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Processo n.º 553-A/00
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Notificada do Acórdão n.º 304/2002 do Tribunal Constitucional, que indeferiu a arguição de nulidade do Acórdão n.º 165/2002, que, por sua vez, indeferira o pedido de aclaração do Acórdão n.º 52/2002, que também indeferira o pedido de aclaração do Acórdão n.º 460/2001, que havia indeferido a reclamação para a conferência e confirmado a Decisão Sumária n.º 158/2001 – pela qual a alínea g) do n.º 1 do artigo 17º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), não fora julgada inconstitucional na medida em que isenta apenas de custas os juízes, e não também os advogados –, veio A. novamente requerer aclaração, então do Acórdão n.º 304/2002, insistindo numa alegada “obscuridade” resultante de não perscrutar a razoabilidade da justificação, invocada nas decisões de que tem vindo sistematicamente a reclamar, para a “diferença de tratamento entre advogados e Juízes quando ambos litiguem por causa das respectivas funções”. Foi, então, proferido o Acórdão n.º 482/2002, no qual se decidiu mandar extrair traslado de peças processuais, para processamento em separado do pedido de aclaração, “cuja decisão só será proferida uma vez pagas as custas em que a reclamante foi condenada neste Tribunal, que, entretanto, devem ser contadas”, ordenar que “extraído o traslado, sejam os autos de imediato remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça”, e “determinar a notificação da reclamante para se pronunciar (...) sobre a qualificação da sua conduta processual como litigância de má fé, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional”. Disse-se na fundamentação desse Acórdão n.º 482/2002:
«Os presentes autos deram já origem, apenas no Tribunal Constitucional, aos Acórdãos n.ºs 460/01 (que considerou “manifestamente improcedente” reclamação de anterior Decisão Sumária que considerara a questão de constitucionalidade posta manifestamente infundada), 52/02, 165/02 e 304/02. A reclamante reedita, em cada novo requerimento de reclamação ou aclaração, a mesma insatisfação ou discordância com a fundamentação da primeira decisão citada, pois este Tribunal, “percute-se e sempre no entender da Signatária”, não teria “conseguido esclarecer” em que consistiria a “justificação razoável”, explicitada já, porém, por repetidas vezes, por este Tribunal (designadamente, por remissão para o trecho a ela relativo, daquelas primeiras decisões).
É manifesto não existir já qualquer fundamento para, novamente, se repetir idêntico pedido de aclaração perante este Tribunal. E, não obstante protestationes facto contraria da recorrente, torna-se igualmente evidente que, com o presente pedido, se visa protelar a execução da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de 2000 (que condenou a reclamante ao pagamento de uma indemnização), fazendo-se um uso manifestamente reprovável do processo para adiar o trânsito em julgado daquela decisão.
É, assim, caso para aplicar o n.º 8 do artigo 84º da Lei do Tribunal Constitucional, que, por remissão para o artigo 720º do Código de Processo Civil, permite levar o requerimento dilatório à conferência, a fim de esta ordenar que o incidente se processe em separado. E, em face do uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de
“entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” – e pesem embora as palavras em sentido contrário da reclamante, repete-se –, afigura-se, também, ter a conduta processual da reclamante atingido os extremos da litigância de má fé (tendo, aliás, tal perspectiva sido já aventada em anteriores decisões, nestes mesmos autos).»
2.Pagas entretanto, na sequência desse Acórdão n.º 482/2002, as custas contadas nos presentes autos, cumpre, agora, decidir o pedido de aclaração do Acórdão n.º
304/2002, cujo teor era o seguinte:
«1. Resulta, expressis verbis, do douto acórdão em apreço, que “a posição da reclamante não é, aliás, em rigor, de falta de reconhecimento da fundamentação dessa decisão, mas de discordância sobre a relevância e a suficiência dos motivos apontados para legitimar a distinção entre advogados e juízes no que toca à isenção de custas.”
2. Sendo certo que a Signatária não pretende fazer uso reprovável do processo com o fim de entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (até porque embora litigue com apoio judiciário sempre terá que pagar pelo menos 1/3 (um terço) dos valores que vem sendo condenada a título de taxa de justiça), o facto é que a Signatária só pode discordar daquilo que conhece, e conhece por estar devidamente fundamentado.
3. Agora facto é que a Signatária discorda que a douta decisão recorrida (que suscitou diversos pedidos de aclaração e uma invocação de nulidade) esteja devidamente fundamentada.
4. E não o estará, segundo a humilérrima opinião da Signatária e com todo o respeito por este Tribunal (e, percute-se, sem qualquer má fé), por a ratio decidendi assentar numa mera justificação razoável, o que quer que isso seja e que esse Tribunal, percute-se e sempre no entender da Signatária, não conseguiu esclarecer o que é ou em que consiste.
5. Sendo certo que a diferença de papel e de funções entre Advogados e Juízes é, essa sim, obviamente do conhecimento da Signatária.
6. E sendo certo também que não obstante essa diferença funcional, que é reconhecida, nenhuma razão existe para uma diferença de tratamento entre advogados e Juízes quando ambos litiguem por causa das respectivas funções, o que também é o caso da Signatária nos Autos que estão na origem deste recurso para o Tribunal Constitucional.
7. A esse nível, percute-se, nenhum fundamento razoável ou não, existirá para a alegada diferença de tratamento.
8. Assim e porque o acórdão ora aclarando remete para o sobejamente citado Ac.
460/01, R. humildemente a V.Exªs se dignem esclarecer a obscuridade de que enfermará o mesmo, a saber: em que consiste a ‘justificação razoável’ que fundamenta a douta posição deste Tribunal Constitucional de indeferimento da pretensão de existência de uma inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
9. Tal dúvida ou obscuridade subsiste no espírito da Signatária, que de facto não compreende (culpa sua, pelos vistos) qual o critério objectivo em que assenta a ‘justificação razoável’ que está na base desse superior juízo de constitucionalidade.
10. Nomeadamente, e com o devido respeito, que é muito, e perante o seu pedido de aclaração, este Colendo Tribunal não curou de esclarecer/aclarar quais os critérios perante os quais uma justificação é ou não razoável.
11. E é esta aclaração que reiterada e muito respeitosamente e sem qualquer má fé se solicita, até para trânsito em julgado do decidido. Nestes termos, R. a V. Exªs, Colendíssimos Conselheiros, se dignem concretizar qual a justificação razoável (segundo critérios objectivos e relevantes) para a diferenciação impugnanda e na qual se louva a douta decisão recorrida.»
3.Por sua vez, a reclamante respondeu à notificação, determinada pelo Acórdão n.º 482/2002, para se pronunciar sobre a qualificação da sua conduta processual como litigância de má fé (alínea d) do n.º 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), fazendo-o nos seguintes termos:
«1. A má fé traduz-se na violação do dever de probidade que o art. 264° do CPC impõe às partes – dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias (in
www.dgsi.pt, JSTJ0003493).
2. O art. 456/2 CPC mostra que para a litigância de má fé não basta a constatação de um dos comportamentos indiciadores de tal litigância acolhidos nas quatro alíneas do preceito; é indispensável ainda que a parte tenha actuado com dolo ou negligência grave (in www.dgsi.pt, JSTJ00038334).
3. Para ser possível a condenação em litigância de má fé necessário se torna que existam elementos no processo que provem a prática dos factos previstos na respectiva norma (in www.dgsi.pt, ACTC5826).
4. A indução de um processado totalmente desconforme às normas disciplinadoras do processo constitucional poderá significar um uso intencionalmente degenerado dos meios processuais (dolo instrumental), como poderá decorrer de uma maior dificuldade na interpretação das regras relativas ao recurso de constitucionalidade; no primeiro caso existiria litigância de má fé, no segundo eventualmente uma litigância tecnicamente temerária ou ousada (in www.dgsi.pt, ACTC7087).
5. Não é de concluir pela existência de má fé processual quando o comportamento processual do recorrente, embora se aproxime do uso reprovável dos meios processuais ao seu dispor, não permite vislumbrar a sua verdadeira finalidade
(in www.dgsi.pt, ACTC4854). Na verdade,
6. O comportamento da recorrente que este Tribunal vem dando a entender poder constituir litigância de má fé atento o “uso [por si] manifestamente reprovável do processo com o fim de entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”, mais não constitui do que a expressão da perplexidade da Recorrente pela aparente incapacidade deste Tribunal em concretizar quais os critérios objectivos em que se baseia para dar tratamento desigual a situações que, para a Recorrente, se revestem de igualdade objectiva...
7. Perplexidade essa que, percute-se, subsiste mau grado a espada de Dâmocles da litigância de má fé que este Tribunal Constitucional vem fazendo impender sobre a Recorrente. Com efeito,
8. O procedimento temerário, e portanto negligente tem de ser suficientemente grave para justificar a condenação como litigante “mafioso” (in www.dgsi.pt, JSTJ00037138),
9. Sendo que o que se vem passando mais não é do que a já referida perplexidade da Recorrente ou mesmo, concedendo mas não concordando, a sua discordância com os fundamentos decisórios deste Tribunal Constitucional no caso em apreço.
10. Ora a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos e a insistência numa solução rejeitada na decisão recorrida pode integrar uma lide temerária ou ousada, mas não basta para caracterizar uma litigância de má fé, por não ser de presumir uma actuação dolosa ou de culpa grave (in www.dgsi.pt, JSTJ00040233).
11. E facto é que os sucessivos pedidos de aclaração da Recorrente não tinham como objectivo ou consequência protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão atenta a existência do art. 720° CPC,
12. Do qual só agora este Tribunal Constitucional se socorreu podendo tê-lo feito mais cedo, tão logo tivesse “suspeitado” da pretensa má fé da Recorrente e dos seus “reais objectivos”.
13. Ou seja: o comportamento da Recorrente não teve, nem poderia ter como objectivo ou consequência protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão por a mesma poder transitar apesar do comportamento da Recorrente.
14. E não obstante o seu comportamento de reiterada aclaração do decidido (ou de reiterada discordância com o mesmo) facto é que não é de presumir uma actuação dolosa ou de culpa grave da Recorrente (in www.dgsi.pt, JSTJ00040233).
15. Nem a lei processual que regula o incidente de litigância de má fé nem a lei que regula a tramitação dos recursos no Tribunal Constitucional comportam a possibilidade de se ordenar a realização de diligências com vista ao apuramento desses factos, se eles não estiverem suficientemente comprovados nos autos (in
www.dgsi.pt, ACTC5826).
16. E assim sendo, atenta até a jurisprudência deste mesmo Tribunal Constitucional e a do Supremo Tribunal que toda se deixa reproduzida, dúvidas não restam à Recorrente (como nunca restaram) que o seu comportamento não integra o disposto no art. 456° CPC por ausência do elemento subjectivo de que este tipo de responsabilidade se faz tributário, seja ele o dolo instrumental ou a dita negligência grave, os quais não se presumem e não se mostram provados (e nem poderiam, por inexistirem).» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Só no Tribunal Constitucional, o presente processo deu já origem a seis decisões, repetindo – para além da anterior Decisão Sumária que considerou a questão de constitucionalidade suscitada no recurso como manifestamente infundada, os Acórdãos n.ºs 460/2001 (que considerou “manifestamente improcedente” a reclamação dessa Decisão Sumária), 52/2002, 165/2002, 304/2002 e
482/2002. Analisando o teor dos requerimentos da reclamante, verifica-se que, desde a reclamação da Decisão Sumária citada, repete, em cada novo requerimento, exactamente a mesma insatisfação ou discordância com a fundamentação da primeira decisão citada, que afirma não existir ou ser obscura. Segundo a reclamante este Tribunal não teria “conseguido esclarecer” em que consistiria a “justificação razoável”. Logo no Acórdão n.º 460/2001 este Tribunal apontou, porém, como evidente “que não é a circunstância de os advogados também se encontrarem expostos à litigância por virtude da sua actividade profissional que torna arbitrária ou irrazoavelmente discriminatória a reserva aos juízes da isenção de custas em acções em que sejam parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções, bastando considerar para tal que os advogados não são servidores do Estado, mas sim profissionais liberais, e que é aos juízes que incumbe o ónus (e a consequente responsabilidade) da decisão – isto é, de proferir a palavra final no processo”, bem como que “não só o papel de advogados e juízes na administração da justiça é bem distinto (o que desde logo poderia ser tomado como fundamento razoável para a distinção de ambos quanto à isenção de custas) como não pode deixar de entender-se como perfeitamente razoável que o Estado isente de custas resultantes de processos fundados em factos, comportamentos ou razões directamente conexionados com o exercício das suas funções apenas os juízes”, enquanto agentes da administração da justiça que integram os órgãos de soberania que são os tribunais” (itálicos aditados). E esta explicação foi repetida nas várias decisões posteriores. Não existe, pois, nada a aclarar, revelando o próprio requerimento de aclaração que ele se baseia em discordâncias sobre a suficiência da fundamentação e não na falta de entendimento de uma sua qualquer obscuridade. Perante a manifesta falta de justificação do pedido de aclaração, este, pois, tem de ser desatendido.
5.Em face do que se verificou ser um uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de “entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” – e pesem embora as palavras em sentido contrário da reclamante, repete-se –, por a conduta processual da reclamante atingir os extremos da litigância de má fé (e tendo, aliás, essa possibilidade sido já aventada em anteriores decisões, nestes mesmos autos), foi aquela notificada para se pronunciar sobre esta qualificação da sua conduta processual, nos termos do artigo 84º, n.º 7, da Lei do Tribunal Constitucional. Em resposta, veio a reclamante negar que tenha feito um uso manifestamente reprovável do processo, sendo a sua litigância, quando muito, temerária, mas não de má fé, por não ter tido “como objectivo ou consequência protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”, faltando o “elemento subjectivo de que este tipo de responsabilidade [por litigância de má fé] se faz tributário, seja ele o dolo instrumental ou a dita negligência grave, os quais não se presumem e não se mostram provados”.
6.Analisados os diversos requerimentos interpostos pela reclamante e as decisões sobre eles proferidas, não pode, porém, deixar de considerar-se que se justifica plenamente – e que se impõe mesmo – a sua condenação como litigante de má fé. Na verdade, apesar dos repetidos esclarecimentos e alertas nesse sentido, a recorrente persistiu, por várias vezes, em ignorar que logo na Decisão Sumária n.º 158/2001, e, depois, na decisão da reclamação desta, pelo Acórdão n.º
460/2001, o Tribunal Constitucional concretizou a diferença de papéis entre juízes e advogados, mencionando a qualidade dos juízes como agentes da administração da justiça que integram o órgão de soberania que são os tribunais e a circunstância de lhes incumbir o ónus e a consequente responsabilidade da decisão. A reclamante fez, pois, um uso manifestamente reprovável das reclamações de nulidade e dos pedidos de aclaração, para manifestar a sua discordância com o decidido, sendo que a existência de dolo ou negligência grave, como pressuposto da litigância de má fé, é uma conclusão que o Tribunal pode, e deve, extrair a partir da sua apreciação da conduta processual da litigante, tal como resulta e se concretizou nestes autos, não sendo exigível uma produção de prova especificamente destinada a comprovar esse elemento subjectivo. E não obstante as declarações da reclamante em sentido contrário, é evidente que, com o pedido de aclaração que deu origem ao presente aresto, ela não pode, sem dolo ou negligência grave, ter visado mais do que um uso claramente reprovável dos pedidos de aclaração para manifestar discordâncias com a (suficiência da) fundamentação de anteriores decisões – uso reprovável, esse, no qual persistiu, apesar de alertada por este Tribunal para a sua possível qualificação. Perante estas circunstâncias, não pode deixar de considerar-se que a reclamante actuou como litigante de má fé, devendo ser condenada como tal, e afigurando-se que a graduação da multa em 20 (vinte) unidades de conta se mostra ajustada ao caso. Mais deverá a conduta processual da reclamante, que é parte como advogada e tem responsabilidade pessoal e directa na litigância de má fé, ser levada ao conhecimento da Ordem dos Advogados, nos termos do artigo 459º do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional). III. Decisão Nestes termos, decide-se: a) Indeferir o pedido de aclaração do Acórdão n.º 304/2002; b) Condenar a reclamante, por litigância de má fé, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, na multa de 20 (vinte) unidades de conta. c) Determinar que, nos termos do artigo 459º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, a presente decisão seja comunicada à Ordem dos Advogados. Lisboa, 2 de Junho de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos