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Processo n.º 462/03 Plenário Relator: Conselheiro Artur Maurício
(Conselheiro Rui Moura Ramos)
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
1- A Câmara Municipal de A., visando a construção do Parque Industrial da cidade, promoveu a declaração de utilidade pública e consequente expropriação de uma série de prédios situados no concelho de A.. Contava-se entre estes a totalidade da área de um prédio inscrito na matriz predial rústica, pertencente a B. e sua mulher, C..
Fixado por arbitragem o valor da indemnização e adjudicada a propriedade à expropriante, veio esta interpor recurso [artigo 52.º do Código das Expropriações (adiante designado CE, reportando-se a referência ao Código aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro)] para o Tribunal Judicial da Comarca de A., visando reduzir o valor indemnizatório fixado na arbitragem.
Realizada a avaliação do prédio (artigo 61.º, n.º 2 do CE) foi-lhe atribuído o valor de 20.256 euros, proferindo o Tribunal de A. a decisão de fls. 687/689 v.º, que, julgando parcialmente procedente o recurso, fixou a «justa indemnização» nesse mesmo montante. Nesta decisão (parte 3.2. a fls. 689) recusou o Tribunal, por a considerar inconstitucional, a aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CE (ou seja, deduzir ao montante fixado a diferença entre as quantias pagas até aí pelo expropriado, a título de Contribuição Autárquica, e as que teria pago com base na avaliação efectuada no processo de expropriação). Fundou-se tal recusa na violação dos “princípios constitucionais da igualdade, na sua vertente externa, e da justa indemnização (artigos 13.º e 62.º, n.º 2 da CRP)”.
Desta decisão, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro (adiante designada LTC), recorreu o Ministério Público para este Tribunal. Paralelamente, a expropriante/Câmara Municipal de A. (requerimento de fls. 694), pretendeu apelar da mesma, sendo que, através do despacho de fls.
697, em que foi admitido o recurso para o Tribunal Constitucional, foi relegada para momento posterior a tomada de posição sobre o recurso da Câmara, por se encontrarem interrompidos, em função do recurso de constitucionalidade, os prazos de interposição de outros recursos (artigo 75.º, n.º 1 da LTC).
Chegado o processo a este Tribunal, apresentou o Ministério Público alegações, pugnando pela procedência do recurso, rematando-as com as seguintes conclusões:
“1 – A norma constante do artigo 23º, nº. 4, do Código das Expropriações de
1999, ao prever a compensação entre o montante da indemnização devida ao expropriado e resultante da avaliação efectuada em tal processo e o direito da Fazenda Pública à correcção e revisão oficiosa da liquidação da contribuição autárquica, resultante da actualização dos valores matriciais – e devida no período temporal em que não ocorreu ainda caducidade do direito à liquidação- não viola os princípios da não retroactividade da lei fiscal e da igualdade, confiança, segurança jurídica e justa indemnização.
2– Na verdade – e face ao regime instituído nos artigos 20º. e 21º. do Código da Contribuição Autárquica – a liquidação desta com base nos valores constantes de matrizes não actualizadas reveste natureza provisória até ao momento da caducidade do direito à liquidação e revisão oficiosa, podendo ser corrigida pela Administração Fiscal sempre que uma superveniente avaliação dos bens revele um valor patrimonial superior ao que constava da matriz.
3– E inexistindo, deste modo, qualquer expectativa minimamente fundada do contribuinte na estabilidade dos valores liquidados com base na matriz, sendo os mesmos oficiosamente revisíveis sempre que uma avaliação ulterior dos bens mostre que os valores patrimoniais não estavam actualizados.”
Não houve contra-alegações.
No uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 79º-A n.º 1 da LTC, o Presidente deste Tribunal determinou, com a concordância do Tribunal, que o julgamento do recurso se fizesse com intervenção do Plenário.
Cumpre decidir
2 - A recusa de aplicação que está na base do presente recurso de constitucionalidade vem referida ao artigo 23.º, n.º 4 do CE que estabelece:
Artigo 23.º
(Justa indemnização)
“...........................................................................................
4. Ao valor dos bens calculados por aplicação dos critérios referenciais fixados nos artigos 26.º e seguintes, será deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de Contribuição Autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação, nos últimos cinco anos.”
Trata-se de uma disposição inovadora do actual Código das Expropriações, introduzida pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, sem qualquer correspondência no direito anterior [ou seja, no Código aprovado pelo D.L. n.º 438/91, de 9 de Novembro (CE 91), e no diploma que antecedeu este último: o Código das Expropriações aprovado pelo D.L. n.º 845/76, de 11 de Dezembro].
A explicitação do juízo de desconformidade constitucional da norma recusada é feita na decisão recorrida remetendo para dois trabalhos publicados na vigência do actual CE. Vejamos, pois, o que, nos trechos em causa dessas obras, afirmam a tal respeito os dois autores respectivos:
“…………………………………………………………………… Esta disposição (o artigo 23.º, n.º 4) obsta a que o montante indemnizatório corresponda ao valor real e corrente do bem, pelo que é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização. Nem sequer se pode afirmar que é um pagamento retroactivo da contribuição autárquica, dado que o montante deduzido não será entregue à entidade que legitimamente tem o direito de arrecadar o imposto (a autarquia), beneficiando, pelo contrário, única e exclusivamente a entidade expropriante que (…), pode, até nem estar integrada na Administração estadual.
………………………………………………………………........”
(Pedro Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, Coimbra,
2003, pág. 257);
“…………………………………………………………………… O n.º 4 visa reduzir artificialmente a indemnização, traduz-se numa flagrante violação aos princípios constitucionais da igualdade na sua vertente externa e da justa indemnização (artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que impõe exclusivamente aos expropriados e não a todos aqueles que transmitam onerosamente bens imóveis este sacrifício. Como há muito ensina Pedro Soares Martinez, o fim da expropriação por utilidade pública não consiste na realização de uma receita pública e dela emerge o dever de indemnizar os expropriados (Direito Financeiro e Direito Fiscal, Coimbra
1983, pág.40). Não se trata tecnicamente do pagamento retroactivo da Contribuição Autárquica, uma vez que essa dedução no valor da indemnização não se destina à autarquia, que tem o direito a arrecadar o imposto (artigo 1.º do Código da Contribuição Autárquica), mas apenas beneficia a entidade expropriante, que pode até não se enquadrar na Administração Estadual, será o caso das concessionárias dos serviços públicos.
……………………………………………………………………”
(João Pedro de Melo Ferreira, Código das Expropriações Anotado e Legislação Complementar, 2.ª edição, Coimbra, 2000, págs. 114/115).
Significa isto que a decisão recorrida adere expressamente a argumentos que reportam a inconstitucionalidade da norma a dois aspectos distintos: ofensa ao princípio constitucional expresso no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (adiante designada CRP); violação do princípio constitucional da
«justa indemnização», em matéria de expropriação por utilidade pública, decorrente da parte final do artigo 62.º, n.º 2 da CRP.
Assinale-se que a tese da inconstitucionalidade material da norma em causa não é nova - ela tinha sido já defendida na doutrina, embora com fundamentação mais alargada, por Alves Correia, que refere existir violação dos princípios da justa indemnização, da não retroactividade fiscal e da igualdade nas vertentes externa, interna e fiscal [A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Anos 132 e 133, nºs. 3904 a 3913/3914
(págs. 118/119 dos nºs. 3913/3914)], e, antes ainda, por Marcelo Rebelo de Sousa, neste caso com base em fundamentos que apontam para a ofensa ao princípio constitucional da justa indemnização (Expropriações: Código Inconstitucional, Jornal «Expresso», de 23.10.1999).
3 - A violação do princípio constitucional da igualdade decorre, na óptica da decisão recorrida, da circunstância de o sacrifício traduzido na redução do valor indemnizatório afectar apenas os expropriados “e não todos aqueles que transmitam onerosamente bens imóveis” (João Pedro de Melo Ferreira, ob, cit. pág. 115). Trata-se aqui daquilo que usualmente se qualifica como o princípio da igualdade na relação externa da expropriação (compara expropriados com não expropriados). Não obstante a decisão em causa se referir, exclusivamente, à perspectiva externa do princípio da igualdade, adiante focaremos também a chamada vertente interna deste (comparação entre expropriados).
Embora de um ponto de vista doutrinário se discuta se a expropriação por utilidade pública pode ser vista como implicando a transmissão de um bem (cfr. neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol II, 9ª ed., reimpressão, págs. 1020/1021; Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, separata do volume XXIII do suplemento do BFDUC, Coimbra 1982, pág, 77), ou constitui antes uma forma de extinção de direitos reais sobre bens imóveis, com a concomitante constituição de novos direitos na esfera jurídica do expropriante (esta é a posição de Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II vol., Lisboa 1979, págs 794/795; no mesmo sentido, José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa 1997, págs. 18/21), o que é facto é que, em termos de princípio constitucional da igualdade, pode colocar-se em paralelo a posição de quem realiza uma transmissão onerosa de bens imóveis com a de quem é privado de um bem desta natureza através de expropriação por utilidade pública, ou seja, mediante o pagamento de uma justa indemnização.
Com efeito, existindo em ambos os casos a realização de um valor decorrente da saída da esfera patrimonial de alguém de um bem imóvel, pode-se comparar, designadamente no que toca à sujeição desse valor a encargos públicos, a situação de quem transmite onerosamente com a de quem é indemnizado em virtude de expropriação (princípio da igualdade na relação externa da expropriação).
A demonstração da pertinência desta comparação alcança-se ao constatar, por exemplo, que para o efeito de sujeição a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), tanto a contraprestação relativa à alienação onerosa, como o valor da indemnização por expropriação, são tratados como «incrementos patrimoniais» e tributados, na categoria G do IRS [v. artigo 1º, nº 1 e 44º, nº
1, alíneas b) e f), do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, no caso do artigo 44º, na redacção da Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro].
Este tipo de comparação é comum na jurisprudência do Tribunal Constitucional, precisamente em situações de sujeição do expropriado (do valor indemnizatório por este recebido) a encargos públicos de natureza diversa (v., por exemplo, os Acórdãos nºs. 314/95 e 86/03, respectivamente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol. , 1995, págs. 475/489, e Diário da República – II Série, de 23-05-03, págs. 7873/7876). Aliás, como refere Alves Correia, a
“Constituição, impondo que a indemnização seja justa, exige que o legislador ordinário defina um critério de determinação do quantum indemnizatório capaz de realizar o princípio da igualdade dos expropriados entre si e destes com os não expropriados” (Propriedade de bens culturais – restrições de utilidade publica, expropriações e servidões administrativas, in Direito do Património Cultural, Lisboa 1996, pág. 407).
Tem, pois, e em princípio, cabimento a comparação, particularmente para aferição do cumprimento do mandato constitucional que prescreve um tratamento legislativo igual do que é igual e diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença.
4 - O controlo judicial do comportamento do legislador, com o objectivo de determinar se este, adoptando determinada solução normativa, se conteve dentro dos parâmetros decorrentes do princípio constitucional da igualdade, expresso no artigo 13.º da CRP, pressupõe uma compreensão aprofundada dos fins visados com essa solução.
Significa isto que, estando nestes casos sempre em causa um juízo de comparação entre duas realidades, só através da determinação dos objectivos visados é possível compreender se esta ou aquela solução – quando implica, à luz dessa comparação, um tratamento desigual – se configura como arbitrária, estando, em função disso, constitucionalmente vedada.
É este critério, a que poderemos chamar de controlo da arbitrariedade, que vem funcionando na nossa jurisdição constitucional, já desde a Comissão Constitucional, como mecanismo de aferição do respeito pelo princípio da igualdade [o primeiro Parecer da Comissão Constitucional, o Parecer n.º 1/76
(Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º Vol., Lisboa, 1977, págs. 5/18), lidou , desde logo, com uma «questão de desigualdade» e com o controlo dos motivos do legislador; veja-se, como exemplo recente na jurisprudência deste Tribunal, o Acórdão n.º 232/03 (Diário da República – I Série A, de 17/6/03, págs. 3514/3531)].
Este controlo dos motivos à luz do conceito de arbitrariedade, pesquisa a existência de uma «razão suficiente» para a diferenciação, sendo que, como refere Robert Alexy, “(...). Uma razão é suficiente para a permissão de um tratamento desigual se, por força dessa mesma razão, esse tratamento desigual não é arbitrário” (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, pág. 375). Ou, como se diz no já indicado Acórdão n.º 232/03: “Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (...) e, bem assim, de um critério de razoabilidade”.
5 - Ainda como nota prévia, não deixará de se dizer, sobre a natureza da norma em causa, que está longe de ser decisivo o facto de a norma se inserir num preceito que leva a epígrafe de 'Justa indemnização' para se concluir que se trata, substancialmente, de um comando sobre o valor da indemnização; isto muito embora a incidência que ela tem no montante líquido a pagar ao expropriado como valor indemnizatório.
Com efeito, a determinação do valor dos bens expropriados que, nos termos do n.º
5 do preceito, 'deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado', é feita de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e segs. do Código, tendo ainda em conta o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23º e 24º do mesmo diploma.
Em bom rigor, é, pois, através desses comandos, tomando em consideração características intrínsecas do bem expropriado, que se determina o valor da
'justa indemnização'.
Já não assim no caso em apreço: o valor real e corrente do bem, num mercado não especulativo, foi já apurado e é representado pelo montante de uma parcela a que se vai abater a diferença entre o montante da contribuição autárquica que se considera devida e a que foi efectivamente paga nos últimos quatro anos.
Resultando, ao menos tendencialmente, da avaliação efectuada, no âmbito do processo expropriativo, o valor patrimonial do bem e sendo este o valor tributável sobre que incide a contribuição autárquica, aquela acaba por funcionar, também, como uma avaliação “ad hoc”, para efeitos fiscais.
Nesta medida, a norma assume uma natureza essencialmente tributária; o processo expropriativo e o pagamento da indemnização devida representam a oportunidade para a liquidação e cobrança (adicionais) de um tributo que, incidindo sobre o valor patrimonial do imóvel expropriado, fora liquidado e cobrado, por montante inferior ao devido, o que só a avaliação no processo expropriativo acabou por revelar.
E a natureza essencialmente tributária da norma em causa não é posta em causa pelo facto de se não encontrarem previstos no Código das Expropriações (que nem sequer seria o local próprio) os termos em que o montante pago “a menos” pela entidade expropriante (em virtude da redução operada pela cobrança adicional da contribuição autárquica) deva ser transferido para a autarquia a quem é devida essa contribuição, isto nos casos em que não é entidade expropriante a própria autarquia.
Na verdade, o expropriante funciona aqui como uma entidade da administração tributária incumbida da liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica – ainda que na modalidade específica do abatimento ou redução do valor indemnizatório – resultando a obrigação de transferência da respectiva verba para o município do facto de a contribuição autárquica constituir, por força do artigo 1º do Código da Contribuição Autárquica, um imposto municipal.
Diga-se, de resto, que estas considerações se podem considerar descabidas, no presente recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, uma vez que, sendo, no caso, expropriante uma câmara municipal, se não coloca qualquer questão de transferência de verba correspondente à redução do montante a pagar ao expropriado.
6 - Assente a natureza substancialmente tributária da norma, a questão de saber se ela obedece ao princípio da justiça e, particularmente, ao da igualdade, terá necessariamente em conta o quadro do nosso ordenamento jurídico-tributário, mesmo aceitando a linha argumentativa da decisão recorrida que conduziu ao julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 23º n.º 4 do CExp, directamente reportada à exigência constitucional plasmada no artigo 62º n.º 2 da Constituição.
De todo o modo, não se deixará de abordar - e desde já - a questão do cumprimento da exigência constitucional do pagamento de uma justa indemnização, considerando como valor da indemnização o montante líquido que, por virtude daquela redução, operada ao abrigo do artigo 23º n.º 4 do CExp. é efectivamente pago ao expropriado.
7 - A justeza de um montante indemnizatório por expropriação dependerá, em termos gerais, da circunstância de esse valor “traduzir uma adequada restauração da lesão patrimonial” (palavras do Acórdão nº 381/89), o que implica – e a jurisprudência do Tribunal Constitucional também o tem afirmado (v.g., no já citado Acórdão nº 314/95) – um mínimo de correspondência a referenciais de mercado na determinação do quantum indemnizatório. É que, se é no mercado onde os actores económicos, através da oferta e da procura, fixam o valor dos bens transaccionados, não poderá ter-se por adequado um valor completamente desfasado daquilo que corresponderia, nesse mesmo mercado, ao valor de transacção do bem expropriado.
Quando se fala em um mínimo de correspondência a referenciais de mercado, quer-se sublinhar um outro elemento, também invariavelmente presente na jurisprudência deste Tribunal, e que acentua que a expressão (que é usada por Alves Correia, in O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra 1989, pág 540) «valor de mercado normativamente entendido» corresponde “a um valor de mercado «normal» ou «habitual», em que não entrem em linha de conta factores especulativos ou anómalos, o que faz com que, algumas vezes, o pretium dos bens que poderia ser obtido num mercado onde jogam livremente as regras da oferta e da procura, seja, acentuada ou substancialmente diferente daquele que se obteria por recurso ao conceito normativo delineado” (citação do Acórdão nº 314/95; v. ainda Alves Correia, A Jurisprudência do Tribunal Constitucional..., cit. págs.
233/234, dos nºs. 3905 e 3906).
Ou seja, o que se pretende dizer é que o valor justo, o «justo preço», não podendo ser alheio aos critérios de mercado, não tem que coincidir integralmente com eles, sendo possíveis, sem que a indemnização deixe de ser constitucionalmente adequada, “reduções (...) impostas pela especial ponderação do interesse público que a expropriação serve”, tal como “são admitidas majorações, devido à natureza dos danos provocados pelo acto expropriativo”
(Alves Correia, o Plano Urbanístico... cit.).
Ora, seguindo este entendimento, pese embora não se desconhecer a existência de outras opiniões [sublinha-se, particularmente a de Alves Correia
( A Jurisprudência do Tribunal Constitucional... cit., pág. 119, do nº. 3913 e
3914), segundo a qual a norma em causa, “tem como consequência a percepção pelo expropriado de uma indemnização que se situa aquém do valor real e corrente do bem expropriado”], o Tribunal, dizíamos, não obstante essas distintas visões do problema, entende que não se pode dizer que a intervenção de um factor de redução como aquele que resultará, em situações de desactualização do valor matricial, do artigo 23º, nº 4, do CE, implique, abstractamente, ou seja, em quaisquer circunstâncias, um valor completamente alheio aos critérios do mercado. Isto, não só porque os critérios «puros» de mercado não são uma exigência constitucional, como também porque no mercado, em condições normais de funcionamento deste, também estão presentes – e intervêm decisivamente na formação do preço dos bens – valores decorrentes de múltiplos factores exteriores, caso dos encargos fiscais e «custos de transacção» diversos.
Significa isto que, se nos centrarmos exclusivamente na perspectiva do direito a uma justa indemnização, a norma recusada apresenta-se, ainda, como compaginável com o texto constitucional.
8 - Chegados a esta conclusão e apreciando agora o cumprimento do princípio da igualdade, convir-se-á que, intimamente relacionada a exigência de uma indemnização correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo e possível numa utilização económica normal, com uma repartição igualitária dos encargos resultantes da expropriação, o entendimento de que a norma não infringe o princípio de uma justa indemnização dificilmente se ajusta
à tese segundo a qual a mesma norma ofende o princípio da igualdade.
E a verdade é que, tendo em conta a situação de todos os outros expropriados, nas mesmas condições, não há qualquer distinção de tratamento, sujeitos, todos eles, à redução da indemnização nos termos do artigo 23º n.º 4 do CExp.
Certo é, porém, que, como se viu, a decisão recorrida coloca e resolve a questão da violação do princípio da igualdade no plano da relação entre expropriados e não expropriados quando estes procedem à transmissão onerosa dos imóveis de que são proprietários.
E é aqui, para a resolução da questão, que temos que nos situar no quadro do ordenamento jurídico-tributário, como se passa a fazer.
9 - O aparecimento da CA no universo fiscal português, ocorre com a chamada
«reforma fiscal dos Anos 80» (v. quanto a esta José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra 2003, pág. 464 e segs.) e concretamente com o trecho desta, situado em 1988, referente à reforma da tributação sobre o rendimento, que introduziu, além da CA, o IRS e o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC). No caso específico da CA, a sua introdução, com as características que assumiu, ficou a dever-se, como explica Manuel Porto (A Reforma Fiscal Portuguesa e a Tributação Local, in Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, vol. III, Coimbra 1984, págs. 115/160), à associação de três factores: as características do imposto antecessor, a Contribuição Predial (CP); a base de tributação estabelecida para o cálculo do IRS e IRC, então também introduzidos; a questão das receitas fiscais das autarquias locais.
Com efeito – e começando pelo primeiro factor enunciado -, importa ter presente que a CP, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 45104, de 1 de Junho de 1963, que aprovou o Código da Contribuição Predial (CCP), introduzida com a chamada
«reforma fiscal Teixeira Ribeiro», dos Anos 60, tributava o rendimento da propriedade rústica e urbana (v. artigos 1.º a 3.º do CCP). Ora – e assim entramos no segundo factor indicado -, incidindo os então (em 1988) criados IRS e IRC sobre “todo e qualquer rendimento efectivo que porventura os contribuintes auferissem, colocou-se a questão da necessária extinção da contribuição predial enquanto tal, já que a sua base, ao menos parcial (os rendimentos efectivamente percebidos), foi absorvida pelos novos impostos, passando a fazer, naturalmente, parte da base de tributação dos novos impostos sobre o rendimento” (Vasco Valdez Matias, A Contribuição Autárquica e a Reforma da Tributação do Património, Lisboa 1999, pág. 21). Paralelamente – e este é o terceiro factor –, destinando-se as receitas geradas pela CP às autarquias (o que passou a suceder desde a primeira lei das finanças locais, a Lei n.º 1/79, de 2 de Janeiro) e assumindo estes valores um peso não desprezível nas receitas fiscais do poder local (v. Manuel Porto, ob. cit., págs. 123/124 e Vasco Valdez Matias, ob. cit., págs. 22/24), sempre seria necessário criar um sucedâneo, em termos de destino das receitas, da CP, sob pena de a estabilidade financeira das autarquias exigir, daí em diante, um aumento muito substancial das transferências do Orçamento do Estado para os municípios.
Este dilema resolveu-o o legislador criando a CA, um imposto de receita municipal, visando a tributação estática do património imobiliário, correspondendo o respectivo valor tributário ao valor patrimonial dos prédios e não ao rendimento que estes podem proporcionar, como sucedia com a CP (v. José Casalta Nabais, ob. cit., págs. 590/591 e J.L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra 2002, págs. 22/24). Conforme se referia no Preâmbulo do CCA, esta forma de tributação “encontra especial justificação na lógica do princípio do benefício, correspondendo o seu pagamento à contrapartida dos benefícios que os proprietários recebem com as obras e serviços que a colectividade lhes proporciona” [v. na jurisprudência deste Tribunal as referências ao princípio do benefício, relativamente à CA, nos Acórdãos n.ºs.
57/95 e 363/01, respectivamente no Diário da República – II Série, de 12/4/95, págs. 4041/4073 (pág. 4057), e de 13/10/01, págs. 17097/17100 (pág. 17099)]. Também o novo imposto que substituiu a CA, o IMI, assenta no princípio do benefício, referindo o legislador no preâmbulo do CIMI, que se mantêm
“plenamente actuais as razões que, aquando da reforma de 1988-1989, levaram à criação de um imposto sobre o valor patrimonial dos imóveis, com a receita a reverter a favor dos municípios, baseado predominantemente no princípio do benefício”.
Sucede, porém, que, assentando a base de tributação da CA no valor estático dos prédios, tal qual este é expresso através das respectivas matrizes, a omissão por parte do legislador de proceder à actualização destas, conduziu a uma disfunção tributária traduzida naquilo que Saldanha Sanches descreve como “uma sobrecarga fiscal das casas mais recentes e (...) uma subtributação das mais antigas” (ob. cit., pág. 24; cfr., no mesmo sentido, José Casalta Nabais, ob. cit., pág. 179).
Esta disfunção do sistema introduzido em 1989 foi, desde logo, detectada tendo sido repetidamente referida, como ilustram, entre outras possíveis, as seguintes transcrições:
“(...) Logo aí (em 1989) se viu que o principal problema (com a CA) seria, sempre, o da avaliação da matéria colectável, ou seja, o da determinação do valor dos prédios sobre que incide a contribuição. Anunciou-se um Código de Avaliações, que nunca chegou a ser aprovado e os valores de base sobre que assenta o tributo não têm hoje, como já não tinham em 1989, nenhuma relação com a realidade (...)”.
(António Carvalho Martins, Avaliações Fiscais, Coimbra 2002, pág. 101);
“(...) existe um outro (problema) que contribui para as grandes iniquidades ao nível da tributação predial, em particular no âmbito da CA. Trata-se da questão da maior importância que diz respeito à desactualização das matrizes prediais ou, dito por outras palavras, de os prédios terem valores substancialmente diversos consoante os anos de avaliação, independentemente do seu valor intrínseco.
(...) Os prédios, aquando da finalização da sua edificação, tinham de ser inscritos na matriz, apurando-se, nesse momento, qual o rendimento presumido que auferiam para efeitos de CP. Como, entretanto, não se efectuaram com regularidade avaliações gerais, sucede que o rendimento colectável inicialmente inscrito não sofreu alterações, o que determinou, sobretudo em contexto de elevada inflação, a rápida desactualização daquele rendimento. Em contrapartida, prédios mais recentes viram o rendimento colectável mais elevado ser inscrito na matriz, o que determinou que se acentuasse a diferença de rendimento entre os imóveis. Como o rendimento colectável é que serviu de base à determinação do valor tributável, este diferencial só parcialmente foi corrigido no momento da entrada em vigor da CA, já que nesse momento se efectuou uma actualização do rendimento colectável a qual se fez à razão de 2% ao ano (para os prédios rústicos) e 4% ao ano para os urbanos), com o limite máximo de 100%, tomando-se como base a última avaliação. O fenómeno, de certa forma, agravou-se a partir de 1989 quer porque a base de tributação passou a ser o valor dos imóveis o que induziu (...) um aumento da base sobre que incidia o imposto, quer porque se assistiu ao longo dos anos 80, a um aumento sensível dos preços no mercado habitacional (...). De tudo isto resultou que o diferencial de tributação entre prédios mais antigos e, consequentemente, inscritos na matriz há mais tempo e os prédios mais recentes e com valores patrimoniais mais elevados se tem vindo a acentuar
(...)”.
(Vasco Valdez Matias, ob. cit., págs. 56/57).
Mais claro ainda, a este propósito, o teor do preâmbulo do recentemente publicado CIMI, onde se lê:
“Há muito tempo que se formou na sociedade portuguesa um largo consenso acerca do carácter profundamente injusto do regime actual de tributação estática do património imobiliário. Esse consenso é extensivo à identificação das causas do problema, a saber, a profunda desactualização das matrizes prediais e a inadequação do sistema de avaliações prediais. Embora o Código da Contribuição Autárquica tenha entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1989, o sistema de avaliações vigente é ainda o do velho Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Industria Agrícola de 1963, que em grande parte manteve o sistema do Código da Contribuição Predial de 1913. O sistema de avaliações até agora vigente foi criado para uma sociedade que já não existe, de economia rural e onde a riqueza imobiliária era predominantemente rústica. Por essa razão, o regime legal de avaliação da propriedade urbana é profundamente lacunar e desajustado da realidade actual. A enorme valorização nominal dos imóveis, em especial dos prédios urbanos habitacionais, comerciais e terrenos para construção, por efeito de sucessivos processos inflacionistas e da acelaração do crescimento económico do País nos
últimos 30 anos, minaram a estrutura e a coerência do actual sistema de tributação. A combinação destes factores conduziu a distorções e iniquidades, incompatíveis com um sistema fiscal justo e moderno e, sobretudo, a uma situação de sobretributação dos prédios novos ao lado de uma desajustada subtributação dos prédios antigos.”
(citação do preâmbulo do DL. Nº 287/03)
Esta disfunção, reportando-nos à CA, torna-se evidente se se tiver em conta a situação da propriedade rústica comparativamente à propriedade urbana. Aquela, assente em cadastros antigos e não sistematicamente actualizados, representando
(dados de 1995) cerca de dois terços dos prédios abrangidos pela CA (11,7 milhões de prédios rústicos, contra 5,3 milhões de prédios urbanos), contribui para o “bolo” global da CA (63,5 milhões de contos em 1995) com apenas 1,5% (1 milhão de contos), contra 98,5% (62,5 milhões de contos) da propriedade urbana
(estes valores são indicados no estudo de Vasco Valdez Matias a que nos vimos referindo, v. pág. 58).
É nesta situação de profunda disfunção tributária que vamos encontrar o fundamento (a razão de ser) de uma norma com as características do artigo 23.º, n.º 4 do CE. Trata-se, disse-se já, de um mecanismo de correcção da base de cálculo da CA, em situações de desactualização das matrizes (que se sabe serem quantitativamente significativas). Partindo-se do princípio de que a determinação do valor do prédio para efeitos indemnizatórios no processo expropriativo, expressando o real valor deste, também evidenciará – quando isso ocorrer – a desactualização da base tributária, o legislador entendeu que nestes casos, ao fazer repercutir no montante indemnizatório essa desactualização, estaria de alguma forma a corrigir a disfunção resultante da disparidade de valores pagos a título de CA pelos detentores de prédios com matrizes actualizadas e por aqueles cujas matrizes se mostrem desactualizadas.
Do que se deixa dito resulta, desde logo, que, visando a Contribuição Autárquica a tributação do valor patrimonial, real, dos imóveis - valor esse naturalmente sujeito à situação conjuntural da economia em geral e do mercado imobiliário em particular -, o regime instituído pelo artigo 23º n.º 4 do CE acaba por ser, em si mesmo considerado, um meio adequado para atingir aquele fim: a avaliação reporta-se ao momento actual e obedece a regras criteriosas de determinação do valor patrimonial do imóvel, com o que o valor tributável na contribuição autárquica, previsto como base da liquidação do imposto (artigo 7º n.º 1 do CCA) se acaba por ajustar, com rigor e actualidade, ao valor patrimonial do bem.
O que, também desde logo suscita a interrogação sobre se será legítimo, numa necessária análise comparativa, - para efeitos de decidir se há, ou não, violação do princípio da igualdade - confrontar uma tal solução legal com o tratamento dado à situação de um não expropriado que vende o seu bem imóvel e a quem, por virtude da desactualização das matrizes prediais, da não efectivação de avaliações gerais legalmente permitidas, da não entrada em vigor do Código das Avaliações, ou, ainda, da 'prática' da administração tributária, é, supostamente, cobrada uma contribuição autárquica que resulta de uma liquidação sobre valor não correspondente (inferior) ao valor patrimonial do bem.
Dizer-se, nestas circunstâncias, que a norma do artigo 23º n.º 4 do CE viola o princípio da igualdade pressupõe assim, fazer-se relevar, como padrão, o que, numa das situações em confronto, corresponde a um 'benefício' de algum modo ilegítimo, o que não pode aceitar-se.
Certo é, porém, que, mesmo não se aceitando esta posição de princípio, mas sempre tendo por irrelevante, na resolução de uma questão de constitucionalidade normativa, o que a 'prática' da administração tributária possa contribuir para aquele 'benefício', existem, no nosso ordenamento jurídico, comandos legais que investem a administração tributária no poder-dever de reavaliar um imóvel quando se verifiquem circunstâncias (designadamente, o preço de venda do imóvel) que permitam suspeitar do desajustamento (para menos) do valor inscrito na respectiva matriz, relativamente ao valor patrimonial do bem, o qual serviu de base á liquidação e cobrança da contribuição autárquica.
Vejamos.
O artigo 7º do CCA estabelecia no seu n.º 1 que o valor dos prédios era o seu valor patrimonial, sendo este determinado nos termos do Código das Avaliações.
Prevenindo, contudo, situações que ocorressem antes da entrada em vigor daquele Código (e ele nunca vigorou), o Decreto-Lei n.º 442/88, de 30 de Novembro, estabeleceu, para além da actualização automática do rendimento colectável dos prédios rústicos e urbanos (artigos 6º n.º 2 e 7º n.º 2), regras sobre o valor tributável e avaliação desses prédios.
Assim, o valor tributável dos prédios urbanos e rústicos seria o que resultasse da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, com a aplicação do factor 15 (para os prédios urbanos) e 20
(para os prédios rústicos); no que concerne a avaliações, o artigo 8º n.º 1 determinava que elas seriam efectuadas segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola.
Constituindo as matrizes prediais os registos de que consta o valor tributável dos prédios, importa ainda considerar que a administração fiscal procede oficiosamente à actualização das matrizes quando se verificarem novas avaliações
(artigo 14º n.º 3 do CCA).
De importância decisiva para a resolução da questão que nos ocupa é, no entanto, o que se dispõe no artigo 20º n.º 1 alínea a) e 21º do CCA.
Por força destes preceitos, a administração fiscal procede oficiosamente à revisão das liquidações em resultado de nova avaliação, efectuando uma liquidação referente ao período da omissão; esta liquidação, correctiva, só poderá, porém, fazer-se nos prazos e termos previstos nos artigos 45º e 46º da LGT, ou seja com observância do prazo geral de caducidade do respectivo direito
(4 anos).
Ora, nos termos do artigo 263º alínea b) do CCP, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 764/75, de 31 de Dezembro, os serviços de fiscalização devem organizar e apresentar na repartição de finanças competente um verbete em relação, entre outros, aos prédios de que 'os mesmos serviços suspeitem ser o rendimento inscrito inferior ao que deva corresponder-lhes', devendo os chefes das repartições de finanças obter o maior número possível de esclarecimentos,
'para exacta averiguação do rendimento dos prédios rústicos e urbanos' (artigo
264º, corpo).
De entre esses elementos são expressamente referidos os 'processos de expropriação' e os 'termos de declaração para pagamento de sisa' (n.ºs 4 e 6 do artigo 264º).
Em presença dos elementos obtidos e dos referidos verbetes, os chefes de repartição de finanças organizam anualmente proposta de avaliação dos prédios cujos rendimentos inscritos na matriz ' se suspeite serem inferiores aos que devam corresponder-lhes' (artigo 265º, corpo, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 764/75, de 31 de Dezembro).
Tal proposta será enviada ao respectivo director de finanças para efeitos do disposto no artigo 129º, ou seja, para autorização das avaliações.
Deste complexo normativo, aplicável, como se viu, enquanto as avaliações, para efeitos da contribuição autárquica, se processam nos termos do CCP - naturalmente com as adaptações inerentes ao facto de, no caso da contribuição predial, se tributar um rendimento e não o valor patrimonial do bem imóvel - resulta, assim, que a administração fiscal dispõe de poderes (que não podem deixar de ser poderes-deveres) de reavaliação de cada prédio, quando se suspeite que o respectivo valor tributável é inferior ao valor real, inserindo-se nesses
'elementos de suspeita' o valor da transmissão onerosa do bem, cujo conhecimento
é obtido através da declaração feita para efeitos de sisa.
Reavaliado o bem e obtido um valor superior ao que serviu de base à liquidação e cobrança do imposto, deve proceder-se a uma liquidação e cobrança adicionais reportadas aos anos em que não caducou ainda o respectivo direito nos termos do artigo 45º e 46º da LGT.
É evidente que se não verifica aqui a 'automaticidade' da liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica a que se procede nos termos do artigo 23º n.º 4 do CE.
Mas isto deve-se à diferença de circunstâncias envolventes dos casos em presença, o que, substancialmente, não põe em causa a igualdade de tratamento.
Enquanto no processo expropriativo se procedeu já a uma avaliação do prédio expropriado, no caso da transmissão onerosa, a avaliação tem necessariamente que se seguir à transmissão, funcionando o preço declarado como suspeita de sub-avaliação fiscal do prédio, que faz desencadear o processo de reavaliação de onde derivará a revisão oficiosa da liquidação, nos termos do citado artigo 20º n.º 1 alínea a) do CCA..
Por outro lado, da transmissão onerosa de bens por um determinado preço não resulta, necessariamente, que o valor patrimonial real e justo do bem, tributável em contribuição autárquica, corresponda a esse preço (pense-se no caso de se tratar de um preço especulativo), o que sempre demandará uma reavaliação.
Do exposto resulta, pois, que o tratamento dado pelo legislador às situações em confronto, no que concerne à liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica, é substancialmente idêntico, sem infracção ao princípio da igualdade, na relação externa da expropriação, nem, também por esta via, da exigência constitucional do pagamento de justa indemnização.
Em suma: a norma do artigo 23º n.º 4 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, não viola o disposto nos artigos 13º e 62º n.º 2 da Constituição.
10 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Junho de 2004
Artur Maurício Maria Helena Brito Gil Galvão Maria Fernanda Palma Bravo Serra Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração que junto)
Mário José de Araújo Torres (vencido pelas razões constantes da declaração de voto do Exmº Cons. Rui Manuel Moura Ramos) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Vítor Gomes (vencido, conforme declaração junta) Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
1. Não acompanhei a decisão do Tribunal por divergir do entendimento segundo o qual a norma sub judicio não ofende o princípio constitucional da igualdade. Contrariamente à posição que fez vencimento, considero, conforme constava do projecto que apresentei como primitivo relator, que o artigo 23º, nº 4 do Código das Expropriações (doravante CE, estando em causa o Código aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro), quando encarado na perspectiva da chamada relação externa da expropriação (aquela que compara expropriados com não expropriados), induz, irremediavelmente, uma situação de desigualdade perante os encargos públicos entre quem é indemnizado em virtude da expropriação por utilidade pública e quem transmite onerosamente bens imóveis.
Não se discute – e neste aspecto acompanho inteiramente o Acórdão – a caracterização da intencionalidade da citada norma do CE. Está, com efeito, em causa a desactualização da base de cálculo da Contribuição Autárquica (CA), entretanto substituída pelo Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), relativamente a uma parcela muito significativa dos prédios – os mais antigos -, cujas matrizes, por não terem ocorrido actualizações ao longo dos anos, não expressam, consabidamente, o valor económico real desses prédios, mesmo na perspectiva de uma tributação estática do património.
Daí que se diga que “[a] tributação dos prédios ocupados pelos seus proprietários [seja] hoje a manifestação mais flagrante das distorções e injustiças do sistema fiscal português”, já que “[as] casas mais baratas que se podem encontrar no mercado vão entregar anualmente ao Estado qualquer coisa como
1% do seu valor real; enquanto as casas antigas, por melhores que sejam, podem pagar um milésimo ou ainda menos” (J. L. Saldanha Sanches, Prefácio ao estudo de Vasco Valdez Matias, A Contribuição Autárquica e a Reforma da Tributação do Património, Lisboa, 1999, pág. 9).
Esta circunstância, porém, se explica a opção do legislador do CE, ao estabelecer um mecanismo de recuperação da CA, face a uma determinação actualizada (a avaliação expropriativa) do valor do prédio, já não justifica que esse mesmo sistema implique uma penalização acrescida do expropriado, comparativamente aos proprietários de prédios, também eles “beneficiados” pela desactualização das matrizes, que procedem à sua alienação a preços de mercado, preços estes que também evidenciam um cálculo actualizado do valor do prédio.
A posição que fez vencimento procura resolver este problema afirmando existirem no nosso ordenamento “comandos legais que investem a administração tributária no poder-dever de reavaliar um imóvel quando se verifiquem circunstâncias (designadamente, o preço da venda do imóvel) que permitam suspeitar do desajustamento (para menos) do valor inscrito na respectiva matriz, relativamente ao valor patrimonial do bem, o qual serviu de base à liquidação e cobrança da contribuição autárquica”.
Face a este argumento não posso deixar de frisar, desde logo, que se as coisas fossem exactamente assim as matrizes prediais não estariam, como estão, desactualizadas e o legislador, ao editar recentemente o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), não teria identificado como causa do
“carácter profundamente injusto do regime actual de tributação estática do património imobiliário”, o que qualifica como “a profunda desactualizarão das matrizes prediais” (preâmbulo do CIMI, aprovado pelo DL nº 287/03, de 12 de Novembro).
É certo que a análise comparativa que o exercício do controlo normativo aqui pressupõe não pode basear-se na pesquisa das práticas da administração tributária. Porém, conhecendo todos a realidade, não seria descabido que, numa situação com estas características, a apreciação da existência de desigualdade mostrasse um mínimo de abertura à law in action. A não ser assim, a comparação que o controlo do respeito pelo princípio constitucional da igualdade implica não está a comparar o que existe (tal qual existe), mas antes uma realidade «virtual», com a realidade «real» que é para o expropriado a redução da indemnização, sem necessidade de qualquer mediação interpretativa.
De qualquer forma, mesmo tomando como dado adquirido a construção interpretativa que o Acórdão nos apresenta, não considero que a norma recusada passe, mesmo assim, no teste da igualdade. É que, importa sublinhá-lo, o artigo
23º, nº 4 do CE funciona automaticamente, operando desde logo a redução do quantum indemnizatório, e a eventual recuperação das contribuições autárquicas desfasadas do valor real do prédio, na hipótese de venda deste, não apresenta qualquer automaticidade, dependendo sempre de uma (altamente improvável) iniciativa da Administração Fiscal de reavaliar o prédio, actualizar a matriz e
realizar uma liquidação adicional do imposto. Não é correcto afirmar a inexistência de desigualdade quando o que está em causa para um dos termos da comparação é uma certeza (uma consequência automática) e para o outro termo uma mera eventualidade. O que é facto – e não vejo como se possa fugir a isso – é que não existe, para quem transmita onerosamente bens sobre os quais incida CA, algo de tão expressivo, imediato e objectivo como o é, para o expropriado, a consequência jurídica do artigo 23º, nº 4 do CE.
Esta norma, pretendendo atenuar, por razões de justiça fiscal, o efeito induzido pela desactualização dos valores matriciais, ou seja da base de cálculo da CA, acaba por introduzir, perversamente, um factor de perturbação, traduzido numa sobrecarga acrescida do expropriado, quebrando o equilíbrio existente perante os encargos públicos, entre este e aquele que aliena um prédio a terceiros.
Este equilíbrio, com efeito, fora, de alguma forma, alcançado com a entrada em vigor, no início de 1989, do IRS (e a consequente abolição do imposto de mais-valias), sendo certo que decorre do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) a sujeição a este imposto da contraprestação resultante da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis tal como da indemnização por expropriação (v. artigos 10.º, n.º 1, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea b) e f), e n.º 2, do CIRS). Tal consequência, aliás, foi expressamente assumida pela Administração Fiscal, ao editar em 1990 um ofício circular da Direcção Geral das Contribuições e Impostos (n.º X-4/90, de 22/11/90), transmitindo a seguinte indicação:
“Tendo-se suscitado dúvidas sobre se após a entrada em vigor do Código do IRS, mantém actualidade a doutrina transmitida pelo ofício circular n.º D-2/87, de 4 de Agosto, foi por despacho de 90/10/25, sancionado o seguinte:
1 – A partir da data da entrada em vigor do Código do IRS, ficou prejudicado o entendimento sancionado relativamente ao Código do Imposto de Mais-Valias e transmitido através do ofício circular n.º D-2/87, de 4 de Agosto, no sentido de que não eram consideradas resultantes de transmissão onerosa os ganhos obtidos na expropriação, por utilidade pública, de terrenos para construção.
2 – Assim, no âmbito da categoria do G de IRS, as expropriações de terrenos para construção efectuadas a partir de 89/01/01 ficam sujeitas a tributação independentemente da data da aquisição, salvo se esta tiver ocorrido antes de
65/06/09 data da publicação do Código do imposto de Mais-Valias, caso em que será aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de
30 de Novembro.
(Transcrito por Jaime Devesa e Manuel Joaquim Marcelino, in, IRS-IRC-CA-EBF,6.ª ed., Coimbra, 2003, págs. 985/986).
É esta situação de equilíbrio na sujeição a encargos públicos que o artigo 23.º, n.º 4 do CE, vem alterar, na medida em que só fica sujeito, inequivocamente, a este mecanismo de actualização (recuperação) da CA, o expropriado e já não o alienante oneroso de imóveis.
Importa sublinhar que o expropriado, sendo sacrificado por um acto unilateral do Estado, é colocado, à partida, com a ablação do seu direito de propriedade para realização do interesse público, numa situação de desigualdade intrínseca perante os outros cidadãos (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., 1990, págs. 49/65). Daqui decorre, como refere Alves Correia, que a “vertente do interesse público” não seja o único parâmetro a levar em conta “na análise das implicações do princípio constitucional da justa indemnização em caso de expropriação; também há-de ser considerado o ‘princípio da igualdade de encargos’ entre os cidadãos, princípio que obriga a que o expropriado não seja penalizado no confronto com os não expropriados” (cit. no Acórdão n.º 86/03, Diário da República- II Série, de
23-05-03, págs. 7873/7876).
Em função disto, a posição do expropriado deve ser equacionada, no que diz respeito à sujeição a encargos públicos que acresçam à própria ablação do direito de propriedade, dentro de uma lógica exigente, que pode ser configurada como um verdadeiro direito à “omissão de um tratamento desigual”. Com efeito, como sugestivamente refere Robert Alexy, “(...) frequentemente, a violação do direito de igualdade definitivo abstracto é evitável de várias formas”, sendo disso exemplo “a alternativa: não realização da intervenção que viola a máxima de igualdade ou a sua extensão a todos os sujeitos jurídicos essencialmente iguais” (Theorie der Grundrechete, Frankfurt, 1996, pág. 392). Ora, a intervenção legislativa decorrente do artigo 23.º, n.º 4 do CE, ilustra esta situação: o legislador, se tivesse omitido a intervenção que afecta a posição do expropriado, teria mantido o equilíbrio (a igualdade) entre este e os demais proprietários de imóveis que os transmitem onerosamente; realizando tal intervenção, e não a estendendo a ambas as situações objecto de comparação, quebra esse equilíbrio, que o mesmo é dizer, introduz um factor de desigualdade.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto vencido o presente acórdão que representa, a meu ver, um inesperado retrocesso na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a natureza da
“justa indemnização” a que se refere o artigo 62º n. 2 da Constituição (cfr., a título de exemplo, o Acórdão 86/2003 in DR, II série, de 23MAI2003).
A norma em causa introduz um factor de desvalorização totalmente arbitrário no montante devido ao expropriado e ofende o já aludido artigo 62º n. 2 da Constituição. Além disso, visa manifestamente contornar o rigor com que a
(pretérita) jurisprudência deste Tribunal definia o que deveria ser, em matéria de expropriação, a justa indemnização.
Votaria, portanto, pela inconstitucionalidade material da norma em apreço.
Conselheiro Pamplona de Oliveira
Declaração de voto Votei no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, pelo essencial das razões constantes da declaração de voto do Ex.mº Cons. Rui Moura Ramos, no que toca à violação do princípio da igualdade. Limito-me a acrescentar as seguintes considerações:
1. Entendo que o referido artigo 23º, n.º 4, ao mandar deduzir ao valor dos bens expropriados o “valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação, nos últimos cinco anos”, não viola apenas o princípio da igualdade, mas igualmente a garantia de uma “justa indemnização”, consagrada no artigo 62º, n.º 2, da Constituição. Na verdade, prevê-se naquela norma uma dedução ao “valor de mercado” a pagar ao expropriado, calculado nos termos dos artigos 26º e seguintes (“o resultante da média aritmética actualizada entre os preços unitários de aquisições, ou avaliações fiscais que corrijam os valores declarados, efectuadas na mesma freguesia e nas freguesias limítrofes nos três anos, de entre os últimos cinco, com média anual mais elevada, relativamente a prédios com idênticas características” – artigo 26º, n.º 2), de uma quantia apurada pela aplicação à contribuição autárquica dos últimos cinco anos da avaliação do prédio realizada para efeitos de expropriação. Ora, correspondendo tal “valor de mercado” ao que
é relevante para efeitos da satisfação da garantia de uma “justa indemnização”, tal dedução a esse valor não poderá deixar de violar esta garantia. Nem, aliás, a consideração de que as quantias a deduzir teriam sido realmente devidas também por proprietários de outros prédios, não expropriados, com base numa avaliação actualizada que a Administração Fiscal poderia ter promovido, permite justificar tal dedução, à luz do critério da “justa indemnização”. É que a circunstância de a actualização poder ter (ou poder ter tido) lugar não significa que aconteça efectivamente, sendo que, por outro lado, a diferença no valor realmente constante das matrizes se poderá reflectir (e normalmente se reflectirá) no
“valor de mercado” do prédio. Enquanto a actualização das matrizes não for geral, para todos os prédios, por ocasião de toda e qualquer alienação, a diferença entre elas não poderá deixar de ter reflexos, maiores ou menores, no valor de mercado dos prédios, pelo que uma “actualização” selectiva do valor para apenas alguns deles (ainda que pela via indirecta de uma avaliação para efeitos do pagamento da indemnização por expropriação) não poderá deixar de ter como consequência um desvio do valor destes últimos em relação ao valor geral de mercado.
2. Afigura-se-me chocante que sobre quem já se viu expropriado do imóvel – e, portanto, suportou já o sacrifício da perda do direito sobre este, contra ou sem a sua vontade – possa recair ainda o sacrifício acrescido de lhe serem cobrados, pela via da dedução na indemnização que lhe é devida, impostos superiores
àqueles que são pagos pela generalidade dos proprietários de prédios semelhantes, não expropriados. Que este é o resultado da norma em questão, é algo sobre que não restam quaisquer dúvidas, conhecendo-se, por um lado, a generalizada desactualização das matrizes prediais (salvo para os imóveis novos), reconhecida pelo próprio legislador, e desconhecendo-se por completo, por outro, qualquer prática corrente de actualização das matrizes de prédios semelhantes ao expropriados – ou, apenas, de revisão oficiosa das liquidações da respectiva contribuição autárquica, nos termos dos artigos 20º, n.º 1, alínea a), e 21º, ambos do Código da Contribuição Autárquica. A revisão oficiosa de liquidações de contribuição autárquica, com base em nova avaliação do prédio, invocada no presente acórdão como mecanismo geral que minoraria a “especialidade” do sacrifício imposto pela norma do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações, só poderia, aliás, ter lugar no prazo de caducidade do direito à liquidação, que é de quatro anos
(artigo 45º da Lei Geral Tributária) e não de cinco anos, como se prevê, para efeitos da dedução do que “teria sido devido” a título de contribuição autárquica, no artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações, em apreço. Mesmo ignorando o menor prazo de caducidade, em confronto com o previsto na norma em apreço (ou admitindo uma sua interpretação abrogatória, não explicitada no acórdão), a possibilidade de uma nova avaliação do prédio levar a liquidação adicional da contribuição autárquica relativa a anos anteriores à nova avaliação, ainda não cobertos pela caducidade do direito à liquidação, é, porém, de conformidade constitucional, pelo menos, duvidosa, sendo o imposto devido o correspondente ao valor tributável constante da matriz em cada ano fiscal – mesmo em caso de desactualização desse valor –, e não qualquer valor superior resultante de futura nova avaliação, posterior ao facto tributário. O Código da Contribuição Autárquica prevê, aliás, que as matrizes “serão actualizadas anualmente com referência a 31 de Dezembro” (artigo 13º, n.º 3), devendo a actualização ser efectuada por declaração do contribuinte, salvo circunstâncias especiais, apenas quando for “ordenada uma actualização geral das matrizes”
(artigo 14º, n.º 1, alínea h), do mesmo Código), e cumprindo à Administração Fiscal proceder oficiosamente à “actualização do valor tributável dos prédios, em resultado de novas avaliações ou quando tal for legalmente determinado”
(artigo 14º, n.º 3, alínea b); nos termos do artigo 15º do citado Código, por sua vez, as normas relativas à actualização das matrizes e às entidades para tal competentes deveriam constar de diploma especial, que, porém, não foi publicado).
3. Acresce que, como se nota no acórdão, da lei apenas resulta uma possibilidade de “reavaliação” dos prédios em caso de suspeita de um valor matricial inferior ao real, numa solução que, além de confirmar ter ficado a actualização das matrizes a cargo da Administração Fiscal (salvo se existirem as circunstâncias excepcionais referidas no citado artigo 13º, n.º 1, do Código da Contribuição Autárquica), nem se refere especificamente a qualquer transmissão onerosa do prédio (que, se conhecida, apenas poderá ser um dos “elementos de suspeita” da divergência), nem se reveste da natureza “automática” que caracteriza a solução legal em crise. A circunstância de poderem estar em causa verdadeiros
“poderes-deveres”, da Administração Fiscal, de reavaliação dos prédios, em caso de suspeita de divergência, não consegue iludir a inexistência de qualquer mecanismo geral de reavaliação de imóveis em caso de transmissão onerosa, desde logo, pela necessidade de verificação em concreto dos pressupostos para o surgimento do referido “poder-dever”: o conhecimento pela Administração Fiscal da transmissão e do seu valor real, a fundar a suspeita de divergência em relação ao valor constante da matriz. A referida “automaticidade” da solução do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações – com dedução “à cabeça”, ao montante da indemnização, do imposto que teria sido devido com base na avaliação realizada para efeitos de expropriação –, não é, por outro lado, explicada pela “diferença das circunstâncias envolventes dos casos em presença”, ao contrário do que se diz no acórdão de que discordei. Com efeito, nada impedia o legislador de separar o pagamento da indemnização pela expropriação, por um lado, e a liquidação e cobrança do imposto devido segundo uma nova avaliação do prédio, por outro – isto, é, podia perfeitamente ter previsto, primeiro, o pagamento integral da
“justa indemnização”, calculada segundo os critérios gerais que este Tribunal tem considerado bastantes para satisfazer a exigência de “justa indemnização”, e, num segundo momento, se o considerasse possível (e pesem embora as reservas acima referidas), a liquidação e cobrança adicional da contribuição autárquica. Nem é a circunstância de se ter já procedido a uma avaliação, para efeitos de expropriação, que impõe ou justifica uma dedução automática à “justa indemnização” do imposto que teria sido devido (aliás, num período de tempo mais longo do que o correspondente ao prazo de caducidade do direito à liquidação), nem qualquer razão de economia processual pode justificar o evidente gravame adicional que, com a espúria conexão dos procedimentos de pagamento da justa indemnização, por um lado, e de liquidação e cobrança da contribuição autárquica, por outro, se faz incidir sobre quem teve já de suportar o sacrifício de ser expropriado. Tal conexão de procedimentos, para além de outros problemas que pode levantar – como o da falta de identidade entre a entidade expropriante e o município titular da receita fiscal, ou o da natureza da norma em causa (e mesmo que tais questões possam não ser consideradas só por si decisivas) –, impede, na prática, o expropriado/contribuinte de contestar qualquer actualização do valor tributável do prédio, rectius, confunde a actualização do valor tributável com a avaliação do valor do imóvel para efeitos de expropriação. Ora, pode admitir-se não ser lícito ao expropriado/contribuinte pretender receber uma indemnização segundo um valor e pagar contribuição autárquica segundo um outro, mais baixo – o que, porém, sempre pressuporá que o valor tributável, relevante para efeitos de contribuição autárquica, tenha que ser pelo menos igual ao valor de mercado, relevante para efeitos de “justa indemnização” por expropriação (pressuposto, este, que é tudo menos líquido, considerando a remissão constante dos artigos 6º e 7º do Decreto-Lei n.º
442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica, para o critério da “capitalização do rendimento colectável”, a fim de determinar o valor tributável dos prédios). No entanto, o que não se justifica é o aproveitamento da situação, de relativa fragilidade, do expropriado/contribuinte, como credor de uma indemnização por outro facto, totalmente diverso do facto tributário (a expropriação), para lhe impor a cobrança “automática” de um imposto que apenas “teria sido” devido, liquidado segundo critérios contra os quais não tem, agora, qualquer interesse em reagir. Deste modo, não só o expropriante paga menos que o “valor de mercado”, como a Administração Fiscal (se vier a ter intervenção no processo, o que o acórdão intencionalmente preferiu deixar na sombra) cobra mais do que o valor constante das matrizes para a generalidade dos prédios, subtraindo-se ainda ao contribuinte/expropriado, pela conexão de procedimentos em questão, a possibilidade de reagir especificamente contra a actualização do valor tributável do prédio, como deveria poder fazer. Também esta consequência – que aponta para uma situação de verdadeira “deslealdade procedimental”, a favorecer o expropriante – acentua a desigualdade em que o contribuinte/expropriado fica, por virtude da solução legal em apreço, em relação não só aos demais proprietários de imóveis que os transmitem onerosamente, como em relação a outros contribuintes.
4. Por estas razões, entendi que, na sequência da abundante jurisprudência constitucional, quer sobre o princípio da igualdade, quer sobre o cálculo da
“justa indemnização”, garantida pela Constituição da República em caso de expropriação por utilidade pública – jurisprudência, esta, particularmente impressiva e já com influência em várias alterações legislativas, no sentido da protecção dos direitos dos expropriados –, o Tribunal Constitucional não deveria ter deixado de se pronunciar no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999. Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
Votei vencida por considerar violados os princípios da justa indemnização
(artigo 62º, n.º 2 da Constituição) e da igualdade (artigo 13º, n.º 1 da Constituição), princípios que, no que respeita às regras relativas à indemnização por expropriação por utilidade pública, me parecem indissociáveis. Em síntese, não considero que cumpra a imposição constitucional de “justa indemnização” um regime que se limite a garantir que o valor encontrado para o respectivo montante traduza “um mínimo de correspondência a referenciais de mercado na determinação do quantum indemnizatório”, como se afirma no acórdão, exprimindo, a meu ver, um raciocínio afinal semelhante ao que o Tribunal Constitucional tem utilizado para distinguir as exigências constitucionais relativas às indemnizações por nacionalização e por expropriação por utilidade pública (cfr. acórdão n.º 39/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. pág. 233 segs). Note-se, aliás, que o efeito da aplicação da norma que o Tribunal maioritariamente julgou não inconstitucional se traduz em retirar uma parcela ao montante da indemnização que foi encontrado por corresponder ao «valor de mercado “normal” ou “habitual”», valor esse que o Tribunal Constitucional tem considerado adequado à exigência constante do n.º 2 do artigo 62º da Constituição (cfr. Acórdãos n.ºs 314/95 ou 86/2003, por exemplo, publicados no Diário da República, II série, de 31 de Outubro de 1995 e de 23 de Maio de 2003, respectivamente), assim se fixando para a indemnização um montante assumidamente abaixo desse valor “normal”. Violado o princípio da justa indemnização, violado é igualmente o princípio da igualdade, já que, neste domínio, são princípios indissociáveis. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da maioria, votando no sentido da confirmação da decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade, no essencial, pelo seguinte:
A) Não me parece possível sustentar a natureza tributária da dedução imposta pelo n.º 4 do artigo 23º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, mais precisamente, que esse abatimento ao valor dos bens, que foi calculado por aplicação dos critérios referenciais fixados nos artigos 26º e seguintes do Código, constitua uma liquidação e cobrança adicionais da contribuição autárquica É exacto que o fundamento ou pressuposição da norma é a desarmonia entre o valor considerado para efeitos de liquidação de contribuição autárquica e para efeitos de expropriação por utilidade pública e que por ela perpassa uma finalidade de, por alguma forma, corrigir a disfunção tributária assim revelada: o prédio tem um valor quando se trata de medir a capacidade contributiva e outro quando se trata de determinar a indemnização por expropriação, geralmente, a cargo de ente público. Mas, perante a neutralidade do elemento literal e a forte inclinação contrária do elemento sistemático de interpretação (não é só a epígrafe do artigo 23º, mas todo o conteúdo dispositivo do Título III que não apoia a recondução do n.º 4 a uma norma espúria sobre liquidação do tributo), seria necessário identificar uma disposição legal que constituísse o expropriante – que não é necessariamente o município do lugar da situação dos bens - na obrigação de proceder ao pagamento ou à transferência dessa importância para o município titular da receita fiscal, para concluirmos estar perante uma norma respeitante a essa espécie tributária e que o expropriante é um mero agente da Administração Tributária. Disposição que não existe no Código das Expropriações (a entidade expropriante apenas é condenada a pagar o montante das indemnizações, i.e., o valor dos bens deduzido da importância em causa – art.º 66º do CE99), nem no Código da Contribuição Predial (a retenção na fonte e a substituição tributária são estranhas ao sistema de liquidação e cobrança deste imposto), onde apenas se encontra prevista uma medida cautelar que consiste em a indemnização por expropriação não ser entregue ao expropriado sem que se mostrem pagas ou garantidas todas as anuidades vencidas da contribuição (artigo 29º do CA e artigo 67º, n.º 4, do CE99). Base legal que também não vislumbro noutra sede, designadamente no Código de Procedimento e Processo Tributário ou na Lei Geral Tributária. Assim, não tendo legalmente o destino da contribuição autárquica, a dedução prevista na norma opera em benefício do expropriante, traduzindo-se numa diminuição da “justa indemnização” alcançada nos termos dos artigos 26º e seguintes do Código das Expropriações, que viola o disposto no artigo 62º da Constituição, como foi decidido pela sentença impugnada. B) Mas, mesmo que se configure essa dedução como uma liquidação adicional de contribuição autárquica proprio sensu, a norma que a estabelece não passa o teste do princípio da igualdade, como se julgou na sentença recorrida. Com efeito, a desconformidade do valor patrimonial constante da matriz com o valor real, ocultando a capacidade contributiva que se pretende atingir em contribuição autárquica, tanto ocorre relativamente a prédios expropriados como na situação perfeitamente comparável de prédios objecto de alienação voluntária onerosa. Ora, não me parece exacto o entendimento de que, quanto a estes prédios, a Administração Fiscal podia liquidar adicionalmente contribuição autárquica relativamente aos últimos quatro anos – mesmo deixando na sombra que a eficácia desse argumento, em toda a extensão da norma, supõe uma interpretação correctiva do n.º 4 do artigo 23º do CE99 que é dificilmente sustentável se tivermos presente que o encurtamento do prazo de caducidade do direito de liquidação de tributos, de 5 para 4 anos, fora introduzido pela Lei Geral Tributária para produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1998 (artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), portanto anteriormente à norma em causa, que continua a abranger um período de 5 anos –, com base em avaliação ordenada na sequência da alienação, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 263º do Código da Contribuição Predial. Efectivamente, a contribuição
é liquidada com base nos valores constantes das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que respeita, sendo esse o valor tributável (artigos 1º, 13º e 18º do CCA). Embora o Código da Contribuição Autárquica não contenha um preceito como a artigo 234º do Código da Contribuição Predial – que, só permitia atender ao resultado da nova avaliação desde o ano em que a operação tivesse sido requerida pelo contribuinte ou proposta pela Fazenda Nacional – é este o alcance máximo da retroacção do valor patrimonial que pode ligar-se à “nova avaliação”, quando da iniciativa da Administração, para efeito de liquidação adicional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 20º do Código da Contribuição Autárquica. Não resultando a falta de correspondência do valor tributável (valor patrimonial constante da matriz) e do valor patrimonial efectivo do prédio de facto imputável ao sujeito passivo do imposto, designadamente por incumprimento de qualquer dever acessório, e tendo o valor tributável que ser determinado pelo procedimento legalmente estabelecido, não pode a Administração, por falta de norma habilitante, proceder à liquidação adicional de contribuição autárquica com base em nova avaliação, quando a liquidação anterior tenha correspondido a tudo o que era devido, segundo os elementos estruturais do imposto (Aliás, é este o sentido consistente da evolução legislativa, porque no artigo 15º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que estabelece regime transitório quanto ao CIMI, se prevê a avaliação de prédios urbanos inscritos na matriz – e só destes –, aquando da primeira transmissão ocorrida após a sua entrada em vigor, mas não se autoriza a retroacção da avaliação). Deste modo, ainda que se interprete como tendo natureza substancialmente fiscal, a norma em causa introduz uma sobrecarga acrescida do expropriado, quebrando arbitrariamente o equilíbrio de contribuição para os encargos públicos entre o expropriado e o proprietário que aliena onerosamente um prédio, fora do processo expropriativo, em idênticas circunstâncias de desconformidade entre o valor real e o valor constante da matriz (e de realização de liquidez), pelo que violaria o princípio a igualdade, nesta vertente.
Vítor Gomes