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Processo n.º 803/03 Plenário Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O Ministério Público vem recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, da sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa (5.º Juízo), de 25 de Setembro de 2003, dizendo que esta “desaplicou o normativo inserto no artigo 29º, alínea e), do DL n.º 40/95, de 15 de Fevereiro, por, pretensamente, violar o determinado nos artigos 168º, n.º 1, alínea s), e 240º, n.ºs 1 e 3”, da Constituição da República Portuguesa, na versão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro, com este fundamento tendo julgado improcedente a impugnação deduzida por A. contra a liquidação, no montante de 9330$00, de taxa de ocupação da via pública (por um armário de distribuição telefónica) relativa ao ano de 1995, que lhe fora efectuada pela Câmara Municipal de Lisboa, nos termos do artigo 16º, n.º 3, da Tabela de Taxas e outras Receitas Municipais do Município de Lisboa para 1995. Determinada a produção de alegações, concluiu assim o recorrente:
«1 – Não se situa no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a definição do regime particular e específico de cada taxa municipal, nada obstando a que, em decreto-lei, desprovido de credencial parlamentar, se estabeleça uma pontual isenção de certa taxa, em benefício de entidade concessionária do Serviço Público de Telecomunicações.
2 – Não viola o princípio material da autonomia financeira das autarquias locais tal regime legal, já que se não mostra afectado o núcleo essencial de tal autonomia, tal como decorre do actual artigo 238º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade – material e orgânica – da norma que integra o objecto do presente recurso.” Por seu lado, a Câmara Municipal de Lisboa contra-alegou defendendo o decidido na 1ª instância, e concluindo:
«I. A concepção de organização do Estado consagrada na Lei Fundamental define as autarquias locais como pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas, as quais têm património e finanças próprios, sendo que as receitas próprias destas incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços, podendo estas dispor de poderes tributários, nos casos e termos previstos na lei. II. A Lei das Finanças Locais (1/87) estabelecia nas als. d) do n.º 3 do art.º
1º, g) do n.º 1 do art.º 4º, e c) do art.º 11º que o Município podia gerir o património autárquico, cobrar taxas por qualquer licença da sua competência ou podia autorizar a ocupação da via pública, competindo à respectiva Assembleia Municipal estabelecer essas taxas municipais e fixar os respectivos quantitativos sob proposta ou autorização da Câmara. III. O Município exerce um direito que lhe foi legalmente atribuído, ao exigir que a utilização do domínio público municipal dependa de um acto de autorização que só a si lhe compete proferir e pelo qual o sujeito que retira especiais vantagens de tal acto deve pagar as taxas correspondentes, que constituem receitas próprias, no exercício dos poderes tributários constitucionalmente conferidos, nos termos do n.º 4 do artigo 238º da CRP. IV. Os Regulamentos têm assegurada a sua legalidade e constitucionalidade, nos termos dos art.ºs 235º, 238º e 241º, todos da CRP, e da própria Lei das Finanças Locais. V. Compete aos municípios a criação de taxas no âmbito da Lei n.º 1/87 (no qual se estabelece o regime geral das taxas), a qual estabelece no seu art.º 27º quais as isenções que devem ser respeitadas. VI. Aquela norma isentora deve ser entendida como definição taxativa, porquanto dessa mesma tipologia decorre uma perda de receitas para os municípios, para além do facto de que apenas poderia ser alterada pelo próprio Parlamento ou pelo Governo sob autorização, o que, como vimos, não sucedeu. VII. O contrato administrativo consubstanciado no Decreto-Lei n.º 40/95 foi celebrado entre o Estado e a A., [e] não pode por isso vincular o Município de Lisboa que para tal não foi ouvido. VIII. O artigo 29º do Decreto-Lei n.º 40/95, altera os meios de financiamento das autarquias locais, sem que detenha para tal autorização legislativa, e criando direitos para a A.:
- Isenta a A. de pagamento de quaisquer taxas e outros encargos ao Recorrido, logo altera o seu regime de finanças locais;
- Disponibiliza o domínio público cuja propriedade e gestão pertence ao Recorrido, alterando o regime dos bens do seu domínio público. IX. Concluímos (tal como a decisão judicial, ora recorrida), que um decreto-lei governamental não poderia, sem invadir a competência legislativa reservada da Assembleia da República e sem que violasse o regime de autonomia patrimonial, constitucionalmente consagrado (art.º 238º, n.º 3), cassar receitas patrimoniais
às autarquias ou inovar em relação ao que se dispõe na Lei das Finanças Locais em matéria de licenciamentos do uso privativo do domínio público (ocupação da via pública). X. É mister considerar que sendo competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais e ainda a definição e regime dos bens do domínio público, o Contrato de Concessão ora em apreço viola indiscutivelmente o art.º 165º, n.º 1, als. q) e v), e 238º, n.ºs 1, 3 e 4, da CRP, padecendo de inconstitucionalidade o artigo 1º do DL n.º 40/95 e a al. e) do art.º 29º, ao estabelecer obrigações para o recorrido o qual não foi parte na celebração de tal contrato administrativo. Termos em que deve o presente recurso improceder, mantendo-se a sentença recorrida e declarando-se a inconstitucionalidade orgânica e material da norma do art.º 29º, al. e), constante do anexo do DL n.º 40/95, de 15 de Fevereiro, bem como do art.º 1º do mesmo diploma, fazendo-se assim a devida JUSTIÇA.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação
2.A questão a decidir no presente recurso, interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, é a de saber se a norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15 de Fevereiro, que aprovou as bases da concessão do serviço público de telecomunicações, é inconstitucional, como decidiu o tribunal recorrido. A norma cuja conformidade à Constituição se questiona neste recurso – relativa aos “direitos da concessionária” do serviço público de telecomunicações – tem a seguinte redacção:
“Artigo 29º
(Direitos da concessionária) Pelo contrato de concessão é a concessionária expressamente investida nos seguintes direitos:
(…) e) Ocupar e utilizar, nos termos fixados na lei, as ruas, praças, estradas, caminhos e cursos de água, bem como terrenos ao longo dos caminhos de ferro e de quaisquer vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e de quaisquer outros encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação das infra-estruturas de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão;
(…)” Segundo a decisão recorrida, esta norma violaria os artigos 168º, n.º 1, alínea s) e 240º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, na versão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro (correspondentes actualmente aos artigos 165º, n.º 1, alínea q), e 238º, n.ºs 1 e 3). Por sua vez, a recorrida invocou ainda, nas suas alegações no presente recurso, a violação, pela norma em apreço, dos artigos 165º, n.º 1, alínea v) (correspondente, em 1995, ao artigo
168º, n.º 1, alínea z)) e 238º, n.º 4, da Constituição.
3.Importa começar por apurar se este Tribunal poderá conhecer do recurso. Ora, está fora de dúvida que na decisão recorrida se verificou uma recusa de aplicação da norma em causa, com fundamento na sua inconstitucionalidade, constituindo tal recusa de aplicação a ratio decidendi para o tribunal a quo: isto é, para a decisão de improcedência da impugnação contra a liquidação, pela recorrida, de taxa de ocupação da via pública (por um armário de distribuição telefónica) relativa ao ano de 1995. Tanto basta para se poder concluir que estão preenchidos os requisitos específicos do tipo de recurso interposto. Designadamente, afigura-se irrelevante, para tal efeito, que a recente “Lei das Comunicações Electrónicas”
(Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, que estabeleceu o “regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações electrónicas e aos recursos e serviços conexos”, e, entre outros diplomas, revogou a Lei n.º 91/97, de 1 de Agosto) tenha vindo prever a possibilidade de estabelecimento de uma “taxa municipal de direitos de passagem” – taxa, esta, com origem nos “direitos e encargos relativos à implantação, passagem e atravessamento de sistemas, equipamentos e demais recursos das empresas que oferecem redes e serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, em local fixo, dos domínios público e privado municipal” –, logo fixando os princípios a que tal taxa deve obedecer (artigo 106º, n.º 2) e a sua discriminação nas facturas dos clientes finais de comunicações (n.º 3). A previsão por este diploma da possibilidade de fixação de tal taxa municipal em nada pode, na verdade, afectar o conhecimento do presente recurso, que se reporta a uma decisão que efectivamente recusou a aplicação da norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, num processo em que estava em causa uma taxa relativa a 1995.
4.Está em causa a alegada violação, por um lado, de normas relativas à competência legislativa, que reservavam à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre “[e]statuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais” e sobre “[d]efinição e regime dos bens do domínio público”. Para além desta inconstitucionalidade orgânica, é invocada a inconstitucionalidade material da norma em apreço, por violação da norma constitucional (artigo 238º) que prevê que as “autarquias locais têm património e finanças próprios” e que as “receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços” (bem como, ainda, no n.º 4, que as “autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”). Antes ainda de começar a tratar da referida inconstitucionalidade orgânica, e contendendo a norma em causa com a cobrança de tributos pelos municípios pela ocupação do domínio público, cumpre recordar que logo a Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças locais) previu, no seu artigo 11º, que os municípios poderiam cobrar taxas por “ocupação do domínio público e aproveitamento dos bens de utilização pública” (isentando-se, porém, no artigo 27º, n.º 1, o “Estado e seus institutos e organismos autónomos personalizados (…) do pagamento de todas as taxas e encargos de mais-valias devidos às autarquias locais”). Foi durante a vigência desta Lei das Finanças Locais que veio a ser aprovado o Decreto-Lei n.º 40/95, onde se enquadra a norma ora em causa. Este Decreto-Lei, inserido no “processo de reorganização e reestruturação do sector das comunicações em Portugal”, veio aprovar, em anexo, as “bases da concessão do serviço público de telecomunicações”, visando “estabelecer um claro quadro definidor”, no qual se enquadrava, entre os direitos da concessionária previstos, o direito, previsto na norma impugnada, de ocupação e utilização, nos termos fixados na lei, de vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e de outros encargos, “sempre que tal se mostre necessário à implantação das infra-estruturas de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão”. Posteriormente, também a citada Lei n.º 91/97, de 1 de Agosto – que veio definir bases gerais a que obedece o estabelecimento, gestão e exploração de redes de telecomunicações e a prestação de serviços de telecomunicações –, previu, no seu artigo 13º, sob a epígrafe “isenção de taxas”, que os “operadores de redes básicas de telecomunicações estão isentos do pagamento de taxas e de quaisquer outros encargos, pela implantação das infra-estruturas de telecomunicações ou pela passagem das diferentes partes da instalação ou equipamento necessário à exploração do objecto de concessão da respectiva rede”. Esta norma, contida numa lei parlamentar, repetia, pois, a previsão da isenção já constante do artigo
29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, embora não apenas para a concessionária do serviço público de telecomunicações, e antes para os
“operadores de redes básicas de telecomunicações”. Nos termos do artigo 12º desse diploma, ao Estado compete “assegurar a existência, disponibilidade e qualidade de uma rede pública de telecomunicações endereçadas, denominada «rede básica», que cubra as necessidades de comunicação dos cidadãos e das actividades económicas e sociais no conjunto do território nacional e assegure as ligações internacionais, tendo em conta as exigências de um desenvolvimento económico e social harmónico e equilibrado”. Esta rede básica, que constitui “bem do domínio público do Estado”, deve “funcionar como uma rede aberta”, sendo assegurada a sua utilização por todos os operadores de telecomunicações em igualdade de condições de concorrência, e é composta pelo “sistema fixo de acesso de assinante, pela rede de transmissão e pelos nós de concentração, comutação ou processamento, quando afectos à prestação do serviço fixo de telefone” integrado no serviço universal de telecomunicações (artigo 12º, n.ºs 2, 4 e 5, e artigo 8º dessa Lei). Mais tarde, a Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, que aprovou uma nova Lei das Finanças Locais, manteve, no seu artigo 19º, alínea c), a previsão da possibilidade de os municípios cobrarem taxas por “ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública”, bem como a referida isenção do “Estado, seus institutos e organismos autónomos personalizados” (artigo 33º, n.º 1). Por último, como já se referiu, a recente Lei das Comunicações Electrónicas veio prever a possibilidade de estabelecimento de uma “taxa municipal de direitos de passagem”, a pagar pelas empresas que oferecem redes e serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público.
5.Importa começar por averiguar se a norma em apreço enferma de inconstitucionalidade orgânica, por ter sido aprovada pelo Governo sem precedência de qualquer autorização legislativa. Com efeito, ainda que se entendesse que o citado artigo 13º da Lei n.º 91/97 veio, em lei parlamentar, reiterar, para os operadores de redes básicas de telecomunicações, a isenção que a norma em análise previa para a concessionária do serviço público de telecomunicações, eliminando, a partir daí, a questão da inconstitucionalidade orgânica – questão que pode deixar-se em aberto –, o certo
é que, no presente caso, a decisão recorrida se pronunciou sobre a aplicação da isenção logo no ano de 1995, e, portanto, anteriormente ainda a tal diploma de
1997. Pode, por outro lado, deixar-se também de parte a referência ao “regime geral das taxas”, incluída na competência parlamentar reservada pelo artigo 165º, n.º
1, alínea i), quer por a previsão dessa reserva datar apenas da IV revisão constitucional (aliás, não é invocado na decisão recorrida), sendo a norma em questão de 1995, quer por, manifestamente, não estar em causa nesta última a previsão de qualquer regime geral de taxas, mas apenas a introdução de uma determinada isenção para uma situação específica, na qual poderiam ser previstas taxas municipais. A inconstitucionalidade orgânica desse artigo 29º, alínea e), resultaria, segundo a decisão do tribunal a quo e a recorrida, de violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, na parte em que esta abrange, quer o regime das finanças locais, quer a definição e regime dos bens do domínio público. Quanto à primeira, salientou-se no Acórdão n.º 631/99 (publicado no Diário da República [DR], I série-A, de 28 de Dezembro de 1999):
“Desde a sua versão originária que a Constituição consagra o princípio da autonomia do poder local como um dos princípios fundamentais da organização do Estado (descentralizado) – artigos 6º, n.º 1, 237º, 242º (correspondentes aos actuais artigos 6º n.º 1, 235º e 241º). A autonomia financeira é pacificamente reconhecida como um pressuposto da autonomia local – sem a autonomia financeira, assente na independência financeira, compreendendo quer o domínio patrimonial quer a independência orçamental (cfr. Sousa Franco ‘As finanças das autarquias locais’, AAFDL, 1985, p. 14), não há condições para uma efectiva autonomia. Daí que, logo também na sua versão originária, a Constituição tivesse consagrado essa autonomia no artigo 240º, cujo conteúdo preceptivo se mantém nas versões de
82, 89 e 97 (nesta, artigo 238º, apenas com o aditamento do n.º 4, que atribui
às autarquias locais poderes tributários nos casos e nos termos previstos na lei). No âmbito da autonomia financeira, consagra a Constituição os princípios da justa repartição dos recursos públicos e da correcção das desigualdades a que há-de obedecer o regime das finanças locais (artigo 238º, n.º 2) regime este que, nos termos do mesmo preceito, constitui reserva de lei. Paralelamente, o artigo 165º, n.º 1, alínea q), da CRP integra na reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de regime das finanças locais que, significativamente, faz compreender no estatuto das autarquias locais (artigos 168º, n.º 1, alíneas s) e r), e 167º, alínea h), nas revisões de 89 e 82 e na versão originária, respectivamente).” O alcance da reserva de competência legislativa relativa ao regime das finanças locais pode, desde logo, ser problematizado, como se salientou no Acórdão n.º
4/2000 (publicado no DR, I série-A, de 5 de Fevereiro de 2000), quanto ao ponto de saber “se de tal regime fazem parte todos os aspectos da regulação sobre as finanças locais ou apenas os seus traços essenciais”. Este Tribunal já concluiu que integra o regime das finanças locais, para efeito da reserva de competência legislativa, a fixação pelo Governo da afectação de receitas de certas taxas municipais a uma determinada finalidade – no caso do Acórdão n.º 452/87, relativo a uma norma de um decreto-lei que fixava o destino das receitas camarárias provenientes de taxas de registo e licenciamento de cães
–, bem como o regime de apoios financeiros às autarquias. Foi este último o caso do Acórdão n.º 4/2000, onde se afirmou:
“seria sempre matéria de regime das finanças locais, no sentido previsto no artigo 165º, n.º 1, alínea q), uma regulação que versasse sobre apoios financeiros, pela necessária interferência desta com o modelo concreto de autonomia autárquica e mesmo que se referisse a apoios financeiros sem carácter contínuo e duradoiro. Assim, pelo facto de se estar perante um aspecto respeitante à disciplina do relacionamento financeiro entre as autarquias e o Governo Regional incorrer-se-á inevitavelmente no âmbito do regime das finanças locais.” Não é já, porém, de afirmar que todas as normas que delimitem possíveis fontes de receitas autárquicas, como as taxas, integrem o “regime das finanças locais” integrante da reserva parlamentar. Na verdade, a norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95 não prevê qualquer alteração ao “regime das finanças locais”, mas apenas, para determinada situação, uma isenção para uma possível fonte de receitas dos municípios. Ao contrário das hipóteses acima referidas, esta norma apenas indirectamente tem reflexo nas finanças locais – apenas pelo facto de excluírem a incidência em relação a uma determinada pessoa, numa situação específica que poderia ser objecto de taxa. Aliás, o direito de ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público que fundava a isenção prevista na norma em análise afigura-se revestir um cariz eminentemente funcional, ligado à qualidade de concessionária do serviço público de telecomunicações. A isenção de taxas e encargos por tal ocupação e utilização é, pois, resultado do regime jurídico do serviço público de telecomunicações, e não uma isenção de natureza tributária e pessoal, não residindo a sua fundamentação em quaisquer considerações ou razões financeiras, ou ligadas às finanças locais, mas nesse regime jurídico-administrativo. O “regime das finanças locais”, reservado à competência parlamentar, não pode, por outro lado, abranger toda a regulação material das possíveis fontes de receitas municipais, nos seus diversos aspectos. Para além de tal levar a incluir na reserva de competência da Assembleia da República todo o regime das taxas (ou, até, de outras fontes de receitas, mesmo não coactivas, das autarquias), um entendimento tão amplo do “regime das finanças locais”, que levasse a incluir nele, em globo, o regime das fontes de receitas autárquicas, dificilmente poderia – como, aliás, notou o recorrente, nas suas alegações – deixar de abranger igualmente os variados regulamentos locais que criam taxas a favor do município, fixando a sua incidência e o seu regime jurídico. Podendo a criação de múltiplas taxas – que constituem uma importante fonte de receitas municipais com reflexos nas “finanças locais” – ter lugar por regulamento, sem violação da reserva de competência relativa ao “regime das finanças locais”, terá de concluir-se que também a previsão, pelo legislador, de uma certa e determinada isenção, para uma empresa concessionária de serviço público, não viola essa reserva de competência.
6.Ainda em sede de inconstitucionalidade orgânica, sustenta a recorrida que a norma em causa, ao prever uma isenção de taxas pela ocupação e utilização do domínio público, estaria a invadir a competência reservada da Assembleia da República para estabelecer o regime dos bens do domínio público (artigo 168º, n.º 1, alínea z), da Constituição, na redacção em vigor em 1995), e, em particular, do domínio público das autarquias locais, reconhecido no artigo 84º, n.º 2, da Constituição, no qual se preceitua também que a lei define o “regime, condições de utilização e limites” deste limite público. Entende-se, porém, que a introdução de uma específica isenção de taxas e quaisquer outros encargos para ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público, quando que se mostrem necessárias à implantação das infra-estruturas de telecomunicações, para a passagem de diferentes partes da instalação ou para equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão do serviço público de telecomunicações, como a prevista na norma em apreço, não
é de considerar abrangida na reserva de competência da Assembleia da República, também na parte em que esta se refere à definição do regime dos bens do domínio público. Aceitar-se-á que a generalidade desses bens – designadamente, das vias de comunicação situadas no município – cuja ocupação e utilização é permitida, sem taxas e encargos, pela norma em análise, integra o domínio público (o artigo
84º, n.º 1, da Constituição, na sua alínea d), inclui neste, designadamente “as estradas”, e no caso vertente estava, justamente, em causa a ocupação da via pública), e o domínio público das autarquias locais. Todavia, seria precipitado considerar a previsão da isenção em questão como integrando a definição do
“regime dos bens do domínio público”, para efeitos da reserva de competência parlamentar. Na verdade, a presente norma não procede a qualquer “definição” dos bens que integram o domínio público – nem sequer quanto aos seus limites, como acontecia no recente Acórdão n.º 131/03 (publicado no DR, I série-A, de 4 de Abril de
2003), no qual se declarou inconstitucional um diploma da Assembleia da República que alterava a definição dos limites do domínio público marítimo efectuada , remetendo, em certas hipóteses, tal definição para os órgãos de governo das regiões autónomas). A norma do artigo 29º, alínea e), agora em causa, limita-se a, sem se ocupar de outras condições para a sua ocupação e utilização, prever uma isenção de taxas e demais encargos, justificada por aquelas se revelarem indispensáveis para o serviço público de telecomunicações. Poderá, na verdade, questionar-se, desde logo, que a definição do regime dos bens do domínio público que compete à Assembleia da República deva abranger todos os aspectos, gerais, especiais, e não essenciais (incluindo os encargos e taxas) da utilização de todos os bens que devam considerar-se integrantes do domínio público. A dúvida quanto a que a reserva de competência parlamentar em matéria de definição do regime e das condições de utilização dos bens do domínio público deva incluir mais do que a fixação desse regime “no que a dominialidade tem de essencial”, “nomeadamente quanto à regulamentação das condições de utilização dos bens”, não deixou, aliás, de transparecer nas duas declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 330/99 (publicado no DR, I série-A, de 1 de Julho de
1999), no qual estava em causa uma norma constante de diploma regional que autorizava a utilização, em determinados termos, dos leitos e fundos marinhos para extracção de areia. Para além disto, como se referiu também na fundamentação deste acórdão n.º 330/99, considerou-se neste aresto que a reserva parlamentar incluía a determinação das condições de utilização dos bens do domínio público – estas foram tidas como “parte integrante do regime daqueles bens” – por para essas condições valerem as “razões que levam a integrar a matéria atinente à definição e ao regime dos bens do domínio público na reserva de competência legislativa parlamentar – designadamente, a necessidade de preservar a integridade desses bens e o respeito pela sua afectação a finalidades de indiscutível interesse nacional”. Ora, é justamente a consideração destas razões que permite concluir pela exclusão da norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95 da reserva de competência da Assembleia da República, no que se refere aos bens do domínio público. Essa norma incide apenas sobre um particular aspecto da utilização das vias de comunicação. Ora, apesar de estas integrarem o domínio público, é de entender que nem toda a regulamentação relativa à sua ocupação ou utilização pode ser considerada como definição do regime dos bens do domínio público, para o efeito da competência parlamentar reservada. Assim, não se contesta que, apesar da norma em causa, a titularidade, o destino e a utilização das vias permanece com os municípios, não se dispondo, nem se autorizando qualquer verdadeira disposição das vias municipais. Nem se contesta, por outro lado, que a norma em causa se refere apenas a uma específica ocupação e utilização, e na medida em que estas sejam indispensáveis para as infra-estruturas de telecomunicações, para a passagem da instalação ou para equipamentos necessários à concessão do serviço público de telecomunicações. A dispensa de taxas ou encargos prevista no artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95 tem lugar, na verdade, no quadro da concessão do serviço público de telecomunicações, apenas para a concessionária e para esta limitada utilização, e visando a prossecução de um interesse público que transcende o
âmbito das autarquias locais, consistente na manutenção de um serviço público de telecomunicações de âmbito nacional, que poderia ser dificultado pelo estabelecimento de condições diferenciadas de exploração em cada autarquia, e cuja concessão é naturalmente negociada e decidida pelo Governo. Diversamente da que foi apreciada no acórdão n.º 330/99, a norma em questão não implica que se autorize qualquer afectação da integridade dos bens, nem define as condições para a utilização destes, antes estabelece, apenas, na parte em questão, a isenção de taxas e de outros encargos para uma sua específica “afectação a finalidades de indiscutível interesse nacional”, pela ocupação e utilização das vias municipais, em todo o território, por parte do concessionário do serviço público de telecomunicações – sendo certo, aliás, que, como se referiu, as infra-estruturas e instalações em causa, quando integrarem a “rede básica de telecomunicações”, farão parte do domínio público, não das autarquias locais, mas do Estado. Com estes limitados âmbito, finalidade e conteúdo, a previsão pelo Governo da isenção de taxas e encargos em questão não é de considerar como violadora da reserva de competência para a definição do “regime dos bens do domínio público”.
7.Tendo-se concluído pela inexistência de inconstitucionalidade orgânica na norma em apreço, cumpre passar, agora, à análise dos fundamentos da sua alegada inconstitucionalidade material, por violação da autonomia financeira e patrimonial das autarquias locais, tal como está consagrada no artigo 238º, n.ºs
1 e 3, da Constituição. Dispõem estas normas, respectivamente, que “[a]s autarquias locais têm património e finanças próprios” e que as “receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços.” É com elas – e com a garantia de autonomia local que delas deflui – que há que confrontar o artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15 de Fevereiro
(quanto ao confronto com o n.º 4 do artigo 238º da Constituição, também invocado pela recorrida, afigura-se que pode ser liminarmente excluído, pois esta norma apenas prevê que as autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei, não se vendo em que é que esta possibilidade de virem a ser atribuídos poderes tributários aos municípios, aliás a exercer e conformar pelo legislador, é posta em causa pela isenção constante da norma em apreço). O Tribunal Constitucional teve já por várias vezes ocasião de se pronunciar sobre o alcance da garantia constitucional da autonomia local, na sequência, também, da Comissão Constitucional (para indicações, v., por todos, Artur Maurício, A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, in Estudos em homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa, Lisboa, 2003, págs. 625 e segs.). No Acórdão n.º 432/93 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., págs. 37 e segs.), o Tribunal Constitucional não se pronunciou pela inconstitucionalidade de normas que atribuíam ao Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, no âmbito de um programa de construção de habitações económicas, competência, além do mais, para emitir licenças de utilização das habitações construídas, afirmando que essas normas versavam matérias que “respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em Estado”, e “transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local”. Afirmou-se nesse aresto:
«1.2 - As autarquias locais concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um “âmbito de democracia”
(Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adopção das decisões colectivas que a afectam. A Constituição define-as como “pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas” (cf. C.R.P., artigo 237º). Não lhes traça um figurino de mera administração autónoma do Estado. Deixa claro “sentido político que adquire o exercício das suas funções” (Jorge Miranda), que as autarquias “constituem também uma estrutura do poder político” (Gomes Canotilho e Vital Moreira). No programa constitucional (cf. C.R.P., Princípios Fundamentais, artigo 6º, e Título VII, Poder Local), as normas que organizam o poder autárquico assumem uma justificação eminentemente democrática. O poder autárquico funda-se numa ideia de consideração e representação aproximada de interesses. Como explica Ruiz Miguel, na justificação democrática da autonomia não é só o factor geográfico que está em causa. Trata-se também da razão política de fomentar as decisões susceptíveis de maior preferência e de maior controlabilidade pelos interessados. Neste “espaço de participação” (Baptista Machado), o elemento ordenador é o conjunto dos interesses específicos das comunidades locais. Esses interesses justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização. O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e “assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria (...und von dieser örtlichen Gemeinschaft eigenverantwortlich und selbständig bewältigt werden können)” (Sentença do Tribunal Constitucional alemão nº 15, de 30 de Julho de 1958, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 8º volume, pág. 134; cf., no mesmo sentido, Parecer n.º 3/82 da Comissão Constitucional in Pareceres da Comissão Constitucional, 18º volume, pág. 151).» Mais recentemente, no Acórdão n.º 260/98, o Tribunal Constitucional veio a julgar inconstitucionais normas que versavam a regularização das dívidas dos municípios à B., concluindo a “falta de pagamento, por parte de uma autarquia local, de uma dívida de um contrato com uma empresa pública não pode dar lugar a uma tutela substitutiva que antecipe cautelarmente o que a outra parte pode obter através dos tribunais”. Não existe, porém, qualquer pronúncia sobre a autonomia financeira das autarquias locais na vertente da fixação do regime de obtenção de receitas relativas ao seu património – designadamente, da afectação de tais receitas pela previsão de isenções de taxas por essa utilização.
8.Importa, porém, recordar que problema semelhante se pôs já na jurisdição constitucional estrangeira. Assim, o Tribunal Constitucional Federal alemão apreciou, em 7 de Janeiro de 2000, uma queixa constitucional apresentada por várias autarquias – entre as quais as cidades de Munique e Wiesbaden – contra o
§ 50, n.ºs 1, 3 e 4, da Lei de Telecomunicações Federal, que reconhecia um direito de utilização gratuita das vias públicas para as instalações de linhas de telecomunicações (caso “Fernmeldeleitungen”, em Computer und Recht, 1999, págs. 431 e segs.). Depois de reconhecer que a legitimidade para a utilização das vias para o fim em causa competia à Federação, podendo por ela ser exercida ou atribuída mediante licença, o Tribunal tratou do problema da violação da garantia da auto-administração autárquica (“gemeindliche Selbstverwaltung”), prevista no artigo 28º, n.º 2, da Lei Fundamental, resultante da circunstância de os proprietários das vias públicas não poderem exigir qualquer remuneração pela utilização, e concluiu que o âmbito de protecção daquela garantia não é ofendido pelas normas impugnadas. Para isso, salientou que esta garantia “assegura às autarquias um domínio de competência que em princípio abrange todos os assuntos da comunidade local, bem como a legitimidade para a condução auto-responsável dos assuntos neste domínio”, sendo, porém, necessária uma conformação, pelo legislador, do âmbito da auto-administração. Depois disto, o Tribunal Constitucional Federal alemão verificou que a norma que previa um direito de utilização gratuita “não retira às autarquias qualquer competência no domínio da prestação de serviços a nível local”, nem a possibilidade de condução autónoma dos assuntos da autarquia quanto à administração das vias públicas, pelo menos, de forma a ofender o âmbito de protecção da “garantia de auto-administração” – como poderia acontecer, por exemplo, se o legislador fixasse directamente instruções para a forma e modo de exercício da competência, ou determinasse certa forma de exercício desta, com um conteúdo específico. Quanto à autonomia ou autoridade financeira (“Finanzhoheit”) das autarquias, o Bundesverfassungsgericht não a considerou afectada, na medida em que esta assegura apenas a gestão própria das finanças e do património local globalmente considerados, mas não garante “posições patrimoniais individualmente consideradas”, e o “§ 50, n.º 1, da Lei das Telecomunicações apenas afecta as autarquias na obtenção de receitas a partir de uma determinada utilização de certos objectos patrimoniais específicos”. Essa norma impede apenas a obtenção de receitas pela passagem de instalações de telecomunicações, sendo, porém, que
“permanece em geral intocada a possibilidade de fruição económica do património da autarquia, quanto a tudo o resto”, sem afectar a “constituição financeira das autarquias”. Com este fundamento, o Tribunal Constitucional Federal alemão considerou a queixa constitucional improcedente.
9.Também quanto à norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de
15 de Fevereiro, ora em causa, se impõe a conclusão de que ela não viola, nem a autonomia financeira, nem a garantia de obtenção de receitas a partir do património das autarquias locais. Importa começar por notar que está em causa a prossecução de uma indiscutível finalidade pública – assegurar a existência de um serviço público de telecomunicações (cfr. o artigo 8º, n.º 1, da citada Lei n.º 91/97, segundo o qual ao Estado incumbe assegurar a existência e disponibilidade de um serviço universal de telecomunicações) – com clara relevância constitucional, e que tem de ser prosseguida a nível nacional. Ainda que não expressamente autonomizada como incumbência do Estado – ao contrário do que acontece noutras Constituições (assim, na Lei Fundamental alemã, onde a própria estrutura federal do Estado torna necessária uma norma como o artigo 73º, n.º 7, que atribui à Federação competência exclusiva em matéria de telecomunicações) – a manutenção, ou a criação de condições para a existência, de um serviço público de telecomunicações constitui uma forma de prossecução de objectivos com relevância constitucional. Assim, desde logo, está implicada na dimensão organizatória e prestacional indispensável ao exercício da liberdade de comunicação – embora o artigo 34º, n.º 4, da Constituição se limite a garantir a inviolabilidade das comunicações –, e, designadamente, é um meio importante para o desempenho de tarefas fundamentais do Estado como promover “o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”, e como promover “o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional”
(artigo 9º, alíneas d) e g), da Constituição), para além de se enquadrar na prossecução de várias incumbências prioritárias do Estado no âmbito económico e social (assim, por exemplo, as das alíneas a), d), e), h) e j) do artigo 81º da Constituição). A existência e a disponibilidade de um serviço público de telecomunicações de
âmbito nacional corresponde, pois, a um interesse público que transcende o
âmbito das autarquias locais. Trata-se, também aqui, de uma matéria que respeita
“ao interesse geral da comunidade constituída em Estado”, e que ultrapassa “o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local”. Isto, sobretudo, se se considerar que a exploração, em concessão, de um serviço público de telecomunicações de âmbito nacional seria com certeza dificultada – ou mesmo impossibilitada – pelo estabelecimento de condições diferenciadas em cada âmbito autárquico, sendo certo, por outro lado, que a concessão do serviço público, e suas condições, são naturalmente negociadas e fixadas pelo Governo. Para além desta indiscutível afectação a finalidades de âmbito e interesse nacional, que ultrapassam o universo próprio das comunidades locais, não pode dizer-se que a garantia da autonomia financeira, ou, sequer, da obtenção de receitas a partir do património municipal seja lesada pela norma em causa. Desde logo, pode duvidar-se de que, quando a Constituição inclui entre as receitas próprias das autarquias locais “obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património” esteja a reservar para estas a fixação de todas e quaisquer condições de utilização de bens como as vias públicas. Tal garantia contra o desvio das receitas do património municipal, a aplicar-se à obtenção de receitas pela ocupação da via pública, não inclui, porém, certamente, uma reserva absoluta de competência dos órgãos municipais para a definição do regime das taxas municipais. A autonomia financeira pressupõe que as autarquias tenham orçamento e receitas próprias, as quais não podem ser desviadas ou afectadas concretamente no exercício de uma tutela por parte do Estado. Para além disso, as autarquias dispõem de património próprio, que podem gerir e fruir livremente. Mas não resulta daqui uma garantia de todas e quaisquer posições patrimoniais contra a fixação, pelo Estado e na prossecução das suas incumbências próprias, do regime de utilização de bens como as vias públicas, tal como não pode resultar dessas garantias uma reserva de competência para todo o regime das taxas municipais. Ponto é que o conteúdo ou núcleo essencial da autonomia local não seja afectado. E este núcleo ou conteúdo essencial é preservado pela norma em análise. Tal como no citado caso decidido pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, também a isenção prevista na norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95 apenas afecta as autarquias na obtenção de receitas a partir de uma determinada utilização de certos objectos patrimoniais específicos: pela passagem de instalações de telecomunicações pela via pública, mas “permanece em geral intocada a possibilidade de fruição económica do património da autarquia, quanto a tudo o resto”, sem se afectar a “constituição financeira das autarquias”. Não existe, pois, violação dos artigos 238º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República.
10.Conclui-se, assim, que a norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º
40/95, de 15 de Fevereiro, não padece, nem de inconstitucionalidade orgânica, nem de inconstitucionalidade material, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso.
III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15 de Fevereiro; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Luís Nunes de Almeida