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Processo n.º 337/99 Plenário Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I – O pedido e os seu fundamentos
1. O Provedor de Justiça requereu, nos termos do artigo 281.º, n.º
2, alínea d), da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74, de
7 de Novembro, que dispõe o seguinte:
“Artigo 13.º
1 - ...
2 – A promoção e constituição de associações internacionais em Portugal depende de autorização do Governo. “
São os seguintes os fundamentos do pedido:
- o n.º 2 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 594/74 sujeita a promoção e constituição de «associações internacionais» à autorização do Governo;
- sendo difícil definir os contornos do conceito de «associações internacionais» utilizado por aquela norma, não parece que se possa reconduzir às pessoas colectivas internacionais, referidas no artigo 34.º do Código Civil;
- as associações internacionais objecto do Decreto-Lei n.º 594/74 parecem dever identificar-se com as organizações não-governamentais, compreendendo, assim, as pessoas colectivas de substrato pessoal sem carácter lucrativo cujos fins impliquem o desenvolvimento ou a projecção das suas actividades fora de Portugal ou sobre a ordem jurídica internacional;
- a necessidade de autorização governamental para a constituição e promoção de associações internacionais em Portugal constitui uma restrição à liberdade de associação, constitucionalmente tutelada pelo artigo 46.º, n.º 1, na sua vertente de direito positivo de associação;
- com efeito, a Constituição é clara ao determinar, no seu artigo 46.º, n.º 1, que os cidadãos podem constituir associações sem dependência de qualquer autorização, desde que aquelas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal, sendo esses os únicos limites que a Constituição admite à liberdade de formação de associações, e mostrando-se quaisquer outros, previstos por lei, inconstitucionais;
- integrando a liberdade de associação o elenco dos direitos, liberdades e garantias, as restrições de que seja alvo têm de respeitar os pressupostos contidos nos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
- por conseguinte, tais restrições só poderão ter lugar nos casos expressamente previstos na Constituição, limitando-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, e terão de assumir a forma de lei geral e abstracta, sem efeito retroactivo e sem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais;
- no caso do direito positivo de associação, os únicos «casos expressamente previstos pela Constituição» (na expressão do seu artigo 18.º, n.º 2) de restrição legal reportam-se à proibição de associações cujos fins sejam contrários à lei penal ou promovam a violência, não estando o legislador credenciado para prever restrições a este direito fundamental em nenhuma outra situação;
- é necessário diferenciar os casos de colisão de direitos dos casos de restrição legal de direitos. Se é certo que podem surgir situações de conflitos entre direitos ou interesses constitucionalmente protegidos fora dos casos expressamente referidos pela Constituição, só quando esta antecipou e previu essas situações de confronto pode o legislador editar soluções genéricas e abstractas para a solução desses conflitos. As demais situações de colisão terão de ser resolvidas, caso a caso, pelos operadores judiciários, através da interpretação directa dos preceitos constitucionais;
- neste contexto, a norma contida no artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
594/74, não se enquadra, claramente, nos casos de restrição expressamente admitidos pelo artigo 46.º, n.º 1, da Constituição: nos termos da norma constitucional, só podem ser proibidas as associações – nacionais ou internacionais – que se destinem a promover a violência ou cujos fins sejam contrários à lei penal, âmbito do qual exorbita a atribuição, ao Governo, de um poder absolutamente discricionário para autorizar a constituição de associações internacionais;
- não se pode pretender que a norma constante do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74 seja passível de uma interpretação conforme à Constituição, nos termos da qual se consideraria que o Governo só não estaria vinculado a autorizar a constituição de associações internacionais nos casos em que os fins destas fossem contrários à lei penal ou promovessem a violência;
- com efeito, a finalidade da autorização governamental prevista pelo artigo
13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74, não é, seguramente, a verificação de que os fins das associações internacionais a constituir são lícitos; essa tarefa cabe ao Ministério Público, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
594/74, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 71/77, de 25 de Fevereiro, que lhe permite promover a declaração judicial de extinção das associações - nacionais ou internacionais - não conformes «à lei e à moral pública»;
- é, pois, de concluir que a norma contida no artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74, viola o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, ao prever uma restrição
à liberdade de associação que não encontra expressa cobertura constitucional;
- é certo que um importante sector da doutrina defende que o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, não limita a possibilidade de previsão de restrições legais aos direitos, liberdades e garantias apenas aos casos expressamente previstos no texto constitucional, por entender que a salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos obriga a admitir a existência de restrições implícitas, fundadas não em normas, mas em princípios constitucionais;
- a ser assim, o que se admite aqui a título de mera hipótese, haveria que confrontar a restrição corporizada pela necessidade de obtenção de autorização governamental para a constituição de associações internacionais com os outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que ela visa salvaguardar, e verificar se essa restrição se mostraria conforme ao princípio da proporcionalidade, isto é, se poderia ser considerada uma medida adequada, necessária e tolerável, atento o fim que se propunha alcançar;
- porém, não se vislumbra com clareza qual o fim que o legislador pretendeu alcançar com a submissão da promoção e constituição de associações internacionais a prévia autorização governamental;
- em princípio, parece dever considerar-se que os amplos poderes conferidos ao Governo neste domínio se destinam à verificação da compatibilidade dos fins das associações internacionais a constituir com a prossecução dos interesses do Estado português, em especial na área das relações internacionais;
- poderá aventar-se, assim, que a necessidade de autorização para a promoção e constituição de associações internacionais se prende com a salvaguarda dos interesses do Estado português no âmbito das relações internacionais, balizados pelo artigo 7.º da Constituição, que poderiam ser prejudicados pelo desenvolvimento das actividades dessas associações em países estrangeiros ou pela sua projecção sobre a ordem jurídica internacional;
- contudo, mesmo que se aceite que um conceito tão vago como os
«interesses superiores e gerais da comunidade política» se possa subsumir aos outros «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» referidos pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a medida restritiva aqui em análise seria claramente desproporcionada;
- com efeito, se ela pode ser considerada adequada para a salvaguarda dos interesses do Estado português no âmbito das relações internacionais, na medida em que obsta, em termos absolutos, à constituição das associações internacionais que o Governo considere inconvenientes, não é, seguramente, necessária para aquele fim;
- desde logo, porque não se entende que a protecção dos interesses superiores da comunidade política careça de instrumentos diferentes, no que respeita à constituição e actuação das associações, consoante esteja em causa a ordem jurídica nacional ou as ordens jurídicas estrangeiras e a ordem jurídica internacional;
- e, depois, porque serão suficientes para a protecção dos interesses comunitários os limites directamente instituídos pelo artigo 46.º, n.º 1, da Constituição relativamente à liberdade de constituição de associações: proibição da prossecução da violência e de fins contrários à lei penal;
- deve, assim, considerar-se que a sujeição da constituição de associações internacionais a autorização do Governo também contraria o princípio da proporcionalidade, na sua vertente necessidade.
Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.
Discutido o memorando elaborado nos termos do artigo 63.º da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre formular a decisão.
II. Questões preliminares à apreciação do pedido
2. Interessa começar por referir que a norma sub judicio não foi revogada, expressa ou tacitamente, por direito ordinário posterior.
Com efeito, a única alteração expressa sofrida pelo Decreto-Lei n.º 594/74 foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 71/77, de 25 de Fevereiro. Essa modificação legislativa, incidindo apenas sobre o artigo 4º daquele diploma com vista a reduzir os custos económicos implicados pelo regime de publicidade dos actos constitutivos das associações, não tem relevância directa para o caso em apreço. E também não pode considerar-se a norma tacitamente revogada, designadamente pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, que procedeu à adaptação à Constituição, em cumprimento do comando do n.º 3 do seu artigo 293.º desta, na versão originária, além de outras, das normas do Código Civil atinentes às associações. Além de alterações de regime que não vêm ao caso (designadamente, quanto à aquisição, alienação e oneração de imóveis), o legislador limitou-se a introduzir no Código Civil “a regra segundo a qual as associações adquirem personalidade jurídica pela sua constituição por escritura pública, nos termos legais, independentemente de qualquer autorização ou reconhecimento pela autoridade administrativa (artigos 158.º e 158.º-A)” (cf. n.º 9 do preâmbulo do diploma). Neste aspecto, absorveu o que já constava do Decreto-Lei n.º 594/74, mas continuou a manter-se fora do texto do Código o regime da liberdade de associação, designadamente a norma do n.º 2 do artigo 13.º que tem natureza excepcional relativamente à norma da parte final do n.º 1 do artigo 1.º daquele diploma. Como foi referido por Maria Leonor Beleza e Miguel Teixeira de Sousa
[“Direito de associações e associações” in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, vol. III, Lisboa, 1979, pp. 121 ss.] “uma coisa é a regulamentação do direito político de associação – contida na Constituição e no Decreto-Lei n.º 594/74, de 7 de Novembro, que é anterior àquela e nem sempre compatível –, outra é a questão da personalidade jurídica porventura a reconhecer ao ente que resulta do exercício daquele direito ou apenas uma certa capacidade de movimentos, independentemente daquela personalidade. É deste ponto de vista que a matéria em causa encontra assento no Código Civil.”
Por outro lado, o interesse no conhecimento do pedido não é afastado pela circunstância de a referida norma, integrada num diploma anterior à Constituição da República, poder ter caducado com a entrada em vigor da Lei Fundamental, nos termos do artigo 290.º, n.º 2. Com efeito, a caducidade depende da prévia constatação de que a norma sub judicio é inconstitucional, pelo que sempre existirá utilidade no conhecimento do pedido.
Aliás – e o argumento interessa aos dois aspectos acabados de referir – há exemplos reveladores de que a norma tem sido considerada, na prática judiciária e administrativa, como estando em vigor (Cf. Parecer n.º 217/78, do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, acórdão de 6/10/93, P. 3295/91, do Supremo Tribunal de Justiça e acórdão de 23/1/92, P. 32 956, do Tribunal da Relação de Lisboa, in http://www.dgsi.pt e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/10/93, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, 1993, p. 51 ss.).
3. Importa ainda salientar que a circunstância de o Decreto-Lei n.º
594/74 ser anterior à Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de
1976, não impede a fiscalização da constitucionalidade da norma em crise pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, como o Tribunal Constitucional sublinhou no seu Acórdão n.º 29/84 (in AcTC, 2º vol., 1984, em esp. pp. 434-435), «uma vez que no n.º 2 do artigo 282.º da Constituição, na versão actual, se fixam os efeitos da declaração de inconstitucionalidade por infracção de norma constitucional posterior, tem de considerar-se a questão resolvida no sentido de dever colocar-se em sede de constitucionalidade a não conformidade do direito anterior com a Constituição ou os princípios nela consignados, tal como já este Tribunal entendeu no Acórdão nº 13/83, proferido no Processo n.º 8/83, e a Comissão Constitucional sempre considerou julgando-se competente para conhecer da constitucionalidade de direito anterior à Constituição».
III. Elementos relevantes para a apreciação do pedido
4. Na história constitucional portuguesa, o direito de associação foi primeiramente consignado no artigo 14.º da Constituição de 1838, segundo o qual «todos os cidadãos têm o direito de associação na conformidade das leis». Curiosamente, esse direito não seria retomado nos Actos Adicionais à Carta Constitucional, sendo, todavia, reconhecido no Código Civil de 1867, no elenco dos «direitos originários», onde se tutelava «a faculdade de pôr em comum os meios ou esforços individuais para qualquer fim que não prejudique os direitos de outrem ou da sociedade» (artigo 365.º). O artigo 3.º, n.º 14, da Constituição de 1911, e o artigo 8.º, n.º 14 e § 1.º da Constituição de 1933 iriam, de igual modo, salvaguardar o direito de associação (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV – Direitos Fundamentais, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 2000, p. 473). Note-se que, no contexto da Constituição de 1933 – e por força do disposto no Decreto-Lei n.º 39.660, de 20 de Maio de 1954 –, se estabelecia o condicionamento da formação e existência jurídica das associações
à aprovação dos estatutos pelo respectivo governador civil do distrito da sua sede ou pelo Ministro do Interior, quando o âmbito da sua actividade excedesse o do distrito. Importa, nesta sede, ter ainda presente o disposto nos artigos
158.º e seguintes do Código Civil de 1967, o regime da proscrição de actividades subversivas (Decreto-Lei n.º 37.447, de 13 de Junho de 1949), além da disciplina das associações religiosas (artigo III da Concordata de 1940, e artigos 449.º e
450.º do Código Administrativo), das sociedades secretas (Lei n.º 1.901, de 21 de Maio de 1935) e as alterações restritivas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º
520/71, de 24 de Novembro, à constituição de cooperativas [sobre este ponto, José Gaspar da Cruz Filipe, “Associação (Direito de)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. I, Coimbra, 1965, pp. 563 ss.].
Após a revolução de 25 de Abril de 1974, o Programa do Movimento das Forças Armadas previa, entre as suas «medidas a curto prazo», que o Governo Provisório promovesse imediatamente «a liberdade de reunião e de associação»
[B), ponto 5, alínea b)]. A Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, salvaguardou a disposição da Constituição de 1933 que tutelava a liberdade de associação. Os projectos constitucionais estabeleciam igualmente a liberdade de associação, como sucedia no artigo 12.º, § 20.º, do projecto do Partido do Centro Democrático Social (CDS), e a possibilidade de os cidadãos se organizarem em associações profissionais, culturais ou políticas, «de harmonia com os interesses da consolidação da democracia e da construção do socialismo» (artigo
46.º, n.º 3, do projecto do Movimento Democrático Português – MDP/CDE). O projecto do Partido Comunista Português (PCP), no n.º 1 do artigo 47.º, determinava que «os cidadãos têm o direito de se associar, sem dependência de autorização ou aprovação do Estado, para fins que não sejam ilícitos ou anticonstitucionais». O Partido Socialista propunha a seguinte norma: «é garantida a liberdade de associação, sem dependência de qualquer autorização, e desde que não se destine a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal e à ordem constitucional» (n.º 1 do artigo 20.º). Propunha-se ainda um importante n.º 2, do seguinte teor: «A lei reguladora deste direito apenas poderá fazer depender a constituição ou funcionamento da associação da obrigatoriedade de fazer inscrever num registo de associações a denominação, o local da sede e a identificação dos corpos sociais que a dirijam e de depositar um exemplar dos respectivos estatutos, os quais deverão ser aprovados em assembleia geral ou congresso dos associados, garantindo, na vida interna, a liberdade de expressão e de crítica e ainda a eleição, por sufrágio directo e secreto de todos os associados, dos corpos ou quadros sociais». Finalmente, o Partido Popular Democrático propunha, no artigo 29.º, n.º 1, do seu projecto: «os cidadãos têm o direito de se associarem livremente, sem necessidade de autorização prévia, para quaisquer fins não contrários à lei penal ou à ordem constitucional democrática, bem como o direito de pertencer ou deixar de pertencer a qualquer associação» (in Jorge Miranda, Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição, vol. I, Lisboa, 1978, pp. 427 ss.).
Na Assembleia Constituinte, procedeu-se à aprovação de uma disposição – o artigo
32.º – proposta pela Comissão de Direitos e Deveres Constitucionais e apresentada na sessão de 12 de Agosto de 1975 (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 30, de 13-8-1975, p. 790). O seu teor é o seguinte: «1 - Os cidadãos têm direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal. 2 - As associações prosseguirão livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas, não podendo ser dissolvidas pelo Estado senão nos casos previstos na lei e mediante decisão dos tribunais. 3 - Ninguém poderá ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela». O n.º 1 deste preceito – o que interessa no âmbito do presente acórdão – foi aprovado por unanimidade, não tendo gerado qualquer debate (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 41, de 3-9-1975, p. 1164).
Na versão originária da Constituição, o n.º 1 do artigo 46.º dispôs:
«1 – Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2 - ...
3 - ...
4 - ...».
O n.º 1 do artigo 46.º da Constituição não seria alterado nas subsequentes revisões da Lei Fundamental.
5. Quanto à jurisprudência constitucional portuguesa, em matéria de liberdade de associação, cumpre referir, como mais relevantes, os Pareceres da Comissão Constitucional n.ºs 11/77 (proibição de determinado tipo de associações ou organizações), 1/78 (despachantes oficiais), 2/78 (Estatuto da Ordem dos Médicos), 19/78 (organizações que perfilhem a ideologia fascista), 6/79 (Casas do Povo), e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 38/84 (Universidade Livre), 46/84 (emissão de carteiras profissionais por sindicatos), 82/84 (quotas para casas do povo), 46/85 (dissolução de federação sindical), 47/85 (quotas para casas do povo), 68/85 (recursos dos actos das associações sindicais), 73/85
(quotas para casas do povo), 79/85 (quotas para casas do povo), 140/85 (plano regional), 145/85 (inscrição do «Partido Ecologista»), 272/86
(sindicatos/auxiliares de farmácia), 342/86 (dissolução de associações sindicais), 89/87 (associações sindicais), 103/87 (agentes militarizados da Polícia), 497/89 (inscrição na Ordem dos Advogados), 308/90 (pessoal da Marinha), 368/91, 328/92 (casas do povo), 17/94 (organizações fascistas/Movimento de Acção Nacional), 711/97 (associações de promoção dos direitos das mulheres), 197/2000 (empregados de banca dos casinos) e 304/2003
(lei dos partidos políticos).
No contexto desta jurisprudência, interessa salientar em especial:
- o Acórdão n.º 38/84 (in AcTC, 3º vol., 1984, pp. 75ss), em que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de algumas normas do Decreto-Lei n.º 426/80, de 30 de Setembro, e da Portaria n.º 92/81, de 21 de Janeiro. Aí se considerou que o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 426/80, ao separar da Cooperativa de Ensino Universidade Livre, S. C. A. R. L., autonomizando-a como pessoa colectiva diferente, a Universidade Livre, violava, entre o mais, o princípio da liberdade de associação «enquanto direito da própria associação a prosseguir livremente a sua actividade» - abrangendo, portanto, a «autonomia estatutária» e a «liberdade de organização e actuação» ou o «direito de auto-organização». Mais decisivamente, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade da norma do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 426/80, quer na sua primitiva redacção, quer na redacção decorrente da Lei n.º 15/81, por entender que a mesma violava o princípio constitucional da liberdade de associação. Recorde-se que essa norma, designadamente, impunha que o Estatuto da Universidade Livre e os seus regulamentos fossem submetidos à aprovação do Ministro da Educação e Ciência (artigo 10º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº
426/80, na redacção da Lei nº 15/81). O Tribunal entendeu essa exigência contrária à Constituição, tendo admitido apenas que os planos de estudos da Universidade fossem sujeitos a aprovação governamental;
- o Acórdão n.º 145/85 (in AcTC, 6º vol., 1985, pp. 653 ss.), em que o Tribunal indeferiu o requerimento de inscrição do «Partido Ecologista», por não satisfazer a exigência do n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de Novembro, consistente em a inscrição de um partido político ser requerida, pelo menos, por 5000 cidadãos. Depois de sublinhar que a especificidade dos partidos justifica a existência de um estatuto especial quanto à sua constituição, o Tribunal considerou aquela exigência proporcionada ao peso dos valores constitucionalmente consagrados que pretende acautelar, não excedendo por isso os limites constitucionais imanentes aplicáveis.
- o Acórdão n.º 328/92 (in AcTC, 23º vol., 1992, pp. 35 ss.), em que o Tribunal se debruçou sobre um diploma regional em matéria de Casas do Povo e, nesse ensejo, teceu algumas considerações sobre liberdade de associação:
«Os cidadãos têm [...] o direito de, sem impedimentos, nem imposições por parte do Estado, constituir associações, filiar-se em associações já existentes, não entrar em qualquer associação senão por sua livre e espontânea vontade e sair de associação em que se tenham inscrito (cf. n.ºs 1 e 3 do artigo 46.º). As associações, elas próprias, uma vez constituídas, gozam do direito de se organizarem livremente e de, livremente também, prosseguirem a sua actividade
(princípio da auto-organização e da auto-gestão das associações: cf. n.º 2 do artigo 46.º). Isto não impede, obviamente, o legislador de fixar regras gerais imperativas de organização e gestão das associações. Questão é que essas regras não tornem o exercício do direito de associação particularmente oneroso. O direito de associação apresenta-se, assim, fundamentalmente, como um direito de defesa perante o Estado. O Estado não pode, na verdade, interferir na constituição das associações, desde que, claro é, elas se não destinem a promover a violência e se não proponham fins contrários à lei penal, nem sejam associações armadas, de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem perfilhem ideologia fascista. Por outro lado, o Estado também não pode intrometer-se na organização e na vida interna das associações. Finalmente, as associações (salvo no caso de deliberarem a sua própria dissolução) só podem ser dissolvidas (ou ver suspensas as suas actividades), mediante decisão judicial (reserva de decisão judicial) e desde que se verifique alguma causa de extinção expressamente prevista na lei
(princípio da tipicidade). [cf., sobre isto, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada cit., volume I, páginas
263 e seguintes. JORGE MIRANDA, 'Liberdade de Associação e Alteração aos Estatutos Sindicais', in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVIII (I da 2ª série), páginas 161 e seguintes; e ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, 'A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública', in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124º, páginas 226 e 227]».
- o Acórdão n.º 711/97 (in AcTC, 38º vol., 1997, pp. 11 ss.), em que o Tribunal, a propósito de um diploma regional sobre registo de associações de promoção dos direitos das mulheres, reiterou o que havia afirmado no Acórdão n.º 328/92 sobre liberdade de associações.
6. Diversos textos internacionais também contemplam a liberdade de associação: a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigos 20.º e 23.º, n.º 4), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 11.º, n.º 1), a Convenção Interamericana dos Direitos do Homem (artigo 16.º), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 22.º, n.º 1), e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (artigos 10.º e 11.º).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem refere que «toda a pessoa tem direito à liberdade de associação e reunião pacíficas» (artigo 20.º, n.º 1).
O artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos dispõe que:
«1.Toda e qualquer pessoa tem o direito de se associar livremente com outras, incluindo o direito de constituir sindicatos e de a eles aderir para a protecção dos seus interesses.
2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições previstas na lei e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública, da ordem pública e para proteger a saúde ou a moralidade públicas ou os direitos e as liberdades de outrem. O presente artigo não impede a submissão a restrições legais do exercício deste direito por parte de membros das forças armadas e da polícia.»
Esta formulação não é muito distinta da do artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que dispõe:
«Artigo 11.º
(Liberdade de reunião e de associação)
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses.
2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado.»
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem-se ocupado predominantemente com a delimitação da vertente negativa da liberdade de associação, como sucedeu nos casos Le Compte, Van Leuve e De Meyère (1981), sobre ordens profissionais, Young, James e Webster (1981), sobre liberdade sindical, ou Sigurdur A Sigurjonsson v. Islândia (1993), sobre a configuração de uma associação legal (cf. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Anotada, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 1999, pp. 214 ss.; Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Pierre-Henri Imbert, La Convention Européenne des Droits de l’Homme. Commentaire article par article, Paris, 1995, pp. 418 ss., em esp. p. 423; Jochen Frowein e Wolfgang Peukert, Europäische MenschenRechtsKonvention. Kommentar, 2ª ed., Kehl, 1996, pp. 409 ss.; Gérard Cohen-Jonathan, La Convention Européenne des Droits de l’Homme, Paris, 1989, pp.
500 ss.; Jacques Velu e Rusen Ergec, La Convention Européenne des Droits de l’Homme, Bruxelas, 1990, pp. 643 ss.; Francis Jacobs, The European Convention on Human Rights, Oxford, 1975, pp. 157 ss.; Luzius Wildhaber, «Aspects of the freedoms of expression and association under the European Convention Human Rights: Articles 10 and 11», in International Almanac. Constitutional Justice in the New Millennium, 2002, pp. 41 ss.). Depois de ter reconhecido às autoridades nacionais uma ampla margem de actuação na concretização das restrições previstas pelo n.º 2 do artigo 11.º, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a densificar o alcance restritivo dessa norma, seja no caso
Young, James e Webster (1981), seja no caso Ezelin v. França (1991), ambos sem uma incidência directa no problema da liberdade de constituição de associações
(cf. Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Pierre-Henri Imbert, ob. cit., pp.
428 ss. e pp. 431 ss. cf. ainda P. Bossi, «”Liberté de réunion pacifique”,
“liberté d’expression” e deontologia professionale: a proposito della sentenza Ezlin», Rivista Internazionale dei Diritti dell’Uomo, 1991, pp. 728 ss.).
Por sua vez, o artigo II-12.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União, determina que «todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação a todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico (...)».
IV. Tratamento da questão de constitucionalidade
7. Para a solução do problema de constitucionalidade suscitado no
âmbito deste processo é imprescindível determinar o sentido e o alcance da expressão «associações internacionais» no n.º 2 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 594/74.
Na ausência de qualquer definição legal, acompanhando o autor do pedido, o Tribunal entende que estas entidades não são de englobar nas pessoas colectivas internacionais a que, para efeitos de determinação da respectiva lei pessoal, se refere o artigo 34.º do Código Civil. Na verdade, estas «pessoas colectivas internacionais» são as que devem a sua criação a uma fonte de direito internacional, ou seja, a tratados ou convenções entre os Estados, resultando pois a sua personalidade jurídica não de uma ordem jurídica estadual mas do próprio ordenamento internacional.
Quanto a estas pessoas jurídicas não faria sentido condicionar a sua constituição a um qualquer mecanismo interno, que, de resto, seria de todo inoperante até porque o Estado Português pode nem sequer ser parte no acto internacional que as institua. Resultando tal constituição de um acto de direito internacional, o que poderia condicionar-se era a participação do Estado Português nessa constituição. Ainda que isso fosse constitucionalmente admissível, obviamente que não pode estar em causa no âmbito de um diploma destinado a regular o direito de associação dos cidadãos (portugueses ou estrangeiros) e não o direito de associação do Estado Português.
Não visando, pois, a disposição em questão as chamadas pessoas colectivas de direito internacional, o preceito em causa só pode assim abranger pessoas colectivas de direito interno (nacionais ou estrangeiras). A este respeito, parece não subsistirem dúvidas quanto ao sentido do termo
«associações», que deverá ser interpretado segundo a compreensão que lhe é dada na nossa ordem jurídica – pessoas colectivas de substrato pessoal que não tenham por fim a obtenção de lucros a distribuir pelos associados (assim o artigo 157.º do Código Civil e, na doutrina, por exemplo, C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, p. 185).
Diferentemente se passam as coisas, contudo, quanto ao termo «internacionais», que na disposição em crise qualifica o vocábulo «associações» e cujo alcance se impõe precisar de alguma forma.
Também a este propósito o Tribunal se não afasta da interpretação do autor do pedido, posto que entende que o que se visa com a expressão
«associações internacionais» são os entes associativos, constituídos ao abrigo de uma ordem jurídica estadual, com finalidades internacionais, de natureza científica, religiosa ou outra, que previsivelmente desenvolverão a sua actuação em mais do que um Estado [cf. neste sentido e para uma compreensão do conceito de organizações internacionais não governamentais (geralmente designadas por ONG) o artigo 1.º da Convenção Europeia sobre o reconhecimento da personalidade jurídica das organizações internacionais não governamentais, aberta à assinatura em Estrasburgo, no âmbito do Conselho da Europa, a 24 de Abril de 1986, e a que o nosso país se vincularia a partir de 1 de Fevereiro de 1992 (veja-se o respectivo texto, em anexo à Resolução da Assembleia da República n.º 28/91, de
20 de Junho de 1991, que a aprovou para ratificação, no Diário da República, I Série-A, n.º 205, de 6 de Setembro de 1991, e o aviso n.º 181/91, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 273, de 27 de Novembro de 1991)]. Em tais casos, como acontece por exemplo com a International Law Association, a Young Men’s Christian Association, ou com a Transparency International, a associação adquire personalidade jurídica à face de uma lei estadual que, nos termos do nosso sistema jurídico (artigo 33.º do Código Civil), é a lei do Estado onde se encontra situada a sede principal e efectiva da sua administração [cf. J. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª ed., Coimbra,
1990, p. 350; Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado. Parte Especial (Direito de conflitos), Coimbra, 1999, pp. 73 ss. e pp. 116 ss.; F. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 1982, p. 75].
Pode pois dizer-se que o conceito de «associações internacionais» se reporta a pessoas colectivas de direito estadual (nacional ou estrangeiro) cuja finalidade seja actuar no plano internacional. O que essencialmente as diferencia daquilo que, por contraposição, se poderia designar por «associações internas» não é o respectivo substrato pessoal mas um aspecto particular (ligado
à vocação transnacional) do respectivo elemento teleológico ou finalístico.
Trata-se, no fim de contas – e como bem assinala o requerente –, de uma realidade próxima, ainda que porventura não necessariamente coincidente, daquela que a doutrina internacional publicística designa como «organizações não-governamentais» (ONG’s), entidades sem escopo lucrativo (por oposição às sociedades transnacionais), criadas à margem de qualquer acordo intergovernamental por um conjunto de pessoas (privadas ou públicas, físicas ou morais) e que prosseguem fins muito variados, tendo como objectivo influenciar ou corrigir a actuação de Estados e organizações internacionais (cf. Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, Direito Internacional Público, trad. portuguesa, 2ª ed., Lisboa, 2003, pp. 659 ss.; Joaquim da Silva Cunha e Maria da Assunção do Vale Pereira, Manual de Direito Internacional Público, 2ª ed., Coimbra, 2004, pp. 455 ss.; André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed. revista e aumentada, Coimbra, 2003, pp.
402 ss.; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Internacional Público, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 353-354: Riccardo Monaco, Manuale di Diritto Internazionale Pubblico, 2ª ed. revista e aumentada, Turim, 1980, pp. 314-315).
Por «associações internacionais» não se visam, pois, as associações (por vezes ditas «associações de estrangeiros») cujo substrato pessoal seja maioritariamente constituído por estrangeiros [De todo o modo, tratando-se de associações constituídas à face da ordem jurídica portuguesa, para elas valerá igualmente, e por força do artigo 15º da Constituição, o que se dirá em seguida. Note-se que a nossa Constituição não reserva o direito de associação aos
«nacionais» (Lei Fundamental de Bona, artigo 9.º; Constituição da Bélgica, artigo 27.º). Alude a «cidadãos», à semelhança do artigo 18.º da Constituição italiana, mas tal referência, como está bem de ver, deve ser articulada com o princípio de equiparação contido no artigo 15.º. Sobre os problemas do exercício da liberdade de associação por estrangeiros no ordenamento espanhol, cf. Enrique Lucas Murillo de la Cueva, El Derecho de Associación, p. 110 ss. ].
8. Definido o alcance da norma sub judicio – isto é, circunscrevendo o seu âmbito às pessoas colectivas de substrato pessoal com a finalidade exclusiva ou primordial de actuarem no plano internacional –, passar-se-á à análise do problema de constitucionalidade colocado ao Tribunal pelo Provedor de Justiça.
A questão suscitada consiste em saber se é conforme à Constituição da República
– cujo n.º 1 do artigo 46.º garante a liberdade positiva de criar associações sem dependência de autorização – uma norma que sujeite a promoção e constituição de um tipo específico de associação a uma intervenção prévia do Governo. A resposta afigura-se, desde já, negativa: o artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74 é materialmente inconstitucional.
Desde há muito que se assentou em que só a ausência de constrangimentos no momento da constituição das associações permite preservar o chamado «elemento volitivo» ou «negocial» que constitui o fundamento da autodeterminação associativa. Por sua vez, esta autodeterminação associativa, entendida no sentido da ausência de limites externos à formação de grupos, é uma exigência da dinâmica pluralista das sociedades liberais contemporâneas. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no acórdão Informationsverein Lentia e outros v. Áustria
(1993), teve mesmo o ensejo de qualificar o Estado como «o último garante do pluralismo», ideia que reiterou no caso Partido Comunista Unificado da Turquia e outros v. Turquia (1998), tendo ainda afirmado que «não há democracia sem pluralismo» no caso Partido Socialista v. Turquia (1998). Na doutrina, alguns autores vão ao ponto de sustentar que a liberdade de associação é a «base, o ponto de apoio e de referência» das demais manifestações da liberdade pessoal
(cf., neste sentido, Germán Fernández Farreres, Asociaciones y Constitución, Madrid, 1987, p. 17).
Não por acaso, há quem considere que o conteúdo essencial da liberdade de associação reside precisamente na ideia de uma união livre e voluntária (cf. Enrique Lucas Murillo de la Cueva, ob. cit., pp. 147-148). Foi esse, aliás, o entendimento do Tribunal Constitucional espanhol, quando defendeu, na sentença 67/1985, que o conteúdo essencial do direito de associação compreende a liberdade de criar associações (liberdade positiva), assim como o direito de não o fazer (liberdade negativa) (cf. ainda as sentenças 113/1994,
179/1994, 223/1994, 224/1994, 152/1995 e 107/1996). A liberdade positiva de associar-se surge, neste contexto, como expressão do próprio princípio da liberdade em geral, da «autonomia do indivíduo para escolher entre as diversas opções de vida que se lhe apresentem, de acordo com os seus próprios interesses e preferências», como afirmaram as sentenças 132/1989, 139/1989 e 113/1994 do Tribunal Constitucional espanhol.
Na apreciação da questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal importa começar por referir que a norma do artigo 46.º, n.º 1, da Constituição possui um enunciado fechado ao dispor que «os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal». Mais precisamente, salvo os casos de associações que se destinem a promover a violência ou cujos fins sejam contrários à lei penal, a constituição de associações é livre sem dependência de qualquer autorização. A norma constitucional tutela a liberdade positiva de associação sem quaisquer constrangimentos e, mais ainda, exclui de forma inequívoca a interferência administrativa consistente na sujeição da constituição das associações à autorização das entidades públicas. Assim, o texto constitucional veda em absoluto que a promoção e constituição de associações, seja qual for a sua natureza e escopo, estejam submetidas a um regime de autorização, entendida esta como o «acto administrativo que permite a alguém o exercício de um seu direito ou de poderes legais» (cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10ª ed. revista e actualizada, Lisboa, 1973, p. 459) ou o «acto pelo qual um órgão da Administração permite a alguém o exercício de um direito ou de uma competência preexistente» (cf. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 2003, p. 256; José Gaspar da Cruz Filipe, “Autorização”, in Dicionário..., cit., pp. 628 ss.).
Saliente-se, a este propósito, que, em termos comparativos, o texto constitucional português é mesmo daqueles que leva mais longe – ou assume de forma mais inequívoca – a proscrição de um regime de autorização. Com efeito, o artigo 46.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa utiliza expressamente a locução «sem dependência de qualquer autorização», algo que só de forma implícita se infere do artigo 20.º da Constituição espanhola, do artigo
2.º, alínea d), da Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades, do artigo 7.º, alínea c), da Constituição da Bolívia, ou do artigo 30.º da Constituição russa de 1993, por exemplo. A linha trilhada pelo legislador constituinte português tem paralelos no artigo 18.º da Constituição italiana («I cittadini hanno diritto di associarsi liberamente, senza autorizzazione, per fini che non sono vietati ai singoli dalla legge penale», itálico acrescentado) ou nos §§ XVII e XVIII do artigo 5.º da Constituição brasileira de 1988: «XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de carácter paramilitar; XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento» [itálico acrescentado]. Também o artigo 15.º da Constituição chilena de 1980 atribui «el derecho de asociarse sin permiso previo», o artigo
27.º da Constituição belga determina que «les Belges ont le droit de s'associer; ce droit ne peut être soumis à aucune mesure préventive» e a Secção 13ª da Constituição finlandesa de 1999 dispõe que todos têm o direito de associar-se sem necessidade de autorização prévia.
Mas, mesmo quem admita a possibilidade de uma intervenção dos poderes públicos na fase de constituição das associações, sempre reconhecerá que uma tal intervenção nunca pode corresponder a um regime de autorização administrativa prévia sem vinculação a pressupostos legalmente definidos.
No caso em apreço, essa intervenção poderia, porventura, procurar apoio na ideia de que as associações internacionais não devem servir de pretexto ao exercício de formas de actuação «para-diplomática» susceptíveis de porem em causa a condução da política externa do Estado português.
Simplesmente, e mesmo que em tese geral se admita essa ideia, cujas eventuais concretizações não poderiam dispensar um confronto com os princípios do artigo
7.º da Constituição, a exigência de uma autorização prévia constitui uma restrição manifestamente desproporcionada para alcançar tal finalidade. O controlo de eventuais «abusos do direito de associação» por parte das associações internacionais deverá fazer-se no momento do exercício da sua actividade, não no da sua constituição, salvo o controlo de conformidade à lei ou à moral pública, a efectuar pelo Ministério Público nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 594/74, na redacção do Decreto-Lei n.º 71/77. Sujeitá-las a uma autorização do Governo – quando o texto constitucional inequivocamente proscreve uma tal forma de interferência estatal na génese das associações – equivale a uma limitação irrazoável e arbitrária, porque destituída de fundamento material bastante, do direito fundamental tutelado pelo n.º 1 do artigo 46.º da Constituição da República. E isto vale quer para o momento
«genético» ou constitutivo das associações, como para a actividade dinâmica da sua «promoção», já que a liberdade de associação contempla ambas as realidades.
De resto – e como se disse –, o Decreto-Lei n.º 594/74 prevê, através da intervenção do Ministério Público, mecanismos de controlo da legalidade das associações, não existindo motivos para que, além desses mecanismos, se submetam as «associações internacionais», pelo simples facto de actuarem na esfera internacional, a um regime específico e restritivo.
Além do mais, nos termos em que está formulada, a norma do artigo
13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74 não define o sentido e o alcance da autorização governamental. A sua finalidade, como está bem de ver, não pode ser a de salvaguardar a conformidade dos estatutos da associação à lei ou à moral pública, pois que nesse plano actua o Ministério Público, nos termos do já citado artigo 4º do Decreto-Lei n.º 594/74. A discricionaridade da intervenção do Governo é, pois, à primeira vista, total, uma vez que em lugar algum do Decreto-Lei n.º 594/74 se explicita a que se destina a autorização, em que condições ou com que motivos pode ser concedida ou negada. Ora, a simples circunstância da natureza «internacional» da associação não é, só por si, suficiente para justificar e legitimar um regime de controlo tão afastado do inciso da norma constitucional do artigo 46.º e do próprio princípio geral enunciado no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 594/74, nos termos do qual todos os cidadãos maiores podem livremente associar-se sem necessidade de qualquer autorização prévia.
Um tal regime, de resto, seria também excessivo e irrazoável quando se entendesse que a norma visa sujeitar entre nós a promoção (no sentido de desenvolvimento das actividades) de uma associação internacional (no sentido acima definido), constituída à face de uma ordem jurídica estrangeira e integrada por portugueses ou estrangeiros residentes em Portugal. Também a restrição a uma tal actividade contenderia com o princípio da liberdade de associação.
Tal não significa dizer que a constituição de associações é absolutamente livre e, nesse sentido, que todos e quaisquer requisitos introduzidos pelo legislador ordinário seriam forçosamente inconstitucionais. No Acórdão n.º 145/85, como se referiu, o Tribunal admitiu que, atenta a especial natureza das organizações partidárias, não era irrazoável, em face do artigo
47.º da Lei Fundamental, que a sua constituição dependesse da exigência de 5000 assinaturas. Isto porque o estabelecimento de requisitos constitutivos não pode confundir-se com a submissão a um regime de autorização prévia. Se aqueles são legítimos atendendo à particularidade de certas associações – não sendo de excluir a existência de diversos requisitos de constituição consoante os tipos de associação – a proscrição constitucional da autorização prévia vale para
«todas as hipóteses associativas», para usar os dizeres da sentença n.º 193, de
1985, do Tribunal Constitucional de Itália.
E ainda que se reconheça uma «especial natureza» às associações internacionais a que alude a norma sub judicio, não se vislumbra em que medida essa «especial natureza» pode permitir a sujeição a um regime de autorização prévia por parte do Governo, que para mais não surge ordenada a qualquer finalidade objectiva ou ligada a qualquer fundamento apreensível pelo intérprete, e para o qual não existe credencial constitucional bastante. Esta última ideia inviabiliza, de resto, uma interpretação conforme à Constituição da norma impugnada, a qual foi ensaiada pelo Provedor de Justiça, mas abandonada justamente por não ser possível apoiá-la no enunciado do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 594/74.
Ante o exposto, o Tribunal considera que a norma do artigo 13.º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 594/74, de 7 de Novembro, enferma de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 46.º, n.º 1, da Constituição da República.
IV. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 13.º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 594/74, de 7 de Novembro, por violação do disposto no artigo 46.º, n.º 1, da Constituição da República.
Lisboa, 6 de Outubro de 2004
Vítor Gomes Artur Maurício Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Carlos Pamplona de Oliveira – vencido pelas razões expressas na declaração da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Bravo Serra (vencido, pelo essencial das razões aduzidas na declaração de voto aposta ao presente acórdão pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, conforme declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Discordei do julgamento de inconstitucionalidade, no essencial, pelo seguinte: Em primeiro lugar, porque, a considerar-se que estabelece um regime incompatível com a protecção constitucional da liberdade de associação, então dever-se-ia considerar que o preceito em causa – o n.º 2 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
594/74, de 7 de Novembro – foi revogado com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 497/77, de 25 de Novembro, que expressamente veio dar execução ao disposto no n.º 3 do artigo 293º da Constituição (na sua versão originária). Não teria, nesse caso, utilidade o conhecimento do pedido. Em segundo lugar, porque não creio que a melhor interpretação do mesmo preceito seja aquela que foi apontada pelo requerente e acolhida pelo acórdão. Na verdade, do confronto com o n.º 1 do mesmo artigo 13º (que contrapõe associações portuguesas a associações internacionais) e com o n.º 1 do artigo
14º, nomeadamente, resulta que o objectivo é controlar a actividade que se propõem desenvolver em Portugal associações não portuguesas. Só assim, aliás, é que se descortina utilidade para a inclusão da promoção para além da constituição das referidas associações. Com este âmbito de aplicação, o preceito não viola, a meu ver, o n.º 1 do artigo
46º da Constituição.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza