “por não ter sido previsível que o Tribunal da Relação viesse a rejeitar o recurso com aquele fundamento”.
O recorrente apresentou alegações, no termos das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – O ora recorrente interpôs o presente recurso para que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 280.° do CPP, na interpretação feita no acórdão recorrido de que não é admissível recurso da decisão de arquivamento, nos casos em que não se verifiquem todos os pressupostos da aplicação da medida de dispensa da pena, por entender que o respectivo despacho é do Ministério Público e não do juiz.
2 – Ao não permitir a sindicância de uma decisão proferida contra a Lei, quer se entenda que tal decisão é do Ministério Público ou do juiz de instrução, o n.°
3 do artigo 280.° do CPP será inconstitucional, pois viola o princípio da igualdade e as garantias do processo penal, incluindo o recurso, previstos nos artigos 13.° e 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
3 – Ao interpretarem dessa forma o n.° 3 do artigo 280.° do CPP os venerandos juizes desembargadores coarctaram qualquer hipótese de sindicância de tal despacho (ilegal), uma vez que, face à concordância do juiz de instrução com o promovido arquivamento, não era o mesmo passível de ser revogado por via da instrução (se o juiz de instrução concordou com o arquivamento não ia depois revogar o despacho), nem por via de recurso.
[4] – Ora, nos termos do n.° 1 do artigo 280.° do CPP, a contrario,
é admissível o recurso do despacho que ordene o arquivamento do processo quando, como no caso sub judice, não se verifiquem os pressupostos de dispensa da pena. Com efeito,
[5] – Tendo-se considerado que os factos dos autos indiciavam a prática de um crime de injúrias agravada, previsto e punido pelo artigo 184.º, com referência aos artigos 181.° e 132.°, n.º 2, alínea j), do Código Penal, não é legalmente admissível a aplicação do regime estatuído no artigo 280.°, n.° 1, do CPP, por não estarem verificados os requisitos cumulativos taxados no artigo 74.º, n.º 1, do Código Penal.
[6] – Para que fosse admissível a dispensa da pena necessário seria que, para além de todos os requisitos gerais previstos no artigo 74.° do Código Penal (a ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas; o dano tiver sido reparado; e à dispensa da pena não se opuserem razões de prevenção), se verificassem também os pressupostos especiais previstos no artigo 186.° do Código Penal.
[7] – Ora, no caso sub judice, desde logo falta o requisito geral da reparação do dano.
[8] – E também não se verificam os requisitos especiais previstos no artigo 186.° do Código Penal.
[9] – Não se verifica o caso previsto no n.° 1 do artigo 186.°, uma vez que em lado algum do processo consta que o arguido tenha dado esclarecimentos ou explicações da ofensa ao ora recorrente, ou que este os tenha aceite como satisfatórios.
[10] – Também não se verifica o caso previsto no n.° 2 do citado dispositivo legal, uma vez que o ora recorrente não teve para com o arguido qualquer comportamento ilícito ou repreensível.
[11] – Ao interpretar como interpretou o artigo 280.° do CPP, o douto acórdão recorrido violou os artigos 13.º e 32.°, n.° 1, da CRP.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1.º – Não constitui decisão surpresa – que, pelo seu carácter insólito e imprevisível, possa dispensar a parte do ónus de suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade – o acórdão da Relação que, para além de considerar irrecorrível o despacho de arquivamento, proferido pelo Ministério Público nos termos do n.° 1 do artigo 280.° do Código de Processo Penal, fez directa aplicação do regime de inimpugnabilidade expressamente estatuído no n.°
3 de tal preceito legal.
2.º – Não tendo o recorrente equacionado tal questão de constitucionalidade no
âmbito do recurso que, sobre tal matéria, interpôs perante a Relação, falta um pressuposto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82.”
Ouvido sobre a questão de inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade, suscitada na contra-alegação do Ministério Público, o recorrente respondeu, salientando que o recurso que ele interpôs para o Tribunal da Relação do Porto teve por objecto o “despacho de fls. 66”, que é o despacho judicial, e não o despacho do Ministério Público, como erradamente se supôs naquela contra-alegação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão prévia suscitada na contra-alegação do Ministério Público parte do pressuposto de que o despacho de que o assistente pretendeu recorrer para o Tribunal da Relação do Porto – o “despacho de fls. 66”
– era o despacho do Ministério Público que ordenara o arquivamento dos autos. Mas não é assim: esse despacho do Ministério Público consta de fls. 64; o despacho de fls. 66 é o despacho judicial de concordância com esse arquivamento.
Neste contexto, não se afigura que fosse exigível ao recorrente que previsse a hipótese de o Tribunal da Relação vir a entender que afinal o objecto do recurso era a decisão do Ministério Público (que, por natureza, era insusceptível de constituir objecto de recurso jurisdicional). Importa recordar que é o próprio despacho judicial de fls. 66 que trata a anterior tomada de posição do Ministério Público como uma “promoção” (lê-se nesse despacho: “... merecendo-nos total concordância o doutamente promovido, devendo os autos serem arquivados ...”), que o recurso foi admitido na 1.ª instância, tendo na resposta do Ministério Público (da 1.ª instância) sido expressamente sustentada a admissibilidade do recurso e a sua procedência (nessa parte) e não tendo sido notificado ao recorrente o parecer do Ministério Público na 2.ª instância, que propugnou a rejeição do recurso com o fundamento que veio a ser acolhido no acórdão ora recorrido.
2.2. Dispõe o artigo 280.º do CPP:
“1. Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa.
2. Se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena.
3. A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação.”
Como se viu, foram sustentados ao longo dos autos entendimentos diversos quanto à entidade a quem deve ser imputada a autoria da decisão de arquivamento na situação prevista no n.º 1 – se ao Ministério Público, se ao juiz de instrução –, sendo certo que a decisão daquele carece de validade e de eficácia enquanto não obtiver a concordância deste. Por outro lado, o n.º 3 proclama a irrecorribilidade quer da decisão de arquivamento prevista no n.º 1, quer de idêntica decisão tomada no âmbito do n.º 2, em que surge como clara a sua imputação ao juiz de instrução; ora, se se compreende que o legislador diga quais as decisões judiciais que considera irrecorríveis para tribunais superiores, já suscita perplexidade a afirmação da inimpugnabilidade de decisões, como as do Ministério Público que, como a seguir veremos, são, por natureza, insusceptíveis de recurso para os tribunais judiciais.
Seja como for, o acórdão recorrido assumiu o entendimento que a verdadeira decisão de arquivamento, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do CPP, é do Ministério Público, e não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da interpretação do direito ordinário feita pelos restantes tribunais. O que ao Tribunal Constitucional cabe é apurar se a interpretação normativa assumida pelas instâncias – que deve ser tomada como um dado – se mostra, ou não, constitucionalmente conforme. Ou seja, no presente caso, o que cumpre indagar é se é inconstitucional, designadamente por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a interpretação de que dos despachos do Ministério Público que determinem o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do CPP, não cabe recurso para o Tribunal da Relação.
Em caso similar (não admissão de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de despacho do representante do Ministério Público em Tribunal da Relação que determinara o arquivamento de inquérito instaurado a magistrado), a Decisão Sumária n.º 208/2003, processo n.º 498/03, de 15 de Setembro de 2003, proferida pelo ora relator, a questão de inconstitucionalidade foi julgada manifestamente infundada, com base nas seguintes considerações:
“2. Os «recursos», na acepção comum de «recursos jurisdicionais» – que é a utilizada quer no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), quer no artigo 399.º do Código de Processo Penal (CPP) –, consubstanciam, por natureza, a impugnação perante um tribunal (superior) de anterior decisão de outro tribunal (inferior), diversamente do que ocorre com o
«recurso contencioso» (impugnação perante um tribunal de um acto da Administração) ou com o «recurso administrativo» (impugnação perante um órgão administrativo de um acto de outro órgão administrativo subalterno ou tutelado). Como refere Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1994, pág. 19), recursos, naquela acepção comum, são «os meios processuais destinados a submeter a uma nova apreciação jurisdicional certas decisões proferidas pelos tribunais». Quando o citado artigo 399.º proclama que «é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei» está a referir-se às três formas de «actos decisórios dos juízes» cuja utilização o artigo 97.º, n.º 1, do mesmo Código descreve do seguinte jeito: «a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior; c) Acórdãos, quando se tratar de decisão de um tribunal colegial».
Neste contexto, os despachos de arquivamento de inquérito, proferidos pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 277.º do Código de Processo Penal não cabem na previsão do artigo 399.º do mesmo Código. Ao interessado inconformado com tais despachos são legalmente facultadas duas vias de reacção: suscitando a intervenção hierárquica prevista no artigo 278.º ou requerendo a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do citado Código.
Isto posto, a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida não padece, manifestamente, dos vícios de inconstitucionalidade que lhe são imputados pelo recorrente.
Quanto à pretensa inconstitucionalidade orgânica, por alegada violação da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, que atribui à Assembleia da República competência para «fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo», é óbvio que ao interpretar e aplicar ao caso concreto dos presentes autos a norma do artigo 399.º do Código de Processo Penal, a decisão recorrida não extravasou os limites da função jurisdicional e não incorreu em usurpação da função legislativa, já que não visou provocar, de forma geral e abstracta, como é típico da função legislativa, uma alteração da legislação vigente, eficaz erga omnes e vinculativa, no futuro, para todos os casos similares.
Quanto à pretensa inconstitucionalidade material, por suposta violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição – para além de se tratar de questão não suscitada antes de proferida a decisão recorrida, mas apenas no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade –, sempre se dirá que, como se referiu, o direito ao recurso nele referido respeita aos «recursos jurisdicionais», visando assegurar o «duplo grau de jurisdição», e, de qualquer forma, está aí consagrado expressamente apenas enquanto componente das «garantias de defesa», que, obviamente, assistem em exclusivo ao arguido e não aos outros intervenientes processuais, como os participantes ou os assistentes. A perspectiva que seria aqui relevante, para o recorrente, seria a do acesso aos tribunais, mas esta está assegurada com a faculdade conferida ao assistente (para além de provocar a intervenção hierárquica regulada no citado artigo 278.º) de requerer a abertura da instrução, sob a direcção de um juiz, faculdade que o recorrente efectivamente exercitou
3. Em face do exposto, sendo manifestamente infundada a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 399.º do Código de Processo Penal, interpretada como não admitindo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho de arquivamento de inquérito proferido, nos termos do artigo 277.º do mesmo Código, por magistrado do Ministério Público junto de Tribunal de Relação, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LCT, negar provimento ao presente recurso.”
Também no presente caso, atenta a qualidade do recorrente (assistente), não faz sentido falar em violação das garantias de defesa em processo criminal, mas apenas no direito de acesso aos tribunais. Ora, para além da possibilidade de reclamação hierárquica da decisão de arquivamento do Ministério Público, o assistente tem sempre a possibilidade de requerer a abertura de instrução e de obter, no seu termo, a pronúncia do arguido, estando assim suficientemente assegurado o direito de acesso aos tribunais.
O recorrente alega ainda a violação do princípio da igualdade, mas não adianta qualquer argumento para tentar demonstrar em que consistiria essa violação, pelo que, por falta da necessária substanciação, há que considerar improcedente essa alegação.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 280.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, interpretada como não admitindo recurso para o Tribunal da Relação das decisões do Ministério Público de arquivamento de inquérito, em caso de dispensa da pena: e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos