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Processo n.º 154/2004
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença proferida em 22 de Março de 2002 e transitada em julgado, companhia de seguros A. foi condenada a pagar a B. a quantia de
4.000.000$00, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Tendo a ré pago ao autor, a título de juros moratórios, uma quantia da qual deduziu € 590.03 para efeitos de retenção na fonte de IRS, B. instaurou uma acção executiva, baseada na referida sentença, para obter o efectivo pagamento daquela quantia.
A A. veio então opor embargos de executado, sustentando estar obrigada a proceder à aludida retenção na fonte de IRS, calculado à taxa de 15%, sobre o montante global de juros, como preceitua a alínea g) do n.º 1 do artigo
6º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, no valor de €
590,03.
Por sentença da 8ª Vara Cível da Comarca do Porto de 19 de Dezembro de 2003, constante de fls. 27 e seguintes, foi recusada a aplicação do disposto no artigo 6º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, e, consequentemente, os embargos foram julgados improcedentes, tendo o juiz determinado o prosseguimento da execução.
Para o feito, o tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
“(...) os juros em causa são moratórios. Como tal, a obrigação do seu pagamento não visa remunerar o capital sobre o qual incidem, mas sim indemnizar o credor pelo atraso no seu pagamento (indemnização pela mora – cfr. o disposto no artigo 806º n.º 1 do Código Civil). Na verdade, o seu pagamento só é devido porque a lei presume que os juros (à taxa legal) correspondem ao montante da indemnização devida pela mora (cfr. o texto do nº 1 do referido artigo 806º do Código Civil) – presunção essa, aliás, que é ilidível (...). Sendo assim, os juros de mora não são, dogmaticamente, um rendimento da aplicação de um determinado capital, mas sim o critério legal fixado supletivamente pelo legislador para indemnizar a mora no cumprimento de obrigações pecuniárias. E, como tal, os juros de mora devem ser equiparados ao respectivo capital em dívida, uma vez que visam reintegrá-lo) pois a indemnização visa repor o lesado na situação anterior à lesão – artigo 566º n.º
2 do Código Civil). Nas obrigações pecuniárias, a indemnização pela mora corresponde aos juros à taxa legal (artigo 806º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil). Assim o lesado (pela mora no cumprimento de uma obrigação pecuniária) só fica ressarcido se, quando receber o capital, receber os respectivos juros à taxa legal desde a data do início da mora. A não ser assim, e na medida em que o não seja, permanece por reparar a lesão do credor. Por isso, os juros de mora (ou indemnizatórios) são uma componente do próprio capital (da obrigação pecuniária em causa) na medida em que o reintegram pelo atraso indevido no seu pagamento. Não são, pois, rendimento, mas sim património.”
Partindo deste pressuposto, e considerando ainda que a Constituição impõe “nos seus artigos 13º, 103º, n.º 1, e 104º, n.ºs 1 e 3, os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei, da justiça do sistema fiscal e da contribuição deste para uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, diminuição das desigualdades e contribuição para a igualdade”, concluiu a decisão recorrida:
“... a norma tributária em análise viola as referidas normas e os respectivos princípios constitucionais em que se fundam. Na verdade, considerando que os juros de mora, dogmática e teleologicamente, não são um rendimento, a sua tributação como tal cria desigualdades injustificadas e injustiças manifestas.”
2. Notificado desta sentença, o Ministério Público veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, “nos termos das disposições conjugadas dos artºs 70º, n.º 1, al. a), e 72º, n.º 3, ambos da Lei n.º 28/82, de 15/11”, invocando ainda ser o recurso interposto “obrigatório para o Ministério Público, tal como o impõem as disposições conjugadas dos artºs 70º, n.º 1, al. a), e 72º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15/11, e artº 280º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa”.
3. As partes foram notificadas para o efeito, mas só o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu da seguinte forma:
“1º - Os juros moratórios exercem, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, uma função de indemnização pelo retardamento no integral ressarcimento do lesado, idêntica à alcançada através da aplicação da ‘teoria da diferença’, visando a compensação dos danos decorrentes do intempestivo cumprimento da obrigação e da desvalorização monetária entretanto ocorrida.
2º - A integral compensação do dano sofrido pelo lesado – incluindo a correcção monetária do valor da sua pretensão – pode ser alcançada através de dois meios alternativos: a correcção monetária do próprio capital indemnizatório, efectuada nos termos do artigo 566º, nº 2, do Código Civil, ou – não sendo esta processualmente viável, em termos integrais – o vencimento de juros moratórios, a partir da ‘decisão actualizadora’, nos termos dos artigos 805º, nº 3, e 806º, nºs 1 e 3 do Código Civil (cfr. Acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2002).
3º - Constitui violação do princípio da igualdade a tributação em IRS, como
‘rendimento’ auferido pelo lesado, dos referidos juros de mora, estando isento de tributação o ressarcimento do mesmo tipo de danos, quando alcançado através do ‘meio alternativo’ ao vencimento de juros de mora – a actualização do capital indemnizatório, ao abrigo da ‘teoria da diferença’.
4º - Na verdade, atenta a mesma função substancial atribuída aos juros de mora e à correcção monetária do capital indemnizatório, no âmbito da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, constitui solução discriminatória e arbitrária a tributação em IRS do lesado que obteve a compensação do seu dano através da percepção de juros moratórios – estando inquestionavelmente isento o que viu tais danos ressarcidos mediante correcção monetária do capital da indemnização.
5º - A função material atribuída aos juros de mora devidos pelo retardamento da prestação do responsável – e a sua natureza inquestionavelmente ressarcitória e indemnizatória – não permitem, do ponto de vista constitucional – a respectiva qualificação como ‘rendimento’ tributável, ao abrigo do preceituado nos artigos
103º, nº 1, e 104º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
6º - Na verdade, tais juros – perspectivados na sua função de indemnização pelo retardamento da prestação e da desvalorização monetária ocorrida – não constituem atribuição ou acréscimo patrimonial do lesado, mas mera reposição deste na situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o evento danoso.
7º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida”.
4. É o seguinte o texto da norma cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida (artigo 6º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, correspondente ao artigo 5º, n.º 2, alínea g), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção introduzida pela Lei n.º
30-G/2000, de 29 de Dezembro):
“Artigo 6º
(Rendimentos da categoria E) Consideram-se rendimentos de capitais:
... g) Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais, sejam contratuais.”
5. Como se afirma nas alegações do Ministério Público e na decisão recorrida, a norma agora em causa foi já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, em julgamentos não totalmente coincidentes. Assim, enquanto nos Acórdãos n.ºs 453/97 (Diário da República, II série, de 9 de Fevereiro de 1999) e 288/01 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) se concluiu pela não inconstitucionalidade da “norma do artigo 6º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, com a interpretação que aí inclui os juros de mora no pagamento de uma indemnização por acidente de viação”, no Acórdão n.º 170/03 (Diário da República, II série, de 15 de Outubro de 2003) julgou-se “inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade dos cidadãos e da repartição justa dos rendimentos, que defluem dos artigos 13º,
103º, nº 1, e 104º, nº 1, todos da Lei Fundamental, a norma constante da alínea g) do nº 1 do art. 6º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares quando interpretada no sentido de serem tributáveis como rendimento os juros que forem atribuídos no âmbito de uma indemnização devida por responsabilidade civil extracontratual e na medida em que se destinem a compensar os danos decorrentes da desvalorização monetária ocorrida entre o surgimento da lesão e o efectivo ressarcimento desta”. Para chegar a esta conclusão, o mesmo Acórdão n.º 170/03 observou o seguinte:
“6. Antevê-se como certo que, para quem defenda que, se, numa dada decisão judicial, o valor monetário equivalente à indemnização devida a título de responsabilidade civil extracontratual foi fixado atendendo-se já aos factores decorrentes da erosão monetária e se, além disso, ficou consagrada a obrigação de pagamento de juros sobre aquele valor, contados a partir da citação, o montante equivalente a estes últimos não pode perspectivar-se como integrador da denominada «teoria da diferença» - à qual se deverá submeter aquilo que é imposto pelo dever de reparação do dano sofrido em consequência da lesão -, mas sim como uma compensação pela demora no pagamento. E, assim, tendo os juros por fonte uma obrigação diversa daquela donde advém do dever de indemnizar, os fundamentos carreados e a conclusão ínsita no Acórdão nº 453/97, já citado, seriam perfeitamente de aceitar.
7. Mas, se em causa estiver um caso em que para se alcançar a expressão monetária da indemnização se não teve em conta aquilo que alguns designam por
«correcção monetária», limitando-se, pois, tal expressão monetária à reconstituição da situação que seria a detida pelo lesado caso o evento lesivo não tivesse ocorrido, acrescendo, ao assim definido quantum indemnizatório, a condenação do responsável nos juros devidos desde a citação, então é plausível entender-se que estes juros têm por finalidade fazer acrescer àquele quantum o desvalor verificado em consequência da desvalorização. Em casos como esse, o montante dos juros não poderá, pois, deixar de ser perspectivado ainda como a expressão monetária da indemnização. E, a ser assim, a tributação desse montante a título de rendimentos da categoria E, nos termos da alínea g) do nº 2 do art. 5º do Código de Rendimentos Sobre o Imposto das Pessoas Singulares antever-se-ia como violadora do princípio da igualdade, na medida em que a expressão monetária de uma indemnização não está sujeita a essa tributação e, afinal, o indicado montante dos juros não deixa de fazer parte daquela expressão, sendo certo que a função substancial do valor da indemnização é perfeitamente idêntica (é, verdadeiramente, a mesma) da dos juros cujo pagamento foi determinado com tal finalidade.”
6. Nas já referidas alegações, o Ministério Público veio discordar de que se condicionasse “tal solução jurídico-constitucional a uma pré-qualificação da ‘função’ atribuída aos juros de mora concedidos ao ofendido: a tributação em IRS só seria materialmente inconstitucional ‘na medida em que tais juros se destinem a compensar os danos decorrentes da desvalorização monetária ocorrida entre o surgimento da lesão e o efectivo ressarcimento desta’”. Acrescenta ainda o Ministério Público que no seu modo de ver a qualificação da função atribuída aos juros de mora “não tem que ver com quaisquer especificidades ou particularidades do caso concreto, mas com a própria interpretação normativa – e construção dogmática – da figura da mora no
âmbito da responsabilidade civil extracontratual e da função jurídica desempenhada pelos institutos da correcção monetária e do vencimento de juros moratórios”. Verifica-se, todavia, e em primeiro lugar, que a inconstitucionalidade advogada pelo Ministério Público assenta no confronto entre “a (...) função substancial atribuída aos juros de mora e à correcção monetária do capital indemnizatório, no âmbito da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco”; e é por entender que é a “mesma” essa função que o Ministério Público entende que “constitui solução discriminatória e arbitrária a tributação em IRS do lesado que obteve a compensação do seu dano através da percepção de juros moratórios – estando inquestionavelmente isento o que viu tais danos ressarcidos mediante correcção monetária do capital da indemnização.” E verifica-se, em segundo lugar, que, no presente recurso, tal como sucedeu no que foi julgado pelo Acórdão n.º 170/03, « (...) não consta dos presentes autos o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que ditou a condenação da embargante. Significa isso que não dispõe o Tribunal Constitucional de elementos com consistência suficiente que permitam afirmar que a decisão de condenação da embargante a pagar à embargada juros perspectivou estes como constituindo ainda uma forma de ressarcimento da lesada pelo retardamento da reparação do dano ou, pelo contrário, uma forma de compensação da mora no não pagamento de um montante indemnizatório devido e no qual já foram tidos em consideração os factores advindos da erosão monetária. Acontece, porém, que a decisão ora impugnada (e esta questão não pode ser objecto de censura por banda deste Tribunal, atentos os seus poderes cognitivos) deu por assente que não correspondiam “a uma remuneração ou lucro (como rendimento), mas antes a ‘um reequil[i]brio do património do lesado, pela entrega de prestação e respectiva indemnização pelo prejuízo causado’”,
“destinando-se a completar a indemnização, compensando o lesado do ganho perdido até que tenha conseguido a reintegração do seu direito, sendo como que um capital complementar justificado pelo dano, que tanto podia ser objecto de uma quantia calculada como provável, como a calcular em função de um juro a taxa diferente da legal ”. Vale isto por dizer que aquela decisão - independentemente do seu acerto neste particular - entendeu que os juros em causa, cujo pagamento foi ditado pelas decisões judiciais anteriores, deviam ser perspectivados como constituindo ainda uma parte da expressão monetária do quantitativo indemnizatório.» Estas considerações são plenamente transponíveis para este recurso, como se pode ver da leitura da transcrição feita da decisão agora recorrida. Justifica-se, portanto, que se reitere o juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 170/03.
7. Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante da alínea g) do nº 1 do artigo
6º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, quando interpretada no sentido de serem tributáveis como rendimento os juros que forem atribuídos no âmbito de uma indemnização devida por responsabilidade civil extracontratual e na medida em que se destinem a compensar os danos decorrentes da desvalorização monetária ocorrida entre o surgimento da lesão e o efectivo ressarcimento desta, por violação dos princípios da igualdade dos cidadãos e da repartição justa dos rendimentos, consagrados nos artigos 13º, 103º, nº 1, e 104º, nº 1, da Constituição;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 12 de Julho de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida