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Proc. nº 647/2003
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente a Câmara Municipal de Matosinhos e como recorrida A., é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a norma dos nºs 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, publicado no Aviso nº 1610/99, D.R., II Série, nº 61, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999. A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. O Regulamento e as suas normas são plenamente válidas e, por isso, inquestionavelmente aplicáveis.
2. Actualmente, o subsolo é considerado como um espaço autónomo do domínio público e é objecto próprio de incidência tributária, de acordo com o preceituado na nova Lei das Finanças Locais.
3. O tributo anteriormente existente era uma simples taxa moderadora que visava disciplinar a procura; não se tratava de uma verdadeira taxa.
4. Daí que não possa nem deva falar em aumento, mas em criação ou definição de uma taxa.
5. O valor simbólico do tributo anteriormente existente é a melhor prova de que não se curava ali de uma taxa em sentido técnico.
6. A concepção constitucional de taxa pressupõe a necessidade de existência de uma relação sinalagmática, a desnecessidade de uma exacta equivalência económica, a aferição do respectivo montante em função não só do custo mas igualmente do grau de utilidade prestada e a exigência de uma não manifesta desproporcionalidade na sua fixação.
7. A taxa em apreço tem natureza sinalagmática, visto que é devida em função de uma utilização individualizável de um bem do domínio público municipal, bem expressamente autonomizado na lei;
8. Vistos os critérios estabelecidos para a sua fixação (e respectiva aplicação), tem de concluir-se pela proporcionalidade da taxa aplicada.
9. O critério da área ocupada é indisputável e o critério da ponderação dos custos de exclusão e da intensidade de utilização afigura-se óbvio.
11. A natureza do produto circulante, por razões de proporcionalidade, igualdade e interesse público, não pode deixar de influenciar a modelação da taxa.
12. A consideração do fim da actividade exercida (abastecimento aos munícipes ou armazenagem e refinaria) é perfeitamente legítima, já que os fins de armazenagem e refinaria implicam uma utilização maciça e não realizam qualquer interesse da comunidade municipal.
13. A concreta conformação da taxa pode integrar (e integra) uma finalidade efectiva de moderação da procura.
13. A referência do Acórdão sob recurso às expressões política «fiscal» e
«tributária» é completamente irrelevante.
14. O Tribunal Constitucional decidiu julgar não inconstitucionais as normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do art. 36° do Anexo I do Regulamento com a Constituição, conforme resulta dos Acórdãos n.ºs 365/03 e 366/03 do Tribunal Constitucional de 14.07.2003.
A recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:
1ª A «contraprestação específica do município de Matosinhos pelas taxas exigidas» à recorrida materializa-se na disponibilização do «domínio público para a sua utilização».
2ª Previamente às deliberações da Câmara Municipal de Matosinhos, de 11 de Dezembro de 1998, e da Assembleia Municipal de Matosinhos, em 28 de Dezembro de
1998, que aprovaram a «taxa» cuja constitucionalidade se discute no presente recurso, nenhum estudo foi realizado, nenhum parecer, técnica ou cientificamente sustentado, foi elaborado, de nenhuma justificação se muniu qualquer dos referidos órgãos da autarquia, para decidir o que decidiu e como decidiu.
3ª Em caso de igualdade de produtos e de dimensões das condutas - portanto, de utilizações exactamente iguais do domínio público -, são distinguidos, sem justificação, os «fins industriais ou comerciais para abastecimento» (art. 36.º,
4, do REGULAMENTO E TABELA) dos fins para «refinação ou (...) armazenagem» (art.
36.º, 7, do REGULAMENTO E TABELA), a que se destinam esses produtos, onerando os
últimos em relação aos primeiros.
4ª Não é motivada a causa da diferença de tributação com base na diversidade de produtos que circulam nas condutas e na intensidade da sua utilização.
5ª São estabelecidos montantes diferenciados consoante a actividade dos donos das condutas, a vantagem económica por eles hipoteticamente retirada dessa mesma ocupação - em última análise, a sua capacidade contributiva.
6ª Não se verificou qualquer melhoria, acréscimo ou, sequer, alteração dos serviços prestados pela Câmara Municipal de Matosinhos, na utilização do bem do domínio público, passível de ser invocada como correspectivo do acréscimo da
«taxa» de ocupação do subsolo.
7ª Inexiste contrapartida proporcional ao serviço prestado, o encargo imposto à recorrida não tem correspondência em serviços do Município, é desigual o tratamento da ocupação do subsolo para áreas iguais de ocupação e são tributadas em «taxas» maiores áreas de ocupação menor.
8ª A taxa aplicada à recorrida não só é «manifestamente desproporcionada», como é mesmo «arbitrária».
9ª A norma constante do art. 36.º, 7, do REGULAMENTO E TABELA DE TAXAS E LICENÇAS DO MUNICÍPIO DE MATOSINHOS viola o art. 266.º, 1 e 2 - «princípio da proporcionalidade - da Constituição da República Portuguesa.
10ª A mesma estatuição do art. 36.º, 7, do REGULAMENTO E TABELA DE TAXAS E LICENÇAS DO MUNICÍPIO DE MATOSINHOS ofende também os art.s 13.º e 266.º, 1 e 2
«princípios da igualdade» e «da boa fé»), 61.º, 1, 80.º, c), e 86.º, 1 e 2
«princípio da liberdade de iniciativa económica e de empresa») e 66.º (criação, pelo Município de Matosinhos, com a taxa aplicada à recorrida, de um «tributo ambiental»), todos da Constituição da República Portuguesa.
A recorrida apresentou ainda um parecer da autoria de B., com as seguintes conclusões:
1. A cinco questões se pretende dar resposta neste parecer: 1) se estamos perante uma taxa ou antes perante um imposto (disfarçado de taxa); 2) se não se trata de um tributo extrafiscal a denunciar, também por esta face, a sua natureza de imposto; 3) se, na medida em que constitui um tributo extrafiscal, a taxa respeitou os direitos e liberdades fundamentais das empresas, nomeadamente as liberdades de iniciativa económica e de empresa; 4) se, independentemente de ser considerada tributo ambienta!, tal taxa, cujo montante é 3,33 vezes superior ao estabelecido para os mesmos produtos contemplados no nº 4 do art. 36°, não viola o princípio da igualdade; 5) se, ao alterar tão radicalmente as condições de laboração das empresas, não são violados também os princípios da protecção da confiança e da boa fé.
I. Taxa ou imposto
2. O tributo em análise, prima facie, parece revelar-nos um tributo bilateral, uma taxa, pois é cobrada como contrapartida, contraprestação ou remuneração de uma específica prestação realizada pela administração municipal às empresas petrolíferas destinatárias dessa contrapartida.
3. Mais especificamente, ela tem por base a utilização de um bem do domínio público, um dos três tipos de pressuposto de facto ou facto geral das taxas a que, tanto a doutrina como o art. 4°, nº 2, da LGT, reconduzem os pressupostos de facto dos tributos bilaterais.
4. Uma qualificação que não é posta em causa por essas taxas serem cobradas como contrapartida pela utilização do subsolo, já que também este integra o domínio público municipal. Pois no respeitante ao âmbito espacial ou material do domínio público tem plena validade o art. 1344°, nº 1, do Código Civil, ao prescrever que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo”.
5. Uma ideia que, a seu modo, não deixou de ser reforçada com o que passou a dispor a própria lei. Pois, como especificamente se prescreve agora no art. 19°, al. c), da actual Lei das Finanças Locais (LFL): “os municípios podem cobrar taxas: ...c) pela utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública”.
6. O valor da taxa não tem que ser exclusivamente baseada no volume ocupado, pelo que esse valor não tem que ser uniforme para todos os produtos que circulam nas condutas subterrâneas, podendo o mesmo ser função não apenas da extensão utilizada pelas condutas, mas também pela intensidade dessa utilização. Intensidade que inclusivamente pode ser considerada diversificada em função dos produtos, conquanto que a essa diversidade de produtos corresponda realmente uma diversidade de prestação por parte da administração municipal. Isto é, que à diversidade (do montante) das taxas corresponda uma efectiva diversidade (do montante) da respectiva prestação pública.
7. Também não constitui obstáculo a que as taxas sejam de montante superior ao valor da contraprestação, pois a ideia de equivalência entre prestação e contraprestação específica não implica uma equivalência económica, mas uma equivalência jurídica. Até porque, por vezes, nem o benefício nem os custos podem ser determinados exactamente: aquele porque não tem um valor de mercado; estes porque não podem limitar-se aos custos directamente imputáveis ao contribuinte, devendo este suportar também a parte dos custos comuns de funcionamento do aparelho administrativo.
8. Mas, com quanto acaba de ser dito, não podemos concluir pela correcção jurídica constitucional das taxas sob consulta. E isto por numerosas razões.
9. Desde logo, não podemos esquecer que as taxas em análise são taxas e são taxas pela utilização do domínio público municipal. Pelo que a contraprestação específica do município de Matosinhos às empresas petrolíferas tem de concretizar-se na disponibilização pelo município desse domínio público para a sua utilização pelas empresas.
10. O que significa que tais taxas não têm por base qualquer outro tipo de contraprestação específica. Isto é, por via de princípio, não se concretiza ou materializa essa taxa em qualquer uma ou em ambas as outras contraprestações típicas da figura das taxas - a prestação de um serviço público ou a remoção de um limite jurídico à actividade dessas empresas.
11. Por isso, a ideia de proporcionalidade própria da figura tributária das taxas tem de pautar-se pelo valor que tais parcelas do domínio público têm ou pelo custo que a sua utilização pelas empresas petrolíferas provoca ao município. O que se não compagina minimamente com a ideia de que a referida proporcionalidade possa ser aferida exclusiva ou predominantemente com base no custo que teriam as alternativas que se colocam às empresas petrolíferas para o transporte dos produtos petrolíferos.
12. E que, ou não há alternativa praticável, como é de facto a do seu transporte rodoviário à superfície, que para além de altamente dispendioso para as empresas e para a própria economia nacional, seria ecologicamente insustentável, ou nos deparamos com um verdadeiro preço de monopólio, dado não haver alternativa de utilização de qualquer outro subsolo público ou privado por onde possam circular os produtos em causa.
13. Preço este cujo limite será, ao fim e ao cabo, o que o monopolista quiser. Pois que, estando de todo ausente um (verdadeiro) mercado, escusado será falar de preço ou de preço inerente ao mercado.
14. Um resultado inaceitável e constitucionalmente interdito, desde logo porque impende sobre o Estado, e naturalmente sobre os demais entes públicos, a título de incumbência prioritária, nos termos do art. 81°, al. e), da Constituição:
“assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”.
15. A menos que nos deparemos com taxas que possam ser consideradas como taxas mistas, ou seja, taxas em que, ao lado daquela contraprestação específica, de algum modo, estejam presentes no caso concreto também alguma ou ambas as outras contraprestações típicas da figura das taxas. Uma hipótese que parece de todo excluída.
16. Efectivamente, não vemos como o município de Matosinhos venha realizando qualquer outra prestação às empresas petrolíferas, seja de remoção de um limite jurídico à actividade das mesmas, seja a prestação de um qualquer serviço público.
17. Pois, no que à primeira das hipóteses se refere, é preciso ter presente que a autorização da actividade em questão, da actividade de transporte para refinação e transporte para armazenagem de produtos petrolíferos, cabe à Administração estadual, que de resto autorizou a Consulente. Pelo que a remoção do limite jurídico à actividade das empresas petrolíferas não cabia nem cabe aos municípios e, por conseguinte, não cabia nem cabe ao município de Matosinhos.
18. De outro lado, não descortinamos qualquer serviço público que a administração municipal preste às empresas petrolíferas. Inclusivamente, não encontramos aqui quaisquer custos suplementares que a referida actividade de transporte de produtos petrolíferos para refinação ou armazenagem provoque ao município. Desde logo, as amplas, exigentes e onerosas obrigações que, em matéria de segurança das instalações, incluindo as destinadas ao transporte dos produtos petrolíferos, decorrem para as empresas, não deixam espaço à prestação nesse domínio de qualquer eventual prestação municipal.
19. Daí que, até ao momento, não tenha havido lugar a qualquer actividade do município nesse sector, não se tendo verificado o suporte de quaisquer custos por parte do mesmo. Uma situação que, a seu modo, não deixa de se revelar com particular evidência no facto de o município de Matosinhos inclusivamente ter ignorado durante muito tempo onde concretamente se situavam as condutas cuja segurança e protecção era suposto garantir .
20. Para além de ser questionável se, a haver custos públicos, mormente de recuperação ambienta!, atinentes ao mencionado transporte de produtos petrolíferos, os mesmos são atribuição da administração municipal ou antes da administração estadual. É certo que a protecção ambienta!, que segundo o art.
66° da Constituição constitui um dever fundamental de todos e integra toda uma série de incumbências para o Estado, também cabe nas atribuições dos municípios.
21. Muito embora, tanto com base na Constituição como com base na lei, seja fácil concluir que os municípios têm no domínio da protecção do ambiente um papel bem mais modesto do que aquele que partilham com o Estado em matéria de urbanismo. Uma conclusão para a qual basta confrontar os arts. 65° e 66° da Constituição e as LBPOTU e LBA.
22. O que, obviamente não significa nem podia significar que os municípios não disponham de algumas atribuições no domínio da protecção do ambiente. Muito embora até ao presente não tenha tido lugar a concretização legal dessas, sendo certo que, porque estamos numa matéria verticalmente partilhada em que a parte de leão cabe ao Estado, e não aos municípios, não se pode prescindir dessa concretização legal.
II. Um tributo extrafiscal, mais especificamente ambiental ?
23. Mas independentemente das atribuições e competências municipais em matéria de protecção ambienta!, interessa saber em que medida os municípios podem desempenhar esse papel lançando mão de tributos ambientais, pois estes, ao desencadearem atribuições e competências tanto em sede do direito do ambiente como em sede do direito tributário, carecem de legitimidade constitucional num e noutro desses domínios. O que implica caracterizar os tributos ambientais quer quanto às suas finalidades, quer quanto à sua natureza.
24. No que concerne às finalidades dos tributos ambientais, é hoje consensual a ideia de dividir dicotomicamente esses tributos em duas espécies, pelo que ou são tributos ambientais em sentido estrito, técnico ou próprio, que prosseguem uma finalidade extrafiscal incentivante
(reine Lenkungssteuern), ou são tributos ambientais em sentido amplo, atécnico ou impróprio, que visam uma finalidade reditícia (reine Umwelfinanzierungabgaben). Sendo certo que apenas os primeiros, porque materializam de maneira directa ou imediata a política ecológica, são de considerar verdadeiros tributos ambientais.
25. No referente à natureza dos tributos ambientais, ou seja, saber se os mesmos se configuram como impostos ou como taxas, devemos dizer que, embora em abstracto nada impeça que tais tributos se apresentem quer como impostos quer como taxas, do que não há dúvidas é de que, em concreto, sobretudo por exigências de ordem prática, os tributos ecológicos estão, por via de regra, condenados a materializar-se em impostos.
26. Em primeiro lugar, os tributos ambientais em sentido próprio, em que está ausente uma predominante função colectora ou arrecadadora, proporcionam uma receita que, em princípio, diminui na razão inversa da eficácia e eficiência desses instrumentos de política ambienta. Daí que em relação a tais tributos não seja invocável a curva de Arthur Laffer, que veio demonstrar que o aumento das taxas dos tributos, ou melhor dos impostos, conduz, verificadas que sejam certas circunstâncias ou a partir de determinado nível, não ao aumento das receitas totais, mas sim à sua diminuição.
27. E que a diminuição das receitas totais, fazendo operar em relação ao correspondente pressuposto de facto o efeito substituição ou o efeito rendimento ou ambos os efeitos conjugados, constitui o objectivo dos tributos extrafiscais e, naturalmente, dos tributos ambientais.
28. Pelo que, sendo as coisas assim, torna-se difícil conceber que os tributos extrafiscais possam assumir a configuração de verdadeiros tributos bilaterais ou taxas, em que, por via de regra, não só se pretende, em primeira linha, a receita que proporcionam, como também e sobretudo se reclama uma receita proporcional à correspondente contraprestação específica, traduza-se esta num específico benefício para o contribuinte, a aferir com base no princípio da equivalência (Äquivalenzprinzip), ou na provocação de um específico custo deste
à correspondente comunidade, a aferir pelo princípio da cobertura dos custos
(Kostendeckungsprinzip).
29. No que aos tributos ambientais diz respeito, devemos dizer que, prima facie, as taxas se apresentam mais propícias à internalização dos custos externos como prescreve o princípio do poluidor-pagador, já que à internalização é inerente uma ideia de causa que só a figura das taxas está em condições de exprimir através da sua aptidão para imputar, de modo directo e rigoroso, um gravame à responsabilidade pela produção de custos externos susceptíveis de ser individualizados.
30. Todavia a divisibilidade do benefício proporcionado pelo Estado e demais entes públicos, que permitiria apurar a grandeza do pagamento a realizar pelo poluidor que dele beneficia tendo em conta justamente a proporção em que esse benefício por ele é auferido, nem sempre se verifica quando estamos no domínio da protecção do ambiente.
31. Para além da dificuldade em encontrar ou identificar o responsável pela poluição, não há, na grande maioria dos casos de custos ambientais, qualquer possibilidade prática de medir, com um mínimo de rigor ou, mais exactamente, com o rigor exigido pela proporcionalidade taxa/contraprestação específica, os custos ambientais de molde a constituírem a exacta medida dos correspondentes tributos. Daí que, dada a impossibilidade de medir ou mensurar a contraprestação específica que corresponda às taxas ambientais, não admira que os tributos ambientais sejam medidos com base em manifestações e índices reveladores da capacidade contributiva dos que provocam, ou se presume, em maior ou menor medida, que provocam os danos ambientais.
32. A menos que tais tributos sejam assumidos como tributos ambientais fiscais. Mas então estamos perante tributos que não correspondem, ou não correspondem nos exactos termos exigidos pelo princípio da proporcionalidade, à contraprestação específica municipal feitas às empresas petrolíferas. Pois a contraprestação específica realizada pelo município de Matosinhos é apenas a da cedência às petrolíferas do uso privativo do domínio público municipal ocupado pelas condutas de transporte.
33. Sendo certo que os bens do domínio público estão estritamente adstritos à realização dos interesses públicos a que estão afectos. O que exclui que os mesmos possam ser erigidos em instrumentos de puro comércio como se de bens do comércio privado se tratasse, obtendo assim o município as receitas correspondentes ao seu “preço”.
34. E exclui, por maioria de razão, que o município trate esses bens como bens que, por integrarem um “mercado” que se configura como um verdadeiro monopólio, pode praticar os preços que bem entenda, mormente o preço que maximize as receitas municipais. Ou seja, preços cujo limite será o dos custos das alternativas para o transporte dos produtos petrolíferos, alternativas que, como já vimos, ou são inexistentes ou impraticáveis.
35. Para além de que os preços, incluindo obviamente os preços públicos, ao contrário das taxas, devem ter por base pressupostos de facto que hão-de realizar-se de uma forma livre e espontânea, e não pressupostos de facto coactivamente impostos, como ocorre na situação em apreço.
36. Estamos assim perante taxas totalmente desproporcionadas e arbitrárias, carácter que, a seu modo, também se revela no confronto do seu montante, que foi de 64.783.370$00, com o montante da derrama, que foi de 70.431.010$00, à qual corresponde um IRC localizável no município de Matosinhos de 70.431.010$00, montante este pouco maior do que o montante das taxas pagas pela ocupação do subsolo municipal por 1 conduta de 288m, 1/2 conduta de 1.151m e 113 de conduta de 863m.
III. A violação dos direitos e liberdades fundamentais das empresas
37. Mas, ao estabelecer tributos com tão exagerado montante, que procura fundamentar nos custos a suportar com a realização de objectivos de natureza ambiental, o município de Matosinhos, estabelece verdadeiras restrições às liberdades de iniciativa económica e de livre empresa.
38. Liberdades em que se destaca a liberdade de planear e desenvolver a actividade económica fazendo previsões e tomando decisões a tão longo prazo quanto possível, procedendo ao cálculo antecipado dos custos, nos quais têm importante peso os custos tributários, isto é, os custos com impostos e os custos com tributos bilaterais.
39. É que o estabelecimento pelo município de Matosinhos dessas restrições às liberdades económicas das empresas, consubstanciadas nas referidas taxas, briga com a Constituição, uma vez que, por força da reserva de lei parlamentar constante do seu art. 165°, nº 1, al. b), estamos perante um tipo de limites jusfundamentais que os municípios não estão autorizados a estabelecer ou a fixar.
40. Uma inconstitucionalidade que não será afastada se aí, em vez de verdadeiras restrições, concluirmos estar perante meros condicionamentos a essas liberdades fundamentais. E que do facto de aos municípios, com base na concordância prática entre o princípio da autonomia local e da reserva parlamentar jusfundamental, estar aberta a possibilidade intervirem na periferia dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, não se pode deduzir a legitimidade constitucional dessa intervenção com base exclusivamente na autonomia municipal, sem necessidade portanto de qualquer específica habilitação legislativa.
41. Pelo que, a terem-se por condicionamentos, são suficientemente gravosos para poderem ser estabelecidos sem prévia intervenção do legislador parlamentar ou governamental parlamentarmente autorizado. Até porque, assentando a distinção entre as restrições e os condicionamentos aos direitos fundamentais num aspecto meramente quantitativo, estes últimos não passam de restrições mais moderadas ou mais fracas, restrições de segunda ordem portanto.
42. Ora, a base legal de que dispõem esses tributos limita-se à constante da LFL, a qual apenas constitui suporte para a criação de taxas pela “utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública”.
43. Pelo que, na parte em que não se limitam a ser taxas e vão além disso, ou seja, na medida em que se consubstanciam em tributos de natureza extrafiscal, dirigidos portanto à modelação dos comportamentos ambientais das petrolíferas, carecem de um mínimo suporte legal.
44. Pois, embora aquele princípio de concordância prática permita que os municípios possam intervir na matéria dos direitos fundamentais, isso não pode significar que essa intervenção possa ser levada a cabo sem uma prévia intervenção legislativa a, pelo menos, a autorizar e a traçar o quadro mínimo dessa intervenção municipal.
IV . A violação do princípio da igualdade
45. As taxas em análise brigam também com o princípio constitucional da igualdade, já que não descortinamos qualquer fundamento para a diferenciação de montante das taxas contempladas no nº 7 face às contempladas no nº 4 do art. 36° do referido Anexo I, ou seja, para a forte penalização dos produtos petrolíferos destinados a refinação ou armazenagem.
46. Pois trata-se de taxas relativas aos mesmos produtos e a produtos a circularem em condutas fundamentalmente iguais. Todavia, os produtos petrolíferos destinados a refinação ou armazenagem são taxados com taxas 3,33 vezes superiores às taxas dos produtos petrolíferos que não tenham aquele destino.
47. O que parece óbvio, não tem qualquer explicação no quadro da figura tributária das taxas, antes revelando verdadeiras sanções compulsórias, tudo se passando como se o município de Matosinhos tivesse emitido uma ordem geral às petrolíferas para abandonar o local, sujeitando-se a uma sanção compulsória igual a 35.000$00 por m/l ou fracção de conduta até 20 cm de diâmetro por cada ano em que lá se mantenham.
48. Efectivamente, no Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, ao lado de disposições que integram realmente um regulamento de taxas municipais, temos um plano de acção política do município em matéria de urbanismo e ambiente visando o “despejo” das empresas petrolíferas a laborar no território municipal, servido por um conjunto de meios ou instrumentos verdadeiramente travestidos de taxas.
V. A violação dos princípios da protecção da confiança e da boa fé
49. Finalmente, as taxas em questão são contrárias ao princípio da segurança jurídica no seu vector de princípio da protecção da confiança e ao princípio da boa fé.
50. O primeiro, ínsito no princípio do Estado de direito democrático constante do art. 2° da Constituição, implica não só a exclusão de normas tributárias agravadoras ou oneradoras da situação dos tributados afectadas por verdadeira retroactividade que, na ponderação dos correspondentes interesses em jogo, se revele sem um adequado fundamento de interesse geral, mas também a própria estabilidade do direito (Gesetzeskonstanz, constancy of the law through time).
51. Sobretudo não podem os entes públicos alterar as regras do jogo, neste caso do jogo económico, um jogo que, como é bem sabido, se joga a longo prazo, originando um desequilíbrio cujo alcance era de todo imprevisível aquando quer do constituição ou estabelecimento das relações jurídicas em causa, quer da renovação dessas mesmas relações.
52. E contra não se argumente com o facto de a situação apenas contender com a actuação do município de Matosinhos num aspecto muito limitado, o da exigência das taxas pela utilização do domínio público municipal para o transporte dos produtos petrolíferos destinados a refinação ou armazenagem É que um tal aspecto condiciona o desenvolvimento da actividade dessas empresas, que não pode prescindir do referido transporte. Daí que a protecção da confiança depositada por essas empresas na actuação da Administração pública se refira ao conjunto de todas as entidades e de todos os órgãos que, seja por que via for, modelem juridicamente a situação.
53. Pelo que a actuação do município de Matosinhos, através da exigência de taxas cujo montante, seja em si mesmo considerado, seja considerado por referência ao montante anteriormente exigido, não pode deixar de ser tido por totalmente exorbitante e impeditivo da continuação da actividade desenvolvida, configura-se como um efectivo venire contra factum proprium. Pois, enquanto o Estado autoriza o exercício dessa actividade, e o autoriza por um período relativamente dilatado, o município de Matosinhos vem impedir o exercício da mesma através de um obstáculo tributário.
54. De outro lado, as taxas em causa violam o princípio da boa fé. Com efeito, as empresas petrolíferas planearam toda a sua actividade industrial, realizando os correspondentes investimentos através da construção das instalações e da montagem dos equipamentos, com base num dado quadro jurídico de actuação da Administração pública, no qual a exigência das taxas não constituíram por certo uma componente despicienda. Quadro esse que, era razoável esperar, não seria objecto de alterações radicais ao menos durante a vigência do alvará que formalizou a autorização de exercício das actividades ligadas ao transporte e refinação de produtos petrolíferos.
55. Por isso, tinham legítimas expectativas de que esse quadro não fosse perturbado. Expectativas que, embora não configurando um direito subjectivo das empresas à manutenção do montante das taxas, não podem ser objecto de total perturbação ou mesmo de subversão, sob pena de todo aquele plano de vida das empresas ser destruído.
56. Exigências de protecção da confiança e de tutela da boa fé que se prendem, aliás, com a ideia de coerência do sistema, a exigir uma acção articulada ou harmonizada não apenas das diversas intervenções da mesma entidade ou do o mesmo
órgão, mas também das intervenções de diversas entidades ou de diversos órgãos que modelem juridicamente uma situação, de molde a que as intervenções de uns não se constituam em disfunção das intervenções dos outros.
57. Pois, não obstante a incoerência das soluções jurídicas não conduzir necessariamente ou por via de regra à inconstitucionalidade das soluções, o certo é que essa incoerência, quando atinja um particular grau ou nível, como ocorre na presente situação, pode ser o sintoma, a expressão, a prova da violação de outros princípios constitucionais, como os princípios da protecção da confiança e da tutela da boa fé.
Cumpre apreciar.
2. A questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 365/2003 (D.R., II Série, de 23 de Outubro de 2003), ao qual se seguiu o Acórdão nº 366/2003, de 14 de Julho (www.tribunalconstitucional.pt). Nestes Acórdãos, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma desaplicada nos presentes autos. A recorrente apresentou, porém, um parecer, no qual se sustenta a inconstitucionalidade da norma em apreciação por violação dos princípios da confiança e da boa fé (enquanto “vectores” do princípio da segurança jurídica), princípios com os quais o Tribunal Constitucional não confrontou directamente a norma em causa no Acórdão nº 365/2003. A argumentação da recorrida invoca o carácter “radical” da alteração legislativa operada pela norma em apreciação, bem como a sua “impossibilidade de continuar a actividade”, por força das modificações verificadas. No Acórdão nº 365/2003, o Tribunal Constitucional considerou que a norma impugnada não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Quanto a este último princípio, o Tribunal ponderou o princípio da adequação, o princípio da exigibilidade e o princípio da justa medida, para concluir pela não violação de qualquer desses princípios, tendo sido dito, nomeadamente, que não se provava uma desproporção intolerável entre a quantia a pagar e “por exemplo, o montante que o particular teria de desembolsar se recorresse a outro meio alternativo de circulação, ou se tivesse de pagar a utilização de subsolo sob propriedade privada” e considerado que o Tribunal não tinha elementos que lhe permitissem concluir “pelo manifesto desajustamento entre o montante a pagar a título de taxa pela utilização do subsolo do domínio público municipal e o valor que o particular retira dessa utilização”. Entendeu também o Tribunal que não bastava a mera circunstância do aumento considerável da taxa para poder concluir-se pela violação da proporcionalidade. Considerando, agora, o princípio da segurança jurídica, entende o Tribunal que este, diferentemente do que parece estar implicado no entendimento da recorrida, não confere sem mais, por si, aos particulares um direito à manutenção do quadro legal de um dado momento, alicerçado na protecção de expectativas. De um tal princípio, apenas, decorre uma protecção de confiança, sempre com base em critérios de proporcionalidade. Assim, não viola o princípio da confiança a aplicação a situações já constituídas, e que persistem, de alterações legislativas que se possam justificar por ideias de adequação e de exigibilidade
(cf., exemplificativamente, os Acórdãos nº 24/98 – D.R., II Série, de 19 de Fevereiro de 1998, e nº 237/98 – D.R., II Série, de 17 de Junho de 1998, que, apreciando a conformidade à Constituição de normas alegadamente lesivas de expectativas dos sujeitos, concluíram pela não violação do princípio da confiança, e nº 37/96 – D.R., II Série, de 3 de Maio de 1996, que apreciou uma norma fiscal retroactiva, concluindo pela violação do princípio da confiança). Ora as exigências de adequação e proporcionalidade já foram analisadas, nos termos referidos, no Acórdão nº 356/2003. Por outro lado, a autorização concedida para o exercício de uma dada actividade, que afecte a propriedade pública e bens vários que com ela se conexionem, nomeadamente bens ambientais, pressupõe, naturalmente, o cumprimento das exigências legais, que podem, evidentemente, sofrer alterações ou evoluções. Tais exigências reportam-se necessariamente aos encargos ambientais (actuais e previsíveis em face de actividades perigosas) que decorrem para as entidades públicas licenciadoras dessas actividades, presumindo-se, por isso, que se justificam pelo interesse público e sejam exigíveis nessa medida. No caso concreto, não se pode concluir, por não ter sido demonstrado num plano objectivo e na perspectiva do interesse público, que não seja divisável fundamento relevante para a solução consagrada, tal como resulta do aresto citado, pelo que não procede a invocada violação do princípio da segurança jurídica (princípio da confiança e princípio da boa fé). Por último, a alegada “impossibilidade de continuação da actividade”, por não ter sido provada anteriormente, constitui matéria cuja apreciação não cabe no
âmbito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional. E a relevância de qualquer argumento a partir daí teria de se confrontar sempre com a referida ponderação de proporcionalidade em face do interesse público. Assim, remete-se, no mais, para a fundamentação do Acórdão nº 365/2003, concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma desaplicada nos presentes autos.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma dos nºs 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, publicado no Aviso nº
1610/99, D.R., II Série, nº 61, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Maio de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos