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Processo n.º 859/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, veio interpor recurso de constitucionalidade de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de
2003, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo:
«2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade material e orgânica da norma do n.º 2 do art. 53.º do DL n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, que determina a competência do Tribunal Cível de Lisboa para as acções de execução instauradas pelo IFADAP em virtude do incumprimento pelos particulares contraentes das obrigações para eles decorrentes dos (actos e) contratos de atribuição das ajudas previstas naquele diploma, norma essa em que se funda processualmente o presente processo de execução;
2.1. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade material da referida norma, na medida em que, constituindo a matéria litigiosa uma matéria administrativa, i. é, que releva de relações jurídico-administrativas, não se vislumbra razão suficiente (não se inferindo do diploma e do seu preâmbulo, ou de outro diploma legal conexo, qualquer justificação para tanto) para a atribuição da referida competência aos tribunais cíveis, o que constitui violação do art. 212º da Constituição, que consagra “os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa”; E pretende-se sobretudo ver apreciada a inconstitucionalidade orgânica da mesma norma, na medida em que, mesmo que se aceite ser o domínio das subvenções um daqueles casos de possível “atribuição pontual a outros tribunais do julgamento
(por outros processos) de questões substancialmente administrativas” (Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”), dado estarmos inequivocamente perante uma relação jurídico-administrativa, sempre competiria a decisão de excluir tal matéria da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais à Assembleia da República através de lei, e não ao Governo por meio de simples decreto-lei não autorizado (como é o caso do DL n.º 81/91, de 19 de Fevereiro), pelo que sempre estaremos perante uma violação, pelo n.º 2 do art. 53º deste diploma legal, da al. p) do n.º 1 do art. 165º da Constituição, que comete à Assembleia da República a competência exclusiva em matéria de organização e funcionamento dos tribunais.
3. Pretende-se ver ainda apreciada a inconstitucionalidade da interpretação do art. 53º, n.º 1, do D.L. n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, no sentido de o título executivo nela prevista, designadamente a certidão de dívida extraída pelo IFADAP, dispensar os requisitos de natureza substancial como os consagrados no artigo 46º, al. d), do CPC, e que determinam “os limites da acção executiva, isto é, a extensão e o conteúdo da obrigação do devedor e consequentemente até onde pode ir a acção do credor”, designadamente a razão da dívida ou as respectivas origens, requisito este cuja existência e preenchimento se torna necessário para o cabal exercício do direito de defesa do executado – sendo por isso inconstitucional o entendimento que considere desnecessária a sua previsão legal, por violação do art. 20º da Constituição (complementado pela norma materialmente constitucional do art. 2º do Código de Processo Civil).»
2.Em 8 de Janeiro de 2004 foi proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso interposto, com os fundamentos seguintes:
«(...)
5. Na verdade, o presente recurso foi intentado ao abrigo do disposto no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, como se sabe, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.
6. No presente caso, verifica-se, porém, que a primeira das normas impugnadas não foi aplicada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido – isto é, a norma do n.º 2 do art. 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro (que veio promover a melhoria da eficácia e das estruturas agrícolas, de acordo com regras comunitárias, e previu ajudas agrícolas), segundo a qual “Para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa”, e que o recorrente considera material e organicamente inconstitucional na medida em que seja aplicável a relações jurídico-administrativas (como entende ser a dos autos). Ora, como resulta da transcrição efectuada, o acórdão recorrido não acompanhou tal qualificação da relação jurídica em causa, dizendo, antes, que em “tais contratos estabeleceu-se uma relação jurídica de direito privado, não se devendo considerar acto administrativo destacável a rescisão unilateral feita pelo IFADAP.” E com base nesta qualificação, entendeu que o “conhecimento das invocadas inconstitucionalidades está prejudicado pela solução dada, [de a] relação contratual entre o IFADAP e o recorrente ter natureza privada”. Como se vê, este acórdão não aplica, pois, a norma em questão a qualquer relação jurídico-administrativa – isto é, não aplicou a norma impugnada, do artigo 53º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 81/91, na dimensão interpretativa que o recorrente acusa como inconstitucional. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso quanto a esta dimensão normativa.
7. Impugna também o recorrente a “interpretação do art. 53º, n.º 1, do D.L. n.º
81/91, de 19 de Fevereiro, no sentido de o título executivo nela prevista, designadamente a certidão de dívida extraída pelo IFADAP, dispensar os requisitos de natureza substancial como os consagrados no artigo 46º, al. d), do CPC, e que determinam ‘os limites da acção executiva’”, por considerar que tal norma é violadora do artigo 20º da Constituição. Segundo este artigo 53º, n.º 1,
“Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador das ajudas”. Ora, como se disse, constitui requisito indispensável para se poder tomar conhecimento do presente recurso que a inconstitucionalidade da norma impugnada haja sido suscitada, de modo processualmente adequado, durante o processo
(artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Este requisito deve ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
(a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da República, II série, de 20 de Junho de
1995). E, portanto, o requerimento do recurso de constitucionalidade não é já momento adequado para, pela primeira vez, suscitar a inconstitucionalidade de uma norma, por nesse momento se ter já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Ora, consultando os autos, verifica-se que nas alegações produzidas perante o Supremo Tribunal de Justiça o recorrente não menciona a inconstitucionalidade do artigo 53º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/91 – o mesmo também acontecendo com o parecer jurídico junto aos autos, que, defendendo a inexequibilidade do título, todavia não defende a inconstitucionalidade da norma em causa. E, consultando a decisão recorrida, verifica-se igualmente que esta questão não foi nela aflorada. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso, também quanto ao artigo 53º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/91 (e, sobre a constitucionalidade desta norma, cfr., aliás, o que, ainda que em obiter dictum, este Tribunal afirmou no Acórdão n.º 250/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), por o recorrente não ter suscitado a respectiva inconstitucionalidade durante o processo, perante o tribunal a quo.»
3.Inconformado, o recorrente veio apresentar, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, reclamação para conferência da decisão sumária em causa, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A) O ora reclamante não se conforma com a decisão sumária objecto da presente reclamação na parte em que considera que a norma do n.º 2 do art. 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, não foi aplicada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) recorrido; B) É óbvio que ao decidir como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça considerou-se competente em razão da matéria para decidir enquanto instância de recurso a presente causa, aplicando designadamente a norma legal ... que lhe atribui competência para tanto, isto é, “a norma do n.º 2 do art. 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro (...) segundo a qual “Para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa”; C) O que se pretende é que o Tribunal Constitucional aprecie se, face à regra do n.º 3 do art. 212º da CRP, pode ou não o legislador – no caso, o legislador do Decreto-Lei n.º 81/91 – incluir na competência dos tribunais cíveis o julgamento das acções executivas relativas aos contratos de ajuda celebrados pelo IFADAP com particulares e aos actos de execução dos mesmos contratos; D) Sendo certo que para que este alto tribunal possa responder a essa questão, é necessário que este se pronuncie acerca da natureza (privatística ou administrativa) da relação jurídica subjacente a tais contratos de ajuda e a tais actos de execução dos mesmos contratos.» Simultaneamente com a apresentação da reclamação para conferência, veio o recorrente juntar parecer do Professor Doutor Vieira de Andrade, com as conclusões com o teor que se passa a transcrever:
“1. A determinação da natureza administrativa de um contrato é efectuada mediante um critério estatutário, que apela à participação da Administração na relação contratual na sua veste autoritária.
2. Quando a lei não qualifica de forma expressa um contrato como administrativo, nem o mesmo possui um objecto público, impõe-se o recurso a um conjunto de elementos («factores de administratividade») que revelem essa natureza.
3. A previsão de «cláusulas de Direito Administrativo» ou «poderes exorbitantes» atribuídos à Administração no âmbito da execução de contrato constitui um elemento determinante da administratividade do contrato.
4. A possibilidade de o contraente público praticar actos administrativos relativos à execução do contrato enquadra-se na noção de «cláusula exorbitante».
5. A circunstância de o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, atribuir o carácter de título executivo às certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador leva-nos a concluir que o acto que impõe o pagamento das respectivas obrigações pecuniárias reveste a natureza de acto administrativo.
6. Ainda que se entendesse que tais actuações do contraente público consubstanciassem meras declarações negociais, tal não excluiria a natureza administrativa dos contratos, tendo em conta que uma previsão idêntica não poderia figurar num contrato em que a Administração não actuasse nessa qualidade, bem como o facto de a administratividade dos contratos em análise ser confirmada por vários aspectos do conteúdo contratual.
7. Revestindo os contratos em análise natureza administrativa, os litígios emergentes da respectiva execução, onde se incluem as acções executivas instauradas pelo organismo pagador das ajudas ao beneficiário, têm de considerar-se emergentes das relações jurídicas administrativas e, por isso, integram, a partir da revisão de 1989, nos termos do n.º 3 do artigo 212º da Constituição, o âmbito próprio de competência reservada da jurisdição administrativa.
8. O n.º 2 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, ao determinar que “para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas
é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa”, altera a ordem de competências jurisdicionais estabelecida pela Constituição.
9. Entendendo-se que a Constituição estabelece uma «reserva nuclear ou de princípio», e não uma «reserva absoluta de jurisdição», pode admitir-se que o legislador ordinário estabeleça justificadamente desvios àquela regra, pelo que a citada norma constante do n.º 2 do artigo 53º não estará, por essa razão, ferida de inconstitucionalidade material.
10. Os desvios à regra do n.º 3 do artigo 212º, a serem admitidos, implicam uma alteração inovatória da ordem de competências jurisdicionais, que, nos termos da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só sendo válida se for feita através de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei autorizado do Governo.
11. O Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, que, em desvio à reserva constitucional já em vigor, atribui aos tribunais comuns a competência para um litígio que tem por objecto uma relação jurídica administrativa, sendo um decreto-lei simples, carece da autorização legislativa indispensável para o efeito e padece, por isso, de inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição. Tal é, salvo melhor, o nosso parecer.» Notificado para responder ao requerimento, com parecer, de reclamação para conferência, o recorrido nada disse. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Como se referiu, das duas normas que o ora reclamante pretendeu sujeitar a escrutínio do Tribunal Constitucional, e que dela foram excluídas por decisão sumária do relator, só uma é objecto de reclamação para a conferência: a do n.º
2 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro. Quanto à outra norma – a “interpretação do art. 53.º, n.º 1, do D.L. n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, no sentido de o título executivo nela prevista, designadamente a certidão de dívida extraída pelo IFADAP, dispensar os requisitos de natureza substancial como os consagrados no artigo 46º, al. d), do CPC, e que determinam
‘os limites da acção executiva’” – mantém-se, pois, a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
5.Defende o reclamante que o que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie
“é precisamente, se, face à regra do n.º 3 do art. 212º da CRP, que atribui aos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência para ajuizar dos litígios emergentes de uma relação jurídico-administrativa, pode ou não o legislador – no caso o legislador do Decreto-Lei n.º 81/91 – incluir na competência dos tribunais cíveis o julgamento das acções executivas relativas a contratos de ajuda celebrados pelo IFADAP com particulares e aos actos de execução dos mesmos contratos”, afirmando que a dimensão normativa que impugnou foi aplicada pelo tribunal recorrido. Analisando o teor do requerimento de recurso, reconhece-se, efectivamente, que nele se pede que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 53º daquele Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro,
“que determina a competência do Tribunal Cível de Lisboa para as acções de execução instauradas pelo IFADAP em virtude do incumprimento pelos particulares contraentes das obrigações para eles decorrentes dos (actos e) contratos de atribuição das ajudas previstas naquele diploma, norma essa em que se funda processualmente o presente processo de execução”, sem se definir como elemento da dimensão ou interpretação normativa a apreciar a qualificação como jurídico-administrativa da relação litigiosa em causa. Esta qualificação é, antes, na óptica do requerimento de recurso, um fundamento para a inconstitucionalidade, quer material, quer orgânica, defendida pelo recorrente, e não um elemento integrante da dimensão normativa a apreciar (caso em que, efectivamente, esta não teria sido aplicada pelo tribunal recorrido). Não pode, pois, manter-se a decisão reclamada, na medida em que esta partiu do princípio de que a dimensão normativa impugnada se referia apenas à competência dos tribunais cíveis para determinadas acções relativas a relações que se qualificavam como jurídico-administrativas. Por outro lado, se, como no presente caso, a decisão da questão de constitucionalidade depende – como pode depender – de uma determinada qualificação da relação em causa, à luz dos parâmetros constitucionalmente relevantes, nada obsta a que o Tribunal Constitucional, para decisão de tal questão de constitucionalidade, se pronuncie sobre a qualificação relevante para este efeito. A presente reclamação é, pois, de deferir, revogando-se a decisão reclamada e ordenando-se a produção de alegações. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se deferir a presente reclamação, revogar a decisão reclamada e ordenar a produção de alegações.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos