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Proc. n.º 32/04
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 1199 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e B., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
7. O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, «bem como no facto de se tratar de uma decisão surpresa meramente adjectiva e formal» (supra, 6.). A última razão invocada não constitui fundamento de recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. as várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), pelo que quanto a ele não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso. O fundamento previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional manifestamente não se encontra preenchido no presente recurso: na verdade, o tribunal recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de
«lei com valor reforçado» (que, aliás, os recorrentes não identificam). Assim, quanto a esse fundamento, não se tomará conhecimento do objecto do recurso.
8. Subsiste o fundamento previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Vejamos se ele se encontra preenchido no caso concreto.
8.1. Relativamente às normas dos artigos 713º, n.º 5, e 726º do Código de Processo Civil, verifica-se que, ao pretenderem a apreciação da respectiva conformidade constitucional, os recorrentes mais não fazem do que questionar a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de tais preceitos ao caso concreto. Na verdade, segundo os recorrentes, tais normas não podiam ser aplicadas ao caso dos autos, porque a Relação omitira pronúncia sobre questões essenciais e o Supremo se limitara a «copiar» as contra-alegações da parte contrária (supra, 6.). Ora, o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar a boa ou má aplicação do direito ao caso concreto, nem para aferir se essa aplicação do direito consubstancia o proferimento de decisão judicial desconforme com a Constituição, questão que é, afinal, a única colocada pelos recorrentes. Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional não visa sindicar os pressupostos em que assentou a aplicação do direito pelo tribunal recorrido nem a conformidade constitucional da decisão recorrida em si mesma considerada, tendo diversamente em vista o controlo da conformidade constitucional de normas, ou de normas, numa certa dimensão interpretativa. Não é possível, pois, tomar conhecimento do objecto do recurso, no que diz respeito às normas dos artigos 713º, n.º 5, e 726º do Código de Processo Civil.
8.2. Quanto às normas dos artigos 220º do Código Civil e 80º, n.º 2, do Código do Notariado, idênticas considerações devem ser tecidas. Aliás, são os próprios recorrentes a censurar a «desvirtuação dos factos feita pelo Tribunal Cível e a aplicação ilegal das referidas normas», o que bem demonstra que não solicitam ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade constitucional de normas, antes pretendendo o controlo dos pressupostos de facto em que assentou a decisão recorrida e, bem assim, da conformidade constitucional desta decisão. Não pode assim conhecer-se do objecto do recurso, no que às normas dos artigos
220º do Código Civil e 80º, n.º 2, do Código do Notariado se refere.
8.3. No que diz respeito à norma do artigo 261º do Código Civil, é também evidente que os recorrentes mais não pretendem do que o controlo, pelo Tribunal Constitucional, dos pressupostos de facto em que assentou a sua aplicação pelo tribunal recorrido e da conformidade constitucional da própria decisão recorrida. É o que indiscutivelmente decorre das afirmações dos próprios recorrentes (supra, 6.): «Esta norma é, de todo em todo, inaplicável ao caso dos autos e colide com a prova documental [...]»; «o Acórdão de 3.7.03, de fls. , ao dizer o que disse na penúltima página é de uma incongruência factual e documental demasiado evidente»; «A situação que resulta da prova feita nos autos opõe-se frontalmente ao instituto do contrato consigo mesmo previsto no art.º
261º do C. Civil [...]». Como se disse e se repete, não tem o Tribunal Constitucional competência para efectuar o controlo pretendido pelos recorrentes, pelo que não é possível conhecer-se do objecto do presente recurso, no que se refere à norma do artigo
261º do Código Civil.
8.4. Em relação à norma do artigo 1155º do Código Civil, cumpre assinalar que são os próprios recorrentes a admitir que não pretendem a apreciação da conformidade constitucional de tal norma (ou de uma sua dimensão interpretativa), mas antes a da própria decisão recorrida (supra, 6.): «o Acórdão de 3.7.03, de fls. , na sua antepenúltima página, tem cariz frontalmente antijurídico, desdizendo o próprio texto da lei, pelo que viola o comando do art.º 20º/4/ da Constituição». Não pode assim, pelos motivos já amplamente referidos, conhecer-se do objecto do recurso, no que diz respeito à norma do artigo 1155º do Código Civil.
8.5. Finalmente, invocam ainda os recorrentes a inconstitucionalidade de uma norma processual – que não chegam a identificar –, com base na qual se teria considerado extemporâneo o pedido de gravação da audiência final, feito antes da
1ª sessão. Como facilmente se vê, com tal alusão não chegam os recorrentes a delimitar qualquer objecto de recurso, pelo que não é possível – qualquer que ele seja – dele tomar conhecimento.
[...].”
2. Notificados da mencionada decisão sumária, A. e B. dela vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 1217 e seguintes), dizendo, em síntese, o seguinte:
a) O quarto parágrafo do n.º 1 da decisão sumária deturpa grosseiramente a sentença da 1ª instância (fls. 1218 a 1220); b) A decisão sumária desampara, não se abre à necessária clarificação e interpreta tudo contra cives (fls. 1221 a 1222); c) A expressão “supra, 6.”, constante da decisão sumária, constitui uma transcrição parcial e muito imperfeita da exposição-requerimento dos recorrentes inserida a fls. 1164 e seguintes (fls. 1222 a 1224); d) No caso dos autos, verifica-se uma daquelas hipóteses em que não é exigível à recorrente contar com a não aplicação, pelo tribunal recorrido, do sentido da norma do artigo 1155º do Código Civil, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada (fls. 1225 a 1226); e) Os recorrentes, no presente processo, suscitaram a questão da constitucionalidade normativa (fls. 1227 e 1228); f) A norma do artigo 713º, n.º 5, do Código de Processo Civil não podia ser aplicada ao caso dos autos, estando desconforme com a Constituição o sentido das normas aplicadas, ou seja, as dos artigos 713º, n.º 5 e 726º do Código de Processo Civil (fls. 1227 e 1228); g) Quanto às normas dos artigos 220º do Código Civil e 80º, n.º 2, do Código do Notariado, verifica-se que a desvirtuação dos factos feita pelo Tribunal Cível e a aplicação ilegal das referidas normas ofende o comando do artigo 20º, n.º 4, da Constituição e o disposto no artigo 675º do Código de Processo Civil, sendo portanto o sentido das normas que está em causa (fls. 1229 a 1231); h) Quanto à norma do artigo 261º do Código Civil, verifica-se que ela é inaplicável ao caso dos autos e colide com a prova documental, sendo portanto o sentido das normas, aplicadas em termos inconstitucionais, que está em foco
(fls. 1231 a 1233); i) É a inaplicabilidade da norma – a do artigo 1155º do Código Civil – que está em apreciação, face ao artigo 112º, n.º 3, da Constituição, que nos dá a definição de lei com valor reforçado, mas que o Tribunal Constitucional não sabe explicar (fls. 1233 a 1234); j) O Supremo, entre o mais, negou aos recorrentes a gravação da audiência de julgamento, tendo sido dada uma interpretação errada à norma do artigo 512º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à ora vigente) e estando bem delimitado o objecto do recurso (fls. 1234 a 1236).
3. Na resposta à reclamação (fls. 1261 e seguinte), os recorridos sustentaram o respectivo indeferimento.
Cumpre apreciar.
II
4. As três primeiras considerações tecidas pelos reclamantes (supra, 2., a), b) e c)) não relevam para efeitos da manutenção ou revogação da decisão sumária reclamada – nem, aliás, delas retiram os reclamantes qualquer consequência –, pelo que seria inútil a sua apreciação neste contexto. Passar-se-á, pois, à análise das restantes razões acima elencadas.
5. O quarto e o quinto argumentos invocados pelos reclamantes (supra,
2., d) e e)) não contrariam qualquer fundamento constante da decisão sumária reclamada. Na verdade, o não conhecimento do objecto do recurso interposto pelos ora reclamantes não se ficou a dever à circunstância de eles não terem suscitado, durante o processo, as questões de inconstitucionalidade que pretendiam ver apreciadas, mas às circunstâncias exaustivamente descritas no ponto n.º 8 da decisão sumária reclamada (supra, 1.).
Acrescente-se que a referência, constante da primeira parte do ponto n.º 7 da decisão sumária reclamada, à impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso com fundamento no facto de a decisão recorrida constituir, na perspectiva dos reclamantes, uma decisão surpresa meramente adjectiva e formal, não significa, como é óbvio, o abandono do entendimento do Tribunal Constitucional segundo o qual em certos casos é possível considerar os recorrentes dispensados do ónus a que alude o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (nem, como se disse, a verificação de que, no presente recurso, tal pressuposto não estaria preenchido). Só que tal entendimento não implica que deva admitir-se – como pretendiam os reclamantes na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (cfr. fls. 1205 e seguintes) – um recurso atípico
(isto é, um recurso que não preencha a previsão de qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
6. Os restantes argumentos apresentados pelos reclamantes (supra, 2., f) a j)) não contrariam igualmente os fundamentos constantes do ponto n.º 8 da decisão sumária (supra, 1.).
O que se disse no ponto n.º 8 da decisão sumária foi essencialmente o seguinte: que não era possível tomar conhecimento do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, na medida em que os recorrentes questionavam essencialmente a verificação dos pressupostos de que dependia a aplicação de certas normas ao caso concreto (e, nessa medida, a conformidade constitucional da própria decisão recorrida), questão para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional não tem competência (quanto aos outros fundamentos de interposição do recurso, tinham ficado claras, na segunda parte do ponto n.º 7 da decisão sumária (supra, 1.), as razões justificativas do não conhecimento).
Ora, a argumentação dos reclamantes nenhuma conexão apresenta em relação a tal fundamentação da decisão sumária. Os reclamantes não tentam demonstrar (o que seria, naturalmente, imprescindível para o sucesso da reclamação) que não pretendem a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de certas normas ao caso concreto, sendo o presente recurso dirigido, ao invés, à apreciação das próprias normas aplicadas pelo tribunal recorrido. Aliás, o teor da reclamação agora apresentada apenas vem confirmar o entendimento em que assentou a decisão sumária de que os reclamantes pretendiam impugnar a constitucionalidade da decisão recorrida.
Não contrariando a argumentação dos reclamantes a fundamentação da decisão sumária, não existem motivos para proceder à respectiva alteração.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos