Imprimir acórdão
Proc. 245/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A., notificado do acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Janeiro de 2004, pelo qual improcedeu o recurso da decisão do Tribunal Judicial de Sintra que o manteve em prisão preventiva, dele pretende recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na alínea b) do n. 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
No respectivo requerimento de interposição, o âmbito do recurso é delimitado da seguinte forma:
– Pretende o recorrente suscitar no tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade do artigo 213º n.º 3 do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de que, tendo sido ouvido o Ministério Público, não é necessária a audição do arguido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva.
– Pretende também o recorrente suscitar no tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade do artigo 97 n. 4 do Código de Processo Penal quando seja interpretado no sentido de que aquele artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto do n. 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, porquanto esta constitui um mero despacho, que apenas conhece de uma decisão interlocutória, constituindo a insuficiente fundamentação da mesma “mera irregularidade processual”.
– Pretende também o recorrente suscitar no tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade do artigo 97º n. 4 do Código de Processo Penal, quanto seja interpretado no sentido de que este artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no n. 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, porque se fosse exigível uma fundamentação tão rigorosa quanto aquela que se exige para uma sentença “se mataria a tão almejada celeridade processual, tornando o processo penal de tal forma moroso que poria em causa o pretendido due process'.
– Pretende ainda o recorrente suscitar a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do artigo 193º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, tendo-se verificado uma alteração do contexto processual subjacente à aplicação de uma medida de prisão preventiva em resultado da qual apenas subsistiriam os perigos previstos na alínea c) do artigo 204° do Código de Processo Penal, e considerando que, relativamente aos mesmos factos, os co-arguidos acusados de crimes mais graves são libertados e um co-arguido acusado por um crime menos grave não o foi, se justifica a manutenção daquela medida de coacção relativamente a este ultimo arguido.
O recurso foi admitido. A alegação do recorrente fecha com as seguintes conclusões:
I - O artigo 213° n.º 3 do Código de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado o sentido de que, tendo sido ouvido o Ministério Público, não é necessária a audição do arguido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva, II - Sendo, para o efeito, irrelevante o facto de estar em causa uma decisão interlocutória, final ou de outra natureza no que tange ao direito de audição do arguido, III - Nomeadamente porque está em causa o direito fundamental do arguido à liberdade. IV - O recorrente considera que tal interpretação viola o principio de igualdade de armas que se encontra subjacente ao Princípio do Contraditório, previsto no artigo 32° n.º 5 da Constituição, V - E resultante do artigo 6 n.º 1, 2 e 3, alínea b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - ratificada por Portugal e directamente aplicável no ordenamento Português nos termos do artigo 8° da Constituição. VI - O qual tem plena aplicação do âmbito do processo penal português quando estejam em causa, como se verifica no caso vertente, as garantias de defesa do arguido. VII - É inconstitucional a interpretação do artigo 97, nº 4 do Código de Processo Penal no sentido de que aquele artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no nº2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, porquanto esta constitui um mero despacho que apenas conhece de uma decisão interlocutória, constituindo a insuficiente fundamentação da mesma “mera irregularidade processual”. VIII - Esta interpretação viola o dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205° da Constituição, por não considerar que é exigível a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal em termos idênticos aos que se impõe para a fundamentação de uma sentença, uma vez que, nos termos da actual redacção do artigo 205°, nº1, da Constituição, devem ser fundamentadas todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente IX - E as próprias normas constitucionais devem ser interpretadas enquanto parte de um todo que é a Constituição, X - Pelo que aquela deverá ser uma fundamentação adequada à decisão em causa, designadamente atendendo às consequências da mesma sobre os direitos fundamentais do arguido. XI - A decisão de manutenção da prisão preventiva do arguido é uma decisão da qual decorre a privação da liberdade do mesmo, a qual constitui um direito fundamental que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, só deve ser limitado em certas e determinadas circunstâncias - que no caso vertente não se verificam - dentro de estritos parâmetros de proporcionalidade e adequação que no caso em apreço não foram respeitados. XII - O dever de fundamentação das decisões judiciais deve ser perspectivado como parte integrante de um complexo normativo que visa a protecção dos direitos fundamentais do cidadão, designadamente o direito à liberdade que se encontra entre o elenco dos direitos liberdades e garantias previsto no titulo II da Constituição (Cfr. artigo 27° da Constituição), XIII - E que nos termos do artigo 18° da Constituição, são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, condicionando-se a possibilidade de serem retirados, ou diminuídos por qualquer forma, limitada aos casos previstos na Constituição, na qual se impõe estritas exigências de subsidiariedade, adequação e proporcionalidade. XIV - A tudo isto acresce a circunstância de o dever de fundamentação das decisões judiciais constituir um corolário do princípio do Estado de Direito Democrático na medida em que, na falta de legitimidade democrática, é a fundamentação das decisões com base na lei que legitima a autoridade judicial, XV - Pelo que deverá esta interpretação ser considerada inconstitucional por violação das disposições constitucionais supra mencionadas. XVI - É igualmente inconstitucional a interpretação do artigo 97º, nº4 do Código de Processo Penal no sentido de que este artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no nº2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, porque se fosse exigível uma fundamentação tão rigorosa quanto aquela que se exige para uma sentença “se mataria a tão almejada celeridade processual, tornando o processo penal de tal forma moroso que poria em causa o pretendido due process”: XVII - Esta interpretação consubstancia uma violação do disposto no artigo 16°, nº1 da Constituição , bem como o art. 18° da Constituição conjugados com o disposto no n° 5 do artigo 20 da Lei Fundamental, porquanto: XVIII - Face ao disposto no artigo 20 n.º 5, no caso das decisões sobre prisão preventiva, o direito à fundamentação das decisões deve ser perspectivado como um direito fundamental do arguido, destinado a garantir que este tenha à sua disposição, de forma eficaz e efectiva, todas as garantias de defesa XIX - Pelo que em caso algum poderá fazer sentido que este seja limitado em nome de exigências de celeridade processual, XX - O que, por natureza, não só não integra qualquer prossecução de um due process, como lhe é, por definição, adverso. XXI - A componente de celeridade processual que integra o conceito de due process apenas destina-se a proteger a posição processual do arguido, designadamente quando este se encontre privado da sua liberdade, e não a justificar a sua privação de liberdade. XXII - As normas constantes do artigo 193° do Código de Processo Penal são inconstitucionais quando interpretadas no sentido de que, tendo-se verificado uma alteração do contexto processual subjacente à aplicação de uma medida de prisão preventiva em resultado da qual apenas subsistiriam os perigos previstos na alínea c) do artigo 204° do Código de Processo Penal, e considerando que, relativamente aos mesmos factos, os co-arguidos acusados de crimes mais graves são libertados e um co-arguido acusado por um crime menos grave não o foi, se justifica a manutenção daquela medida de coacção relativamente a este ultimo arguido. XXIII - E é esta a situação que se verifica no caso sub judice porquanto: XXIV - Da decisão onde foi vertida a interpretação legislativa que ora se analisa o Tribunal da Relação considerou e admitiu os seguintes aspectos: a) Que no âmbito do processo houve lugar a uma alteração das circunstâncias de facto subjacentes à decisão de aplicação da prisão preventiva tomada em
4/06/2002, tendo deixado de subsistir o perigo referido na al. b) do art. 204 º do Código de Processo Penal, isto é, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova,
b) E que de entre tais circunstâncias apenas subsistem os perigos referidos na alínea c), a saber, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade o arguido, da perturbação da ordem e tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa. XXV - E a interpretação em análise teve lugar num contexto processual do qual se destacam os seguintes elementos resultantes dos autos, designadamente de decisões judiciais: a) Quanto aos co-arguidos no processo em que é arguido o ora recorrente, relativamente a crimes diametralmente correspondentes, o tribunal admitiu que se verificara uma alteração dos factos determinantes da medida de prisão preventiva aplicada; b) No que diz respeito à causa de aplicação da prisão preventiva devido à prática desses crimes, o tribunal afirmou que era o perigo de perturbação, recolha e conservação da prova que, no essencial, sustentava a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada; c) Os crimes de que vinham indiciados estes arguidos eram mais graves que aquele de que vem acusado o arguido ora recorrente (i) Quer porque lhes corresponde uma moldura penal mais grave (ii) Quer porque afectam de forma mais imediata o bem protegido pela norma penal em causa; d) O risco de alarme social é maior quando ocorra a libertação de agentes dos crimes de que vinham indiciados os co-arguidos que foram libertados, tratando-se de agentes da GNR. XXVI - Acresce que se encontravam ao dispor do tribunal a quo diversas medidas de coacção aplicáveis em alternativa à medida de prisão preventiva que satisfazem as exigências cautelares na situação sub judice. XXVII - Pelo exposto, o recorrente considera que a interpretação supra mencionada viola os princípios da proporcionalidade e adequação das medidas de coacção decorrente do artigo 18, nº2 da Constituição, bem como o disposto no artigo 28°, nº2 da Constituição que impõe a subsidiariedade da prisão preventiva. Nestes termos, Requer-se a V. Ex.as. que seja declarada inconstitucional a interpretação dos artigos 213°, 97°, nº4; 374°, nº2 e 193°, todos do Código de Processo Penal, vertida no Acórdão de 28 de Janeiro de 2004 (processo n.º 10240/03), que correu termos na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
Na sua contra-alegação, o representante do Ministério Público neste Tribunal suscitou questões obstativas do conhecimento do objecto do recurso, concluindo:
1 - Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível pelo Tribunal Constitucional, a que vem reportada à norma do artigo 193° do Código de Processo Penal, já que o arguido apenas controverte a subsunção dos factos à norma e invoca a disparidade de situações dos vários co-arguidos, em sede de medidas de coacção.
2 - O acórdão proferido pela Relação procedeu a uma interpretação conforme à Constituição da norma constante do artigo 213°, n° 1, do Código de Processo Penal, ao apreciar, em termos concretos e casuísticos, a necessidade de audição do arguido antes da reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva, entendendo ser a mesma dispensável, em consonância com a orientação adoptada no acórdão n° 96/99 deste Tribunal Constitucional.
3 - O arguido não suscitou, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a questão da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 118° n. 2, 123° n. 2, e 380° ns 2 e 3 do Código de Processo Penal, em que a Relação fez assentar, como verdadeira ratio decidendi, a solução normativa consistente em qualificar como irregularidade - sanável pelo tribunal ad quem - a omissão de fundamentação do despacho recorrido.
4 - Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional o entendimento segundo o qual as exigências de fundamentação dos despachos interlocutórios são as que decorrem do preceituado no n. 4 do artigo 97° do Código de Processo Penal, não havendo qualquer razão - legal ou constitucional - para aplicar
'analogicamente', nesta sede, as exigências estabelecidas a propósito da fundamentação da sentença final.
5 - Termos em que não deverá conhecer-se das questões colocadas quanto às normas dos artigos 193° e 213°, do Código de Processo Penal, por inverificação dos pressupostos de admissibilidade de recurso, devendo julgar-se improcedente a questão colocada quanto à interpretação normativa dos artigos 97° n. 4 e 374° n.
2 do Código de Processo Penal.
O recorrente respondeu; entende, em suma, que o Ministério Público não tem razão e que todas as questões que colocou devem ser apreciadas e julgadas procedentes.
2. Importa decidir.
2.1. O recurso de fiscalização concreta previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, como o presente, incide obrigatoriamente sobre normas jurídicas (norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo) aplicadas na decisão recorrida como fundamento jurídico da decisão, ainda que numa interpretação normativa própria. Não é, assim, possível sindicar neste recurso a própria decisão recorrida.
Ora, a primeira questão que o Ministério Público suscita como obstáculo ao conhecimento do recurso prende-se com a matéria invocada a propósito do artigo
193º do Código de Processo Penal, preceito que subordina, genericamente, a aplicação concreta das medidas de coacção ao “princípio de adequação e proporcionalidade” e cujas normas serão inconstitucionais, no dizer do recorrente, “quando interpretadas no sentido de que, tendo-se verificado uma alteração do contexto processual subjacente à aplicação de uma medida de prisão preventiva em resultado da qual apenas subsistiriam os perigos previstos na alínea c) do artigo 204° do Código de Processo Penal, e considerando que, relativamente aos mesmos factos, os co-arguidos acusados de crimes mais graves são libertados e um co-arguido acusado por um crime menos grave não o foi, se justifica a manutenção daquela medida de coacção relativamente a este último arguido.”
A inconstitucionalidade destas normas resultaria, na versão do recorrente, da violação “dos princípios da proporcionalidade e adequação das medidas de coacção decorrente do artigo 18º, n. 2 da Constituição, bem como o disposto no artigo
28° n. 2 da Constituição que impõe a subsidiariedade da prisão preventiva”; e isto essencialmente porque, no que respeita aos co-arguidos, teriam sido adoptadas medidas de coacção menos graves.
Todavia, nesta formulação, é clara a desfocagem da questão normativa, aqui equacionada em função da decisão que, em concreto, foi adoptada. O problema tem a ver com a diversidade de decisões jurisdicionais tomadas sobre casos aparentemente paralelos. Na realidade, a eventual patologia da situação não reside na norma – nenhuma norma infra-constitucional impõe uma tal solução – mas na decisão. Assim, sob a capa da análise da questão pelo prisma da violação do artigo 13º da Constituição, pretende-se que o Tribunal avalie a decisão recorrida, em si mesma considerada, e não a norma que constituiria a respectiva ratio decidendi.
É, pois, certeira a objecção do Ministério Público ao denunciar a ausência da formulação de uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de análise no Tribunal Constitucional, pois é seguro que não cumpre sindicar da possibilidade de verificação, em concreto, dos “perigos” previstos na alínea c) do artigo 204° do Código de Processo Penal e não tem carácter normativo a pretensa violação casuística do princípio da igualdade, decorrente da circunstância de os vários co-arguidos terem sido sujeitos a medidas de coacção diferenciadas.
2.2. O recorrente questiona a conformidade constitucional da norma do artigo
213° n° 3 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, tendo sido ouvido o Ministério Público, não é necessária a audição do arguido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva.
Ora bem: como já se sublinhou, o objecto do presente recurso é necessariamente constituído por normas, aplicadas na decisão recorrida e acusadas de inconstitucionais. Tratando-se de uma determinada interpretação do preceito legal em causa, cabe ao recorrente o ónus de circunscrever essa interpretação no requerimento de interposição do recurso, por forma a delimitar com rigor o respectivo âmbito.
É, assim, em função do recorte normativo operado no requerimento de interposição que o Tribunal deve aferir da verificação dos indispensáveis requisitos do recurso.
Acontece que a Relação não aplicou a norma do artigo 213° n° 3 do Código de Processo Penal que o recorrente acusa de inconstitucional, pois não interpretou o preceito no sentido de que ouvido o Ministério Público, não é necessária a audição do arguido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva, conforme erradamente se sustenta no recurso.
Na realidade, a Relação julgou esta matéria por um caminho diverso daquele que havia sido adoptado na 1ª instância, pois debruçou-se, no exercício dos seus poderes cognitivos próprios, sobre os pressupostos de facto que entendeu dever ponderar quanto à decisão de dispensar a audição do arguido antes de determinar a manutenção da medida de coacção imposta ao arguido.
Afirma, com efeito, a Relação:
“Assim, concluímos que no despacho recorrido se devia ter considerado o motivo por que se prescindiu da audiência do arguido. Para tanto, e atento o já acima relatado, é evidente que, como não ocorrera, entretanto, qualquer facto novo – no sentido de após o último despacho judicial de reexame desta medida, i.e., o da designação da audiência de julgamento
(despacho de 8/7/2003) – e estando a decorrer as sessões de audiência de discussão e julgamento, onde o arguido tem sido ouvido, o Mmº Juiz titular daquela Vara podia (e devia) ter consignado que dispensava a audição prévia do arguido (tal como o podia ter feito relativamente ao MºPº), com fundamento na sua desnecessidade manifesta – o que aqui agora se reafirma.”
Por aqui se vê que, efectivamente, a norma apontada pelo recorrente como infractora da Constituição não foi aplicada na decisão recorrida, razão pela qual também nesta parte não é possível conhecer do recurso interposto.
2.3. Vem, por fim, acusado de inconstitucional o n. 4 do artigo 97º do Código de Processo Penal numa dupla vertente:
– no sentido de que aquele artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no n. 2 do artigo
374° do Código de Processo Penal, porquanto esta constitui um mero despacho que apenas conhece de uma decisão interlocutória, constituindo a insuficiente fundamentação da mesma “mera irregularidade processual”.
– no sentido de que este artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no n. 2 do artigo
374° do Código de Processo Penal, porque se fosse exigível uma fundamentação tão rigorosa quanto aquela que se exige para uma sentença “se mataria a tão almejada celeridade processual, tornando o processo penal de tal forma moroso que poria em causa o pretendido due process”.
A formulação usada não é clara. Parece, no entanto, que o que o recorrente pretende sindicar é a opção concretizada no acórdão recorrido de tipificar o vício decorrente da deficiente fundamentação do despacho da 1ª instância como erro de direito (conducente à revogação da decisão) em vez de motivo de nulidade do despacho, e ainda, de considerar que as exigências de fundamentação previstas no artigo 374º n. 2 do aludido Código de Processo Penal não se aplicam ao despacho em causa.
Na verdade, é patente a dificuldade de construção das “dimensões normativas” correspondentes a esta pretensão do recorrente, pois ela aproxima-se muito mais de um pedido de re-análise da própria decisão.
De qualquer forma a questão não tem, manifestamente, razão de ser. Ela aparece enunciada no processo a propósito da invocada nulidade, decorrente de deficiente fundamentação, do despacho proferido na 1ª instância e a verdade é que o Tribunal recorrido alterou essa decisão precisamente na parte relativa à sua fundamentação. É certo que a Relação julgou não verificada a nulidade resultante da pretensa falta de fundamentação; mas também é certo que interpretou a norma do artigo 97º n. 4 do Código de Processo Penal de forma diversa daquela que fora aplicada pelo tribunal de 1ª instância, pois teve por ilegal aquela decisão, revogou-a e substituiu-a por outra que, embora com o mesmo sentido decisório, se apresenta dotada com outros fundamentos, indispensáveis para garantir a sua regularidade. É o que resulta, sem margem para dúvida, do seguinte trecho do acórdão recorrido:
“... Isto é, quando os vícios de que enferma a sentença não constituem nulidade. Dito isto, reafirmamos que mesmo no caso dos meros despachos a lei exige
(sempre) a sua fundamentação e que nesta se especifiquem os motivos de facto e de direito da decisão – n.º4 do artigo 97° do Código de Processo Penal. Significa isto que não basta a afirmação tabelar constante do despacho recorrido, por ser insuficiente, mormente por não conter, ainda que sinteticamente, os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão de manter a medida de prisão preventiva do arguido, ora recorrente. Concluindo: Este caso, sendo, como é, insuficiente a fundamentação desse despacho, estamos perante uma irregularidade processual - cfr. artigo 118º, n.º2 do Código de Processo Penal - que, como vimos, pode e deve ser sanada e/ou corrigida pelo tribunal competente para conhecer o recurso- cfr. arts 123º, n.º 2 e 380º, n.ºs
2 e 3 do Código de Processo Penal. Assim sendo, como não se está perante nulidade de sentença (ao invés do que alega o recorrente), não se aplica aqui o disposto nos artºs 374°, n° 2 e 379° do Código de Processo Penal.”
Significa isto que o acórdão recorrido aplicou, quanto à fundamentação da decisão de manutenção da prisão, uma norma bem mais exigente do que aquela que imporia a simples “afirmação tabelar constante do despacho recorrido”, sendo para este efeito (isto é, para efeito de verificação da conformidade constitucional da norma) irrelevante que a consequência da fundamentação deficiente redunde na revogação ou na declaração de nulidade da decisão, pois a determinação constitucional não impõe esta última solução.
Acresce que a decisão recorrida ao aplicar o artigo 97º n. 4 do Código de Processo Penal “no sentido de que aquele artigo é aplicável à decisão de manutenção da prisão preventiva com exclusão da aplicação analógica do disposto no n. 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, porquanto esta constitui um mero despacho que apenas conhece de uma decisão interlocutória, constituindo a insuficiente fundamentação da mesma mera irregularidade processual”, se fundamentou nos artigos 118° n° 2, 123° n° 2, e 380° ns 2 e 3 do Código de Processo Penal. De modo que a norma assim formulada pelo recorrente – a ter sido aplicada – resultaria de uma conjugação de preceitos do Código de Processo Penal que não se apresentam questionados no recurso. Ora, recordando o que acima se afirmou acerca do ónus de delimitação do âmbito do recurso que recai sobre o recorrente, deve sublinhar-se que, como afirmou o Ministério Público, ao restringir o objecto do recurso à norma constante do artigo 97°, n° 4 Código de Processo Penal, terá deixado o recorrente fora dele o referido bloco normativo, que constitui verdadeiramente a ratio decidendi do acórdão recorrido que consistiu em aplicar a regra da substituição, proferindo a decisão que o tribunal recorrido devia ter proferido.
De qualquer forma, é manifestamente improcedente a questão suscitada em torno das exigências de fundamentação impostas pelo artigo 374º n. 2 do Código de Processo Penal, norma especialmente construída a propósito da sentenças penais. O que se exige, o que é razoável que se extraia da cominação constitucional que impõe a fundamentação dos actos judiciais determinantes de medidas de coacção restritivas da liberdade, é que revelem as circunstâncias de facto e o bloco legal em que se funda o juiz ao decidir, menções cuja obrigatoriedade a decisão recorrida entendeu ser proveniente da norma do n. 4 do artigo 97º do Código de Processo Penal.
Nenhuma censura merece, manifestamente, este entendimento.
3. Em consequência do exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso quanto aos artigos 213º n. 3 e 193º do Código de Processo Penal e negar provimento ao restante.
Custas pelo recorrente. Taxa de Justiça: 20 UC.
Lisboa, 18 de Maio de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida