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Proc. 744/03
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. e B. impugnaram judicialmente a liquidação, feita pela Câmara Municipal de Sintra, da taxa resultante da instalação em propriedade privada de bombas abastecedoras de carburantes líquidos, nos termos do artigo 71º, n.º1, alínea
1.5. da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada em 22/12/99.
Por sentença de 14 de Novembro de 2002 o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa julgou procedente a impugnação e anulou a liquidação, considerando, para tanto, que o tributo fora liquidado sem base legal, pois a sua criação era organicamente inconstitucional por violação do artigo 168º, n.º1, alínea i) da Constituição.
É desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, n.º 1, al. a), da Constituição e 70º, n.º 1, al. a), 71º, n.º 1 e 72º, n.ºs 1 al. a) e
3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro.
O recurso foi admitido. Neste Tribunal, o recorrente concluiu a sua alegação da seguinte forma:
1- Não podem configurar-se como “taxas”, por carecerem da indispensável bilateralidade, os tributos que sejam cobrados em função de uma utilização de bens pertencentes exclusivamente a particulares, mesmo nos casos em que tal utilização possa envolver eventuais riscos ambientais – não constituindo
“contrapartida” de tal utilização a realização – meramente hipotética ou presumida – de actividades inspectivas ou de polícia pelos municípios.
2- Porém, já nada obstará a que a autarquia cobre “taxas” de montante adequado como contrapartida do exercício efectivo de uma actividade de inspecção, destinada a prevenir riscos ambientais, na periodicidade definida por lei ou regulamento.
3- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.
Por sua vez, A. e B., contra-alegaram, concluindo pela confirmação do juízo de inconstitucionalidade já efectuado.
A norma objecto deste recurso de constitucionalidade tem o seguinte teor:
Artigo 71º - Equipamento de Abastecimento de Combustíveis Líquidos:
1. Por cada um e ano:
(...)
1.5. Inteiramente instalados em propriedade privada......60.000$00 €299,28
Ora sobre norma semelhante (n.º 5 do artigo 42º da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovado em 20 de Outubro de 1989) pronunciou-se já o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.º 515/2000 (in DR, II Série, de 23 de Janeiro de 2001) e n.º 113/04 do Plenário (in DR, II Série, de 31 de Março de
2004), no sentido da sua inconstitucionalidade.
Escreveu-se no citado Acórdão 515/2000:
6. – A averiguação sobre a conformidade constitucional do regime jurídico de uma dada receita pública impõe a determinação prévia da sua natureza. A determinação da natureza de taxa ou imposto de um certo tributo tem consequências diversas face ao regime constante da Constituição em vigor no momento da criação do encargo (revisão de 1989). De facto, a criação de impostos e a definição dos seus elementos essenciais está sujeita a reserva de lei formal (ou a decreto do Governo dependente de autorização) enquanto que as taxas podem ser estabelecidas por regulamento. Importa, assim, apurar se o encargo que recai sobre as instalações abastecedoras de carburantes líquidos, ar e água, quando instaladas inteiramente em propriedade particular, com abastecimento no interior da propriedade, a que se reportam os autos, tem a natureza de uma taxa ou de um imposto, ou ainda de um tributo que deva ser tratado como um imposto A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, no seu artigo 4º, nº 2, dá-nos um conceito legal de taxa, quando estabelece que
'as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares'. Este Tribunal, para distinguir o imposto da taxa tem utilizado como critério geral o de saber se a prestação exigida tem carácter unilateral – correspondente ao imposto – ou bilateral ou sinalagmático – correspondente à noção de taxa (cf. Acórdãos nºs 76/88 e 348/86, in Acórdãos dos Tribunal Constitucional, 11º Vol., pág.331 e 8º Vol., pág.93, e mais recentemente, o Acórdão nº 410/2000, tirado em Plenário, de 3 de Outubro de 2000, publicado no Diário da República, I Série A, de 22 de Novembro de 2000). Assim, estar-se-ia perante um imposto sempre que a obrigação do seu pagamento não esteja ligada a qualquer contraprestação específica por parte do Estado. Segundo Teixeira Ribeiro (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, pág. 262), o “imposto é uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos”. A taxa, segundo o mesmo Autor (Noção Jurídica de taxa, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 117, pág. 289 e ss), “é a quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semi-públicos” (isto é, de bens que
“satisfazem além de necessidades colectivas, necessidades individuais, necessidades de satisfação activa, cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor”) “ou como preço autoritariamente fixado de tal utilização”. Refere ainda o mesmo Autor, “precisamente porque os bens semi-públicos satisfazem necessidades individuais, o Estado já pode conhecer quem é que particularmente pretende utilizá-los, e pode, por conseguinte, tornar essa utilização dependente de, ou relacioná-la com, o pagamento de certa quantia. Se o fizer, tal quantia, ou é paga voluntariamente, e temos uma receita patrimonial, ou o é coactivamente, e temos uma taxa”. Assim, enquanto que os “impostos são prestações pecuniárias, coactivas, unilaterais e definitivas, sem carácter de sanção, exigidas a detentores de capacidade contributiva por entes que exercem funções públicas, com vista à realização destas”, nas taxas, “à prestação do particular corresponde uma contraprestação específica, uma actividade do Estado ou de outros entes públicos especialmente dirigida ao respectivo obrigado, actividade esta que se há-de concretizar na prestação de um serviço público, no acesso à utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares” (veja-se José Casalta Nabais, in “Contratos Fiscais”, Coimbra,
1994, pág. 236). Quando a actividade do Estado ou de outro ente público pela qual se exige ao particular o pagamento de uma certa quantia se traduz na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares, só se está perante uma taxa se essa remoção possibilitar a utilização individualizada e efectiva de um bem semi-público. Se tal não acontecer, a quantia a pagar terá a natureza de um imposto (cf. Teixeira Ribeiro, in Revista de Legislação e de Jurisprudência,, citada, pág. 292). A menos que se entenda que se está perante a figura das contribuições especiais que, como se referiu, devem ser tratadas como impostos quer sejam contribuições de melhoria (imposições instituídas com o fundamento económico-financeiro de tributar os aumentos de valor dos bens dos contribuintes imputáveis a obras financiadas pelos entes públicos e para o qual os devedores em nada contribuíram), quer contribuições para maiores despesas (encargos destinados a obrigar os respectivos devedores a contribuir para as maiores despesas públicas imputáveis às suas actividades económicas). Estas contribuições especiais determinadas por maiores despesas públicas ou por aumentos de valor resultantes de investimentos públicos são, no entender de Nuno Sá Gomes (in “Alguns Aspectos Jurídicos e Económicos Controversos da Sobretributação Imobiliária no Sistema Fiscal Português”, Ciência e Técnica Fiscal, Abril-Junho 1997, nº 387, pág.67)
”impostos preponderantemente locais”. Tem, portanto, de se concluir que, para preencher o conceito de taxa, tem de existir uma contraprestação, que nem sempre pode significar para o particular o gozo de uma vantagem ou benefício nem tem que constituir o exacto correspectivo económico de um serviço ou de uma actividade da Administração. Assim, “a sinalagmaticidade que subjaz ao conceito de taxa não se alcança com qualquer prestação por parte do Estado: se esta não tem que representar sempre um benefício ou vantagem, e se não tem que existir uma exacta equivalência económica entre o pagamento do particular e a acção individualizada do Estado, a contraprestação há-de, pelo menos, apresentar uma natureza material ... deverá ser possível identificar na esfera do cidadão o uso de um bem semi-público”
(P.Pitta e Cunha/J.Xavier de Bastos/A.Lobo Xavier, 'Conceitos de Taxa e Imposto”, in revista Fisco, 51/52, pág.6).
7. – No caso em apreço, a Câmara Municipal de Sintra liquidou ao recorrido, proprietário de um posto de abastecimento de carburante, a taxa de Instalações Abastecedoras de Carburantes Líquidos, Ar e Água, de acordo com o nº 5 do artigo
42º da Tabela de Taxas da Câmara Municipal, nos termos do qual são taxadas as bombas de carburantes líquidos “instaladas inteiramente em propriedade particular com abastecimento no interior da propriedade”. Ora, através de uma taxa como a que vem identificada nos autos, o obrigado ao pagamento não beneficia da utilização dos serviços de repartição ou funcionários municipais nem da remoção de qualquer obstáculo jurídico ao exercício da actividade em causa. Assim, a imposição da taxa em apreciação apenas poderia fundar-se na ocupação do domínio público e aproveitamento de bens de utilização pública. Porém, é manifesto que este tipo de contrapartida não pode concretizar-se na situação dos autos: de facto, estando o posto de abastecimento instalado inteiramente em terreno privado e decorrendo também na propriedade privada todos os actos relativos ao abastecimento e actividades complementares (como vem provado nos autos – ponto 3), a actividade de abastecimento das viaturas não implica qualquer utilização de bens semi-públicos, inexistindo qualquer conexão da taxa exigida com a ocupação de bens públicos, não sendo sequer possível ligá-la a uma eventual renovação de licença ou a quaisquer diligências que o município deva realizar para a conceder, como bem refere o Ministério Público nas suas alegações. Não tem assim a referida taxa de instalações abastecedoras de combustíveis nem natureza nem estrutura sinalagmática, pois o respectivo montante não é contraprestação ou contrapartida de nada. Não existindo qualquer contrapartida para a exigência do encargo em causa, que represente a utilidade recebida pelo particular, o pagamento da quantia imposta no caso não constitui uma taxa, mas antes um imposto. E tendo sido criado através de simples edital camarário foi violado o artigo 168º, nº1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989).»
É esta jurisprudência que, por não se descortinarem razões para a afastar e por ser inteiramente transponível para os presentes autos, aqui plenamente se reitera.
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 71º, n.º 1, alínea 1.5., da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada em 22/12/99, por violação do artigo 165º, n.º1, alínea i) da Constituição. b) Em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Lisboa,18 de Maio de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida