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Processo n.º 108/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O recorrente A. deduziu reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), contra a decisão sumária do relator de não conhecimento do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária é do seguinte teor:
“1. A.interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Janeiro de 2004, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), referindo:
“1.º – O acórdão proferido, ora recorrido, adoptou uma concepção de terceiros para efeitos de registo restrita, violando assim o princípio da confiança plasmado no artigo 1.º do Código do Registo Predial, que é uma decorrência das disposições constitucionais.
2.º – Ao adoptar essa interpretação viola a Constituição da República Portuguesa no que ao direito à propriedade diz respeito, artigo 62.º da CRP, sendo as suas consequências uma insegurança ao comércio jurídico imobiliário.
3.º – A decisão em tornar válida a aquisição através da Fazenda Nacional por parte da CGD e não ter em consideração a decisão de um Tribunal em ordenar a penhora do prédio aqui em litígio viola o artigo 205.º, n.º 2, da CRP, que dá a prevalência às decisões judiciais em detrimento das não judiciais.
4.º – A decisão em considerar a Fazenda Nacional um Tribunal viola o princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 2.º da CRP.
5.º – Viola também os artigos 209.º e 212.º da CRP.
6.º – Todas estas questões foram suscitadas nas alegações da recorrente para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça.
7.º – Já não é possível interpor qualquer recurso ordinário nos presentes autos, salvo para uniformização de jurisprudência.”
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º
3, da LTC).
Neste Tribunal, o relator determinou a notificação do recorrente
“para indicar, com precisão, qual a norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional”.
Em resposta, o recorrente limitou-se a referir que “as normas violadas pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu douto acórdão recorrido foram os artigos 205.º da Constituição da República, e ainda o artigo 202.º deste mesmo diploma”.
Neste contexto, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que torna a sua admissibilidade dependente da verificação do requisito de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC). Como é sabido, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade (que não conhece figuras equivalentes ao “recurso de amparo” espanhol ou à “queixa constitucional” alemã), apenas podem constituir objecto de controlo por parte do Tribunal Constitucional questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, questões de alegada violação de normas ou princípios constitucionais por parte de normas jurídicas (ou de interpretações normativas – hipótese em que incumbe ao recorrente identificar, com clareza e precisão, qual a interpretação normativa que reputa inconstitucional), e já não pretensas violações da Constituição imputáveis directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
No presente caso, o recorrente, nem nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, nem no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, nem na resposta ao convite formulado para complementar esse requerimento identificou qualquer norma de direito ordinário (ou qualquer interpretação desse tipo de normas) que reputasse violadora de princípios ou normas constitucionais. A violação da Constituição é imputada directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. E, por seu turno, o que se considera violado pela “adopção do conceito restrito de terceiros para efeitos de registo predial” é “o princípio da confiança vertido no artigo 1.º do Código do Registo Predial”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho, e republicado na sequência das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º
533/99, de 11 de Dezembro (cf. conclusão C das alegações do recurso de revista), que dispõe: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” – isto é, a violação de um princípio de direito ordinário, que não a violação de um princípio constitucional.
Não tendo o recorrente suscitado, durante o processo, de forma adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, falta o referido requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC.
3. Termos em que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, se decide não conhecer do recurso.”
1.2. Na sua reclamação, o recorrente, após narrar as vicissitudes processuais e reproduzir a fundamentação do despacho reclamado, desenvolve a seguinte argumentação:
“6.º – Cumpre dizer, em primeiro lugar, que é nas alegações de recorrente que este identificará, com rigor, qual a norma violadora da Constituição da República, ou qual a interpretação dessa norma que pretende ver apreciada.
O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, com as restrições do artigo 75.°-A da LTC, servirá apenas para que o relator ou a conferência verifiquem se o recurso para o Tribunal Constitucional é um mero expediente dilatório, se não tem qualquer fundamento, ou, pelo contrário, se o recurso tem algum fundamento, embora possa não ser aceitável posteriormente em sede de decisão.
Isto porque a regra é a da facilitação em termos formais dos critérios de admissibilidade dos recursos, para assegurar aos cidadãos uma tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 20.º da Constituição da República (a não ser que se verifique, liminarmente, a falta de total fundamento do recurso, como antes vai dito).
Porque se se verificar que algum fundamento existe para o recurso, o perigo de violação da Constituição é sempre tão grave, [que,] por si só, implicará que seja facilitada e não dificultada a admissão do recurso.
7.º – Posto isto, que nos parece inquestionável, vejamos em concreto o caso presente.
No seu requerimento de interposição de recurso o recorrente escreveu:
«1.º – O acórdão proferido (pelo STJ), ora recorrido, adoptou uma concepção de terceiros para efeitos de registo restrita, violando assim o princípio da confiança plasmado no artigo 1.° do Código de Registo Predial, que
é uma decorrência das disposições constitucionais.
2.º – Ao adoptar essa interpretação, viola a CRP no que ao direito
à propriedade diz respeito, artigo 62.° da CRP, sendo as suas consequências uma insegurança ao comércio jurídico imobiliário.
(...)
6.º – Todas estas questões foram suscitadas nas alegações do recorrente para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça.»
8.º – Pese embora a manifesta ligeireza (e até incorrecção de português) do que antes vai dito, confessa-se com humildade, a verdade é que se diz que a interpretação que foi dada, daqui resulta o seguinte:
Nas alegações quer para a Relação quer para o Supremo Tribunal de Justiça foram levantadas questões relativas à violação de normas constitucionais pela interpretação que foi dada aos artigos 1.º e 5.º do Código de Registo Predial pelo Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 3/99 do Supremo Tribunal de Justiça. Ao indicar que o Acórdão do STJ recorrido, na sua interpretação dada ao artigo 1.º do Código de Registo Predial (e nas alegações acrescentava-se ao artigo 5.º), viola o artigo 62.º da Constituição da República, está a indicar-se qual a interpretação de uma determinada norma infraconstitucional [que] viola a Constituição.
E é isto, e não mais, que é exigido no artigo 75.º-A da LTC.
Parece-nos, por isso, que o requerimento de interposição de recurso, aliás admitido pelo STJ, contém os elementos essenciais para ser admitido, como foi entendido pelo Sr. Conselheiro Relator do STJ.
Pelo que o recurso deverá ser admitido.
Acresce que a questão é grave e complexa, e que o Supremo Tribunal de Justiça no espaço de um ano proferiu sobre ela dois acórdãos uniformizadores da jurisprudência absolutamente contraditórios.
Não curou o STJ, no Acórdão n.º 3/99, da constitucionalidade da doutrina defendida neste acórdão. Parece-nos que a questão é demasiado importante (até para a economia nacional) e complexa para que este Venerando Tribunal Constitucional não aproveite o presente recurso para apreciar essa questão. Aliás, o que aqui avulta é «a preservação da constitucionalidade objectiva, ou seja, a conformidade dos actos e das normas com as regras constitucionais» – cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II,
3.ª ed., pág. 357.
9.º – Mas para além desta questão, outras questões de inconstitucionalidade foram suscitadas nas alegações de recorrente, a saber: serão as repartições de finanças verdadeiros tribunais para que as vendas por elas feitas sejam equiparáveis às vendas judiciais feitas pelos tribunais judiciais?
O Tribunal da Relação do Porto e o Supremo Tribunal, de Justiça entenderam que as repartições de finanças são Tribunais, pelo que as suas vendas têm o valor das vendas judiciais.
Ora é difícil aceitar-se isso, já que as repartições de finanças estão inseridas no poder executivo, sendo organismos do Ministério das Finanças, e não órgãos do poder judicial.
Atente-se na contradição do sistema: se por um lado se aceita que as repartições de finanças podem proceder a vendas de bens penhorados, aí actuando como verdadeiros órgãos jurisdicionais, já para proceder a outras diligências, nomeadamente penhoras, carecem de autorização de um tribunal.
10.º – Esta questão foi suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 30.° das alegações), e foi para elas que remeteu o requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal Constitucional.
É também uma questão demasiado importante para não se tomar agora conhecimento dela, já que ao aceitar que as repartições de finanças, ao procederem à venda de bens em execução movida pela Caixa Geral de Depósitos
(que apesar de ser uma simples sociedade anónima, pode furtar-se aos meios judiciais comuns a que qualquer sociedade anónima está obrigada) funcionam como tribunais, está a violar-se o princípio da separação de poderes consagrado do artigo 2.° da Constituição da República.
11.º – Assim, embora indirectamente, porque se remeteu para as alegações efectuadas no STJ, o recorrente indicou que a interpretação dado à disposição legal que permite as vendas de bens por intermédio das repartições de finanças seja interpretada no sentido de considerar estas repartições tribunais, e que as suas vendas sejam consideradas vendas judiciais.
Nestes termos, deve a presente reclamação ser considerada procedente e decidida a admissão do recurso interposto pelo aqui reclamante.”
1.3. Notificada desta reclamação, a recorrida Caixa Geral de Depósitos nada disse.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Na presente reclamação, o recorrente, em rigor, não impugna os fundamentos em que se estribou a decisão sumária reclamada, a saber:
(i) não ter o recorrente, nem nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, nem no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, nem na resposta ao convite formulado para complementar esse requerimento identificado qualquer norma de direito ordinário (ou qualquer interpretação desse tipo de normas) que reputasse violadora de princípios ou normas constitucionais; (ii) ter imputado a violação da Constituição directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas; (iii) ter considerado violado pela “adopção do conceito restrito de terceiros para efeitos de registo predial”, não um princípio constitucional, mas um princípio de direito ordinário, a saber: “o princípio da confiança vertido no artigo 1.º do Código do Registo Predial”, que dispõe: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
Contrariamente ao que o recorrente sustenta, é no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que o recorrente tem de indicar a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade pretende que o Tribunal aprecie (n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC), não podendo relegar essa identificação para as alegações a apresentar nesse recurso, pois é a própria decisão sobre a admissibilidade do recurso que só pode ser conscientemente proferida se essa identificação tiver sido feita, desde logo porque é decisivo apurar se a norma indicada foi, de facto, aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida. O recorrente não procedeu a essa identificação, nem mesmo após lhe ter sido endereçado convite para suprir tal deficiência. Só na presente reclamação é que reporta uma das questões aos artigos 1.º e 5.º do Código de Registo Predial e, quanto à outra (funcionamento das repartições de finanças como tribunais) nenhuma norma de direito ordinário vem indicada.
Depois, o recorrente imputa a violação de certo princípio às próprias decisões judiciais, em si mesmas consideradas, e não a normas (ou interpretações normativas) que, como se viu, jamais identificou cabalmente.
Por último, o princípio alegadamente violado por esses decisões, de forma directa, é um princípio de direito ordinário (o princípio da confiança tal como vertido no artigo 1.º do Código do Registo Predial), que não se transforma em princípio constitucional pela mera afirmação de que seria
“decorrência de disposições constitucionais”, nunca identificadas.
Impõe-se, assim, a confirmação da decisão sumária reclamada, sendo obviamente irrelevante o facto de o recurso ter sido admitido no tribunal recorrido, por decisão que não vincula o Tribunal Constitucional
(artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos