Imprimir acórdão
Processo n.º 609/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de
21 de Abril de 2004, que decidiu rejeitar o recurso por si interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu igualmente rejeitar o recurso que o mesmo interpusera anteriormente do acórdão proferido pela 2ª Vara Criminal de Lisboa que o condenou como autor de um crime de abuso sexual de crianças, agravado e na forma continuada, p. e p. pelos art.ºs 172º, n.ºs 1 e 2, 177º, n.ºs 1, alínea a), 4 e 6, e 30º, todos do Código Penal (CP), na pena de 8 anos de prisão, reduzida para 6 anos e 6 meses de prisão em consequência do perdão concedido pelo art.º 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 411º, n.º 1, do CPP na interpretação segundo a qual o prazo de interposição do recurso que deverá ser sempre motivado é de 15 dias mesmo quando o recorrente pretenda a reapreciação da prova gravada, não se aplicando subsidiariamente ao caso nos termos do art.º 4º do Código de Processo Penal (CPP) a norma do n.º 6 do art.º
698º do Código de Processo Civil que prevê o acréscimo de 10 dias, por violação do disposto no art.º 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa
(CRP).
2 – O acórdão recorrido louvou-se na seguinte fundamentação para rejeitar o recurso interposto pelo recorrente do acórdão da Relação no qual, entre o mais, questionou a constitucionalidade da norma extraída do art.º 411º, n.º 1 e 3, do CPP na interpretação segundo a qual o prazo para impugnar através de recurso decisão sobre matéria de facto é de 15 dias não lhe acrescendo o lapso de tempo de 10 dias a que alude o n.º 6 do art.º 698º do CPC:
«A questão fulcral a apreciar e a decidir é a de saber se, interposto recurso que verse também matéria de facto, em que tem lugar a transcrição (pelo Tribunal) da prova gravada, ao prazo de 15 dias fixado no n.º 1 do art.º 411º do Cód. Proc. Penal, deverá acrescer o prazo de 10 dias estabelecido no art.º 698°, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, por existir uma lacuna integrável nos termos do art.º 4° do Cód. Proc. Penal. A resposta a esta questão há-de ser, necessariamente, negativa. Como consta dos presentes autos, após haver sido proferido, publicamente em audiência o acórdão condenatório, foi interposto recurso por declaração para a acta, em 11-4-2003 (ver fls. 405). De harmonia com o estabelecido no art.º 411º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal (...),
“se o recurso for interposto por declaração na acta, a motivação pode ser apresentada no prazo de 15 dias, contado da data da interposição” . Ora, este prazo de 15 dias fixado no citado no n.º 3 do art.º 411º, é um prazo peremptório, não sendo lícito falar em “lacuna integrável por aplicação do art.º
698°, n.º 6, do C.P.C., ex vi do art.º 4º do CPP.' Por outro lado, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, deve fazer as especificações aludidas no n.º 3 do art.º 412º e, de harmonia com o n.º 4 deste artigo, “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição”. Tendo o recorrente a possibilidade de acesso ao suporte material da prova gravada, bem pode o recorrente dar integral cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e
4 do art.º 412º do Cód. Proc. Penal, quando impugne a matéria de facto, e a circunstância de “a construção do recurso” ser “muito mais laboriosa”- como sustenta o recorrente - não constitui fundamento para a pretensão de um alargamento do prazo, por mais dez dias, para a apresentação da motivação, já que, com a maior evidência, não se verifica qualquer lacuna a integrar. Não se mostram violadas as disposições legais ou constitucionais mencionadas na motivação, nem limitadas as garantias de defesa.
-5-
Em suma: no douto acórdão recorrido decidiu-se acertadamente, uma vez que, tendo a motivação do recorrente sido apresentada, na 1ª Instância, em 6-5-2003, foi extemporânea. Logo, é manifesta a improcedência do recurso que, forçosamente, terá de ser rejeitado, em obediência ao estatuído no art.º 420º, n.º l, do Cód. Proc. Penal.
-6-
Nestes termos e concluindo:
Acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso, condenando o recorrente no pagamento de 3 UC's de taxa de justiça, e em mais 3 UC's, nos termos do n.º 4 do art.º 420º do Cód. Proc. Penal.».
3 – Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional o recorrente condensou os fundamentos do seu recurso nas seguintes proposições conclusivas:
«a. Entende o Tribunal a quo que, para apresentação de motivações há um prazo único de 15 dias (art.º 411º n.ºs 1 e 3 do CPP) qualquer que seja o tipo de recurso em causa. b. Entendemos que semelhante entendimento gera, na prática, situações inaceitáveis em que são limitadas as garantias de defesa do arguido, constitucionalmente consagradas. c. Claramente se chega a esta conclusão, quer por razões de ordem jurídica, quer de ordem prática. Senão vejamos. d. O Tribunal a quo cinge-se, erradamente à letra da lei. Quando não é essa a boa técnica de interpretação das normas legais (veja-se o art.º 9º do Código Civil). e. Daí resulta, como consequência mais grave, a não interpretação do art.º 411º CPP à luz dos princípios constitucionais (veja-se art.º 3º/3 CRP). f. Gerando-se, assim, uma inconstitucionalidade (veja-se art.º 277º/1 CRP). g. Quer se esteja no âmbito do n.º 1 como no do n.º 3 do art.º 411º CPP. h. Um recurso em que se impugne tão somente matéria de direito é totalmente distinto daquele em que se impugna a decisão sobre matéria de facto. i. Porque este é muito mais laborioso e complexo. j. Não podem, nem devem, por tal motivo, ter o mesmo tratamento, nomeadamente quanto ao tempo concedido para sua elaboração. k. O Tribunal a quo deveria ter tido em atenção a evolução legislativa. O que não fez. l. Repare-se que, em 1995 foi criada a figura da gravação da prova, que, muito embora não tenha sido legislativamente transporta para o Processo penal, passou a ter plena aplicação nos nossos tribunais criminais. m. Nomeadamente na gravação de depoimentos durante a audiência de julgamento e na utilização das gravações em fase de recurso. n. Justifica-se, assim, claramente que o previsto no art.º 698º/6 do CPC também tenha aplicação em processo penal. Até por força do art.º 4º CPP. o. O legislador concede um prazo acrescido de 10 dias ao recorrente, quando este pretenda impugnar a decisão da matéria de direito, porque entendeu, e bem, que a audição das cassetes e o ónus do recorrente de identificar e transcrever passagens das gravações, implicaria um trabalho acrescido (leia-se o Preâmbulo do DL 39/95 de 15 de Fevereiro: “... Tal ónus acrescido do recorrente
.... justifica o alargamento do prazo...”). p. Ora, se em processo penal está em causa a “liberdade” do arguido e não apenas a “fazenda” como em processo civil, dúvidas não há de que tal raciocínio também funcionará relativamente ao recurso em processo penal. q. A tudo isto acresce que, para dar cumprimento ao 412º, nºs 3 e 4 do CPP, o recorrente não raras vezes se depara com a divergência entre as numeração das voltas das cassetes conforme o aparelho de reprodução utilizado. r. O que implica ter de ouvir e, por vezes mesmo, transcrever, toda a prova gravada a fim de evitar que, da não correspondência entre a sua construção lógica e os suportes técnicos, resulte um trabalho incoerente e, como tal, perfeitamente inútil. s. Em homenagem ao princípio 'in dubio pro reo', princípio este que deriva logicamente do princípio da presunção da inocência do arguido (art.º
32º/2 CRP), também sempre se deverá optar pelo regime mais favorável: no presente caso, pela aplicabilidade do art.º 698º/6 do CPC ao processo penal. t. O mesmo ocorrendo com o princípio da igualdade, consagrado no art.º
13º CRP. u. Repare-se que já existe vasta jurisprudência onde se opta pela solução por nós defendida. Mas trata-se de matéria controversa havendo, também jurisprudência em sentido inverso. O que atenta revoltantemente contra a certeza do direito, a segurança jurídica, a igualdade e, como tal, contra as garantias de defesa do arguido. v. É, sem sombra de dúvida, inaceitável que o direito de recurso, em casos como o aqui em apreço, esteja dependente do entendimento que, a cada momento, o julgador decida a adoptar.
w. De todo o acima exposto, resulta claro que só a aplicabilidade do art.º
698º/6 do CPC ao recurso em processo penal, quando no mesmo se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, é consentânea com as garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º da CRP , mormente nos seus nºs 1 e 2. Sendo a solução inversa gravemente lesiva dessas mesmas garantias.».
4 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional contra-alegou, defendendo o não provimento do recurso com base nas razões condensadas nas seguintes conclusões:
«1 - A coexistência de um regime jurídico diferenciado quanto a prazos para interposição de recursos, no âmbito de um determinado tipo de procedimento, ou em ramos de direito diferenciados, como o processo penal e o processo civil, visando finalidades distintas, não é desconforme à Constituição.
2 - Não impedindo o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, que o legislador ordinário estabeleça tratamentos diferenciados, a não aplicação em processo penal do alargamento do prazo para interposição do recurso previsto no artigo 698º, n.º 4, do Código de Processo Civil, estando em causa a reapreciação da prova gravada, não inconstitucionaliza a norma do n.º 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal, que fixa em 15 dias e de forma peremptória o prazo do recurso.
3 - O exercício do direito ao recurso no prazo de 15 dias não se traduz na imposição de qualquer ónus excessivo para a defesa, que não vê afectada a garantia constitucional do n.º 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
4 - O princípio da presunção de inocência, com relevância fundamental em matéria de prova, não impõe que perante interpretações possíveis de normas jurídicas, se opte por aquela que, no caso concreto, se revele mais favorável ao arguido.
5 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.».
B – Fundamentação
5 – Embora referida prevalentemente ao prazo de interposição do recurso, pela evidente razão de, afora a situação referida na segunda parte do n.º 3 do art.º 411º do CPP, os momentos de interposição do recurso e da sua motivação coincidirem em processo penal, a dimensão normativa do art.º 411º, n.º
1, do CPP cuja constitucionalidade o recorrente verdadeiramente questiona é a que respeita ao prazo de 15 dias improrrogáveis para a apresentação da motivação do recurso, tratando-se de saber se é conforme com a Lei Fundamental uma acepção de tal artigo no sentido do não acréscimo de um prazo de 10 dias para o recorrente motivar o recurso quando nele se ponha em causa a decisão da matéria de facto com base numa reapreciação de prova gravada, em termos correspondentes aos previstos no n.º 6 do art.º 698º do CPC. É, de resto, esse o quadro processual em que a questão se coloca: o recorrente interpôs recurso da sentença condenatória penal por declaração na acta, tendo o recurso sido imediatamente admitido, vindo mais tarde a ser rejeitado por a respectiva motivação ter sido apresentada fora do prazo de 15 dias a contar da data da sua interposição na acta da audiência.
Antes de mais cumpre acentuar que não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual seja a solução a dar, no plano do direito infraconstitucional, à controvérsia sobre se é supletivamente aplicável, no processo penal, a norma do art.º 698º, n.º 6, do Código de Processo Civil ou seja, se se está perante uma lacuna de regulação da matéria no Código de Processo Penal e se é caso de aplicação do art.º 4º deste compêndio legislativo.
A questão posta cinge-se a saber se a norma acima definida e que foi aplicada à decisão do caso concreto é ou não conforme com os parâmetros constitucionais invocados ou outros, dado que em matéria de parametricidade constitucional não está o Tribunal vinculado ao alegado (cfr. art.º 79º-C da LTC). Nesta medida não há que tomar posição quanto a saber se a solução achada é a que melhor decorre dos instrumentos hermenêuticos de que o intérprete deve socorrer-se para alcançar o sentido da lei ou se ela representa uma boa opção do legislador, desde que tomada dentro dos parâmetros constitucionais. Assim não há que considerar se a diferente natureza do recurso, se relativo a matéria de facto ou se também, ou só, concernente a matéria de direito, não aconselharia, nesse plano, ao estabelecimento de diferentes prazos de apresentação de recurso ou da sua motivação.
O estabelecimento de prazos de recurso e da sua motivação não pode deixar de considerar-se uma exigência co-natural do estabelecimento de qualquer processo de apreciação e de decisão.
No seu Acórdão n.º 571/01, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Fevereiro de 2002, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51º vol., pp. 621, que tinha por pano de fundo a apreciação da conformidade constitucional da norma da alínea c) do art.º 380º do Código de Justiça Militar que estabelecia, quando não fosse entregue no acto de intimação (do libelo), o prazo de cinco dias para a entrega do rol de testemunhas para prova da defesa, escreveu-se sintetizando anteriores posições do Tribunal:
«Este Tribunal já admitiu, porém, que diferentes ramos processuais possam conter diferentes prazos para actos de natureza semelhante ou idêntica (cfr., v.g., o Acórdão n.º 266/93, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Agosto de 1993), que no mesmo direito processual existam tais diferenças de prazos (cfr., por ex., o Acórdão n.º 186/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992) e que diferentes sujeitos processuais estejam adstritos a diferentes prazos (cfr., v.g., o Acórdão n.º 524/97, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1994), desde que haja para isso fundamento material bastante. Em todo o caso, não deixou de considerar, mesmo atendendo à especificidade do processo penal militar, que não era admissível – para efeitos de interposição e motivação do recurso – um prazo
'especial e significativamente mais curto – correspondente a metade – do que o previsto no processo penal comum' (Acórdão n.º 34/96, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1996). O mesmo juízo foi, aliás, reiterado no Acórdão n.º 611/96 (publicado no Diário da República, II Série, de
6 de Julho de 1996).».
No processo criminal, a previsão da existência de prazos de recurso impõe-se desde logo como postulado necessário da garantia concedida na parte final do n.º
2 do art.º 32º da CRP de que o arguido “deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Todavia, nem este preceito constitucional nem outro (com pertinência ou afinidade sobre a matéria surge o art.º 20º da CRP, mormente o seu n.º 4) definem ou estabelecem quais devam ser esses prazos, donde resulta que o legislador ordinário disponha nesta matéria de uma ampla discricionariedade normativo-constitutiva. Mas tal não quer dizer que para a Constituição, e mormente em matéria de processo criminal, essa fixação seja indiferente (como paralelamente poderá acontecer em outros tipos de processos especialmente quando estejam em causa direitos fundamentais). Na verdade, se o n.º 2 do art.º 32º da CRP assume como garantia concedida ao arguido o dever de o mesmo ser julgado no mais curto prazo não deixa, também, de balizar esse prazo pela exigência de que o mesmo seja compatível com a efectividade das garantias de defesa.
Foi a consideração, essencialmente, de que o prazo previsto não permitia um exercício efectivo das garantias de defesa que levou o Acórdão n.º 41/96, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., pp. 235 e ss., a concluir pela inconstitucionalidade do 328º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que fixava em cinco dias, contados da notificação da acusação, o prazo para o arguido requerer diligências de instrução contraditória em processo de querela. Disse-se, então, aí:
«O processo penal de um Estado de Direito há-de “assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi”; mas há-de também “oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta” (cf. Acórdão n.º 434/87, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Janeiro de 1988; e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, página 160). Tal processo há-de ser, assim, um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder sempre defender-se. Este, o núcleo essencial do princípio da defesa, que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, se proclama. A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 61/88, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988: A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos números 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de ser um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
(Cf. também o Acórdão n.º 322/93, publicado no Diário da República, II série, de
29 de Outubro de 1993). Esta cláusula constitucional - que se apresenta com um cunho reassuntivo e residual (relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do artigo 32º) e que, na sua abertura, acaba por revestir-se de um carácter acentuadamente programático - contém, ao cabo e ao resto, “um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária” (cf. FIGUEIREDO DIAS, in A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51). E contém esse conteúdo normativo imediato, justamente, porque aí se proclama o próprio princípio da defesa e, portanto, inevitavelmente, se faz apelo para o seu núcleo essencial, cuja ideia geral é a de que o processo criminal tem de assegurar sempre ao arguido a possibilidade de ele se defender (cf., também o Acórdão n.º
186/92, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992). O princípio das garantias de defesa - afirmou-se no já citado Acórdão n.º 434/87
- será violado “toda a vez que ao arguido se não assegure, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa”; ou seja: sempre que se lhe não dê oportunidade real de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cf. Acórdão n.º 315/85, publicado no Diário da República, II série, de
12 de Abril de 1986).».
Do mesmo passo pode referir-se que foi igualmente a ponderação da impossibilidade de um exercício efectivo das garantias de defesa consubstanciado na oportunidade de o arguido poder realmente controverter em recurso a matéria de facto fixada pela decisão recorrida, dentro dos prazos legalmente fixados para a interposição do recurso, que conduziu o Tribunal Constitucional a no seu Acórdão n.º 363/00, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp. 653, pronunciar-se pela inconstitucionalidade, “por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, dos artigos 107º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e 146º, n.º
1, do Código de Processo Civil (quando aplicado subsidiariamente em processo penal) quando interpretados no sentido de que a impossibilidade de consulta das actas de julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364º, n.º 1, do Código de Processo Penal), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal”, conduzindo assim à solução de o prazo de recurso (e da respectiva motivação, no figurino processual actual) ser acima de
15 dias em tanto tempo quanto durar o justo impedimento.
E foi também com base em uma idêntica ponderação dos valores em presença – celeridade processual e efectividade da possibilidade de exercício do direito de defesa –, mas em que, ao contrário do que sucedeu no caso anterior, o Tribunal concluiu que, na situação sob análise, a garantia da possibilidade real e efectiva de exercício dos direitos de defesa não saía afectada, que o Acórdão n.º 433/02, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Janeiro de
2003, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 54º vol., pp. 551, decidiu “não julgar inconstitucional a interpretação do art.º 107º, n.º 2, do Código de Processo Penal segundo a qual, havendo possibilidade de acesso ao suporte material da prova gravada, a impossibilidade de acesso às transcrições das declarações orais prestadas em audiência (quando tenha sido requerida a respectiva gravação), por as mesmas ainda não estarem disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória”, acabando, deste modo, por manter, numa tal situação, o efeito preclusivo associado ao decurso do prazo de 15 dias estabelecido para a interposição do recurso.
Pode, pois, concluir-se, com segurança, com base na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional que a fixação do prazo de interposição de recurso penal e da respectiva motivação estabelecido pelo legislador ordinário, no exercício da sua discricionariedade normativo-constitutiva constitucionalmente, só é susceptível de ser censurada sub specie constitucionis se ele for desadequado, irrazoável ou desproporcionado para, de um lado, poder permitir o julgamento do arguido no mais curto prazo e, do outro, impedir “um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido”.
Ora, a esta luz não poderá considerar-se que o prazo de 15 dias que está estabelecido no n.º 3 do art.º 411º do CPP para o arguido motivar o recurso interposto na acta, e no qual se pretenda a reapreciação da matéria de facto com base em prova gravada em audiência, ofende o princípio das garantias de defesa, tal como este se deixou recortado, numa situação, como é a da hipótese recortada na dimensão normativa que está em causa, em que não se questiona a possibilidade do acesso efectivo, por banda do arguido, às cassetes de gravação da prova dentro do prazo fixado para a motivação do recurso. Ao contrário do defendido pelo recorrente, não se afigura que o estabelecimento de um lapso de tempo de 15 dias seja desrazoável ou inadequado para dar cumprimento ao ónus de motivação do recurso – desde que o arguido tenha efectiva disponibilidade desde o dies a quo do cômputo desse prazo das provas gravadas –, conquanto nesta se discuta e pretenda a reapreciação do julgamento da matéria de facto efectuado pela decisão recorrida, bem como o juízo de apreciação e valoração das provas produzidas em audiência, nela efectuado, naquelas se incluindo as provas gravadas, e se tenha nessa motivação de satisfazer os ónus estabelecidos no art.º 412º, n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, do CPP, e não apenas a apreciação de matéria de direito. Não pode considerar-se que o prazo de
15 dias contados, no caso, desde a data de admissão do recurso interposto corresponda a lapso de tempo curto que por si implique um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido, mesmo tendo em conta que o asseguramento efectivo dessas possibilidades de defesa passará pela audição das cassetes e pela preparação, estudo e elaboração da alegação de recurso, com as referidas especificações. E uma tal situação muito menos será susceptível razoavelmente de acontecer numa situação, como é a dos autos, em que são apenas
4 (quatro) as cassetes a ouvir (como o arguido refere nas suas alegações de recurso para o STJ – fls. 677) e em que o arguido não contesta que tenha tido desde o início do prazo a possibilidade do acesso às gravações. De resto, na ponderação a efectuar sobre se o prazo estabelecido pelo legislador obsta à satisfação das referidas exigências constitucionais não se vê que razoavelmente possa considerar-se, ao contrário do alegado pelo recorrente, que a motivação de um recurso relativo ao julgamento da matéria de facto seja, por regra, mais complexa e que exija maior dispêndio de tempo do que o estudo de questões de direito: como em tudo no que é vida, haverá casos e casos, não tendo a posição do recorrente o valor de qualquer verdade axiomática. Por outro lado, as eventuais divergências que na prática possam acontecer na numeração das voltas das cassetes conforme o equipamento de gravação/reprodução de som que seja utilizado, de que fala o recorrente, não são de ponderar pelo Tribunal Constitucional para ajuizar do respeito pelo alegado parâmetro constitucional do art.º 32º, n.º 1, da CRP, porque têm que ver não com o critério normativo sob sindicância constitucional mas antes com o grau de idoneidade ou fiabilidade técnica daqueles instrumentos poderem garantir, com um total grau de certeza, a realização das prestações que são próprias da sua construção tecnológica. A avaliação da possibilidade de uma tal deficiência caberá, todavia, ao legislador ordinário dentro da escolha dos meios que faz para prosseguir as finalidades que se propõe, “salvo, obviamente, na estrita medida em que algum ou alguns desses princípios de eficiência e utilidade sejam directamente tutelados pela própria Lei Fundamental, que desta forma os eleva a parâmetro da solução legislativa”
(cf. Acórdão n.º 236/00, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Novembro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., pp. 269). Ora, mesmo admitindo que essa divergência possa ainda ter significado dentro da garantia do asseguramento real das garantias de defesa, na estrita medida em que se poderá colocar com base nos elementos de facto constantes de certas voltas das cassetes questões probatórias ao tribunal ad quem, não se vê que o risco de acontecimento de uma eventual divergência de leitura de voltas da cassete não possa ser obviada mediante o recurso a expressões de localização como a citação dos nomes ou a reprodução de parte do discurso ou facto que aí constem, a efectuar no tempo da elaboração da motivação do recurso, donde se poderá concluir não ser o prazo peremptório de 15 dias inadequado ou desproporcionado para permitir todos os meios de defesa ao arguido.
6 – Sustenta ainda o recorrente que a norma sindicada ofende o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, porquanto, ao contrário do que sucede no processo penal segundo a interpretação aplicada na decisão recorrida, no processo civil se prevê um acréscimo do prazo estabelecido para alegações em 10 dias “se o recurso tiver por objecto a reapreciação de prova gravada”.
É sabido que o princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe sim é a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias ou seja, de desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, como sejam as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental (diferenciações baseadas na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social). Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (cfr., por todos, o recente Acórdão n.º 232/03, publicado no Diário da República, I-A Série, de 17 de Junho de 2003).
Ora, a primeira questão que poderá colocar-se é a de saber se será possível isolar, seccionando-o para confronto com outro, um determinado ponto do regime jurídico dentro do que globalmente regula certa área material do direito. A propósito de um alegado confronto de regimes entre o processo civil e o processo penal (no caso a extensão do dever legal de fundamentação), escreveu-se no Acórdão n.º 422/99, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Novembro:
«[...] suposto que, como sustenta a recorrente, do princípio do Estado de direito decorra uma “harmonização do sistema jurídico” em termos de levar à consagração de soluções legais idênticas quando exista alguma similitude de situações, isso, certamente, não pode significar que essa harmonização conduza ineludivelmente a que os diversos corpos de leis adjectivos tenham de consagrar soluções iguais, designadamente no que tange ao processo civil e ao processo criminal. Na verdade, as prescrições tendentes à adjectivação não podem desligar-se da diversidade de institutos jurídicos de cariz, quantas vezes acentuadamente diferenciado, que pautam, verbi gratia, o direito civil, o direito penal e o direito administrativo, pelo que as soluções decorrentes dessa adjectivação podem, e muitas vezes até devem, ser diferentemente perspectivadas, até tendo em conta preceitos, princípios e garantias que a própria Constituição impõe que sejam observados em determinados ramos de direito. Seria, por exemplo, incurial e contrário à Lei Fundamental que no processo criminal se estabelecessem ónus probatórios a cargo do arguido, provas por confissão, sancionamentos cominatórios penais ou presunções de responsabilidade ou culpabilidade criminal, o mesmo já se não podendo dizer se um tal estabelecimento decorrer da lei processual civil, ao adjectivar as formas de tutela do incumprimento de obrigações civis.».
Ora, como acima se expôs, decorre do art.º 32º, n.º 2, da CRP, uma garantia de que o arguido “deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. O legislador do processo criminal não pode deixar de dar cumprimento a tal injunção constitucional na fixação dos prazos cujo estabelecimento se revele necessária dentro da respectiva tramitação processual cuja conformação está, de resto, subordinada a diversos princípios e garantias constitucionais que integram a denominada “Constituição processual penal”, constante, essencialmente, do art.º 32º da CRP, onde avultam os princípios do asseguramento de todas as garantias de defesa, do contraditório, do acusatório, da jurisdicionalidade de todas as medidas restritivas de direitos fundamentais, da presunção de inocência, etc. A celeridade processual tem, no processo penal, uma fonte e intensidade constitucional diferente da que concerne à defesa de outros direitos, à qual se refere o n.º 4 do art.º 20º da CRP e que foi introduzido na revisão constitucional de 1997 para “dar resposta à necessidade sentida – no âmbito do direito a uma tutela judicial efectiva que se traduz, designadamente, no direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade – de uma protecção adequada ao exercício de certos direitos (p. ex. o direito de reunião contra uma proibição policial) de modo a impedir que a sua ofensa se torne irreversível (palavras do Acórdão n.º 212/00, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º, vol. pp. 165).
Sendo assim, não poderá sustentar-se existir uma situação jurídica igual do ponto de vista material ou substancial que justifique que no processo penal haja de valer o referido acréscimo do prazo previsto no processo civil. A especificidade que vigora no processo penal quanto ao tempo em que o direito do arguido a ser julgado definitivamente deve ser satisfeito constitui fundamento racional bastante para justificar a diferença de regimes.
7 – Defende, por fim, o recorrente que a interpretação do art.º
411º, n.º 1 (e n.º 3), do CPP no sentido de não envolver, no prazo aí estabelecido, também o acréscimo de 10 dias contemplado no n.º 6 do art.º 698º do CPC viola o princípio da presunção de inocência, pois dele derivaria que se deveria optar pelo regime mais favorável.
Desde já importa notar que a colocação da questão tal como é posta pelo recorrente só teria algum sentido, mesmo pressupondo que o princípio da presunção de inocência vale fora do domínio da apreciação das provas, se o acórdão recorrido tivesse fixado a dimensão normativa que aplicou com base na utilização de qualquer instrumento jurídico que determinasse que as dúvidas interpretativas deveriam ser resolvidas em certo sentido. Mas não foi isso o que aconteceu: o acórdão recorrido determinou, bem ou mal não importa aqui considerar, o sentido do preceito que aqui se questiona de forma assertórica, não o inferindo da aplicação de qualquer regime de presunção.
Mesmo conferindo ao princípio da presunção de inocência afirmado no art.º 32º, n.º 1, da CRP um sentido normativo fundamental situado fora do estrito campo da avaliação das provas em processo penal, este mais impressivamente transportado pelo princípio denominado de in dubio pro reo, - qual seja o de que esse princípio “representa (hoje) sobretudo um acto de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda a sociedade livre” e que “esta atitude tem consequências para toda a estrutura do processo penal que, assim, há-de assentar na ideia força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada”, donde “resultariam muitas outras consequências, como de que todo o acusado tem o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular, a comunicação ao acusado, em tempo útil, de todas as provas contra ele reunidas a fim de que possa preparar eficazmente a sua defesa, o dever do Ministério Público de apresentar em tribunal todas as provas de que disponha, etc., etc. (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 2000, pp.
82; vide também Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pp.
64-68) – o certo é que não se poderá dizer, pelas razões já atrás aduzidas, que o prazo peremptório de 15 dias para o recorrente motivar o recurso seja desrazoável ou desporporcionado para o asseguramento real e efectivo das garantias de defesa de uma pessoa tida como inocente, aqui consubstanciadas essencialmente, no exercício do direito de contraditório, em sede de recurso, das provas produzidas em julgamento e do juízo valorativo que sobre elas efectuou o tribunal.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 411º, n.ºs 1 e
3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual ao prazo de 15 dias aí previsto para a interposição e motivação do recurso não acresce o prazo de 10 dias a que se refere o artigo 698º, n.º 6, do Código de Processo Civil, em
caso de recurso que tenha por objecto a reapreciação de prova gravada;
b) negar provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente nas custas fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 15 de Julho de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos