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Processo n.º 208/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., arguido no processo de inquérito n.º 447/01-9JDLSB e submetido, nesse processo, à medida de coacção de prisão preventiva, requereu a sua imediata restituição à liberdade, alegando estar excedido o prazo máximo da prisão preventiva na fase de inquérito.
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho judicial, datado de 7 de Novembro de 2003:
“Ao arguido foi aplicada a prisão preventiva, (...), em 6-11-2002 (e não em
5-11-2002, data em que foi detido para o referido acto). Por despacho de fls.
1334, foi declarada a especial complexidade do inquérito, elevando-se o período de prisão preventiva para 12 meses (...). Foi-lhe deduzida acusação em 5-11-2003
(à noite), recebida em 6-11-2003, pelas 17 horas. Assim, a acusação foi deduzida dentro do prazo de 12 meses, pelo que a prisão preventiva não se extinguiu, razão pela qual se indefere o requerido”.
O recorrente impugnou esse despacho em recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa. Concluiu, além do mais, o seguinte:
“1ª- O recorrente foi detido para 1º interrogatório no dia 5-11-2002 e viu confirmada a prisão preventiva por despacho de 6-11-2002.
2ª- Nos termos do disposto no art. 215º n.º 3 do CPP, o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de 12 meses no caso concreto.
3ª- O prazo máximo da prisão preventiva verificou-se às 24 horas do dia
5-11-2003.
4ª- Pelo que deveria ter sido restituído à liberdade, mesmo depois de já ter sido deduzida acusação.
5ª- O que é certo é que o arguido esteve ilegalmente preso por a acusação não ter conseguido cumprir o prazo de 12 meses.
6ª- Motivo que não é imputável ao arguido.
7ª- Na dúvida, deve operar o princípio in dubio pro libertatis e desse modo, não obstante já se estar noutra fase processual, restituir-se o arguido à liberdade.
8ª- Esta é a melhor interpretação a dar aos arts. 215º e 217º do CPP, sob pena de dando-se outra, a mesma contender com o preceituado nos arts. 27º e 28º da CRP. Defende que o despacho recorrido incorreu em violação do disposto nos arts. 215º e 217º, do CPP, e 27º e 28º, da CRP.”
Por acórdão de 11 de Fevereiro de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu “rejeitar o recurso interposto pelo arguido, por manifesta improcedência”.
2. Deste acórdão interpôs o recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 25/82, de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“O douto acórdão recorrido interpretou o artigo 215 n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Penal com o sentido de que o início da prisão preventiva, para efeitos da contagem do prazo para a sua extinção (art.º 217 n.º 1 do CPP), se conta a partir do dia em que a prisão preventiva foi judicialmente decretada. Esta interpretação, diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas do art.º 27º e 28º, n.º 4, nega garantias de defesa e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18º, todos da Constituição da República Portuguesa. A interpretação que melhor se coaduna com aqueles comandos constitucionais deve ser aquela que, para efeitos da contagem do prazo para os efeitos do art.º 215º e 217º do C.P.P., leve em conta o(s) dia(s) em que o arguido esteve detido previamente ao decretamento da medida de coacção prisão preventiva. Ainda, o douto acórdão da Relação de Lisboa interpretou o artigo 215º n.º 1 e n.º 3 do CPP com o sentido de que a dedução da acusação, momento previsto para o fim de determinada fase processual, deve ser o dia em que a mesma foi elaborada
à noite pelo seu signatário, independentemente da sua recepção pela secretaria no dia seguinte e fora do seu horário de funcionamento. Esta interpretação, diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas do art.º 27º e 28º, n.º 4, nega garantias de defesa previstas no art.º
32º e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18º, todos da Constituição da República Portuguesa. A interpretação que melhor se coaduna com aquele comando constitucional deve ser aquela que, para efeitos da dedução de acusação, este momento coincida com a efectiva recepção pela secretaria daquela peça processual e de forma a que o arguido possa logo dela tomar conhecimento.”
Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações, em que conclui:
“1. O recorrente foi detido em 5.11.2003 para ser presente a primeiro interrogatório judicial.
2. Em 6.11.2003, veio, no âmbito do mesmo processo, a ser sujeito á medida de coacção prisão preventiva.
3. O processo foi entretanto declarado de excepcional complexidade.
4. Em 5.11.2004 [2003], foi pela Srª Procuradora Adjunta no Tribunal de Loures, concluído a acusação (à noite como se colhe da última folha da acusação).
5. Em 6.11.2004 [2003] foi, pelas 17 horas, a acusação recebida pela secretaria.
6. Do princípio constitucional afirmado pelo n.º 4 do artigo 28º da Constituição da República Portuguesa decorre que os prazos legais da prisão preventiva - para além de deverem revelar-se proporcionais e adequados à natureza excepcional de tal medida de coacção – não podem conter períodos de que decorra a ampliação da duração máxima da medida de coacção, privativa da liberdade, aplicada ao arguido.
7. Tal princípio constitucional implica que, uma vez consumado o prazo máximo da prisão preventiva, estabelecido na lei para certa fase processual, a medida se extingue imediatamente, devendo o arguido ser logo posto em liberdade.
8. É incompatível com o princípio constitucional da sujeição da prisão preventiva aos prazos previstos na lei e interpretação normativa dos artigos
215º e 217º, n.ºs 1 e 2, que admite que não seja tido para os efeitos previsto nestas normas, o tempo de detenção que o recorrente sofreu previamente à aplicação da prisão preventiva.
9. Contende frontalmente com o princípio constitucional da sujeição da prisão preventiva aos prazos máximos previsto nos artigos 215º e 217º do C.P.P., a interpretação dada pelo douto acórdão recorrido que admite que data da acusação, para os efeitos de se saber qual o fim da prisão preventiva a essa fase correspondente, é o dia em que aquela é elaborada independentemente de quando é que chega ao processo. Violaram-se os seguintes artigos 18º, 27º, 28º e 32º da CRP.
O Ministério Público contra-alegou , concluindo nos termos seguintes:
“1º.- O arguido não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, a questão da constitucionalidade que apenas delineou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, referentemente à interpretação do artigo 215º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, reportado ao momento em que se considera deduzida a acusação.
2º - Na verdade, face ao teor literal do artigo 215º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, que se reporta expressamente ao momento em que “tenha sido deduzida acusação”, era previsível que a Relação considerasse relevante, para este efeito, a data aposta em tal peça acusatória (cuja fidedignidade o arguido não controverte) e não qualquer outro termo ou vicissitude processual posterior.
3º - Assente, deste modo, face ao não conhecimento de tal questão, que a data em que foi deduzida a acusação corresponde ao dia 5 de Novembro de 2003, nos termos decididos pela Relação, torna-se inútil o conhecimento da outra questão de constitucionalidade suscitada pelo arguido, já que se não mostra excedido o prazo máximo de duração da prisão preventiva, mesmo que se atenda à data em que ocorreu a detenção cautelar prévia do arguido (5/11/02).
4º - De qualquer modo – e a título subsidiário – considera-se que a interpretação normativa, acolhida pela Relação no acórdão recorrido, ao considerar que os prazos previstos no artigo 215º do Código de Processo Penal apenas se iniciam no momento em que foi judicialmente imposta ao arguido a medida de coacção da prisão preventiva, não valorando, para este efeito, o prazo
– constitucional e legal – de 48 horas para apresentação ao juiz do arguido detido – sem que, todavia, tal implique a criação de qualquer “hiato” na situação do arguido, referente à privação de liberdade, nem qualquer ampliação desta que exceda as referidas 48 horas, não viola os artigos 27º, 28º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
5º - Termos em que sempre seria de julgar improcedente o recurso.”
Notificado para responder à questão obstativa ao conhecimento do objecto do recurso suscitada pelo Ministério Público, o recorrente sustenta a sua improcedência.
3. Cumpre conhecer, em primeiro lugar, desta questão prévia.
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1do artigo 70º da LTC, pelo que, como resulta deste preceito e do nº2 do artigo 72º, a regra é a de que só poderá conhecer-se dele se o recorrente tiver suscitado as mesmas questões de inconstitucionalidade normativa “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela[s] conhecer”.
Lembremos os traços essenciais da situação de facto de que emergem as questões de constitucionalidade que, no presente recurso, se submetem ao Tribunal Constitucional:
- O recorrente foi detido para interrogatório no dia 5 de Novembro de
2002;
- Foi-lhe imposta a medida de coacção de prisão preventiva por despacho judicial de 6 de Novembro de 2002;
- O Ministério Público deduziu acusação contra o recorrente, datando-a nos seguintes termos: “Loures, 2003-11-05 (à noite, processo complexo)”;
- A secretaria lavrou termo de recebimento do processo do seguinte teor:
“Rec:2003-11-6, pelas 17 horas”.
A pretensão do arguido (ora recorrente) de ver cessada essa medida por ter sido excedido o prazo máximo no caso permitido (12 meses, aspecto indiscutido) assentou nas seguintes premissas jurídicas, ambas rejeitadas pelo juiz de instrução, e que consubstanciam outras tantas questões colocadas ao Tribunal da Relação, no âmbito da aplicação do disposto nos artigos 215º e 217º do Código de Processo Penal :
- O prazo conta-se a partir do momento da detenção e não do despacho judicial que aplica a medida de prisão preventiva; terminava, portanto, a 5 de Novembro de 2002;
- A acusação considera-se deduzida a 6 de Novembro, porque aquilo que, para o efeito, releva é a data do recebimento do processo pela secretaria e não aquela que o seu autor lhe apôs.
Trata-se de questões autónomas, relativamente à interpretação das disposições conjugadas do n.º 1, alínea a) e do n. º 3 do artigo 215º, que se centram:
- A primeira, no segmento normativo “desde o seu início”;
- A segunda, no segmento normativo “sem que tenha sido deduzida acusação”.
Autonomia que conservam para efeitos do presente recurso de fiscalização concreta, como o recorrente reconhece ao convocar o Tribunal Constitucional a apreciar a constitucionalidade das seguintes normas:
- A interpretação normativa “dos artigos 215º e 217º, n.ºs 1 e 2, que admite que não seja tido [em conta] para os efeitos previsto(s) nestas normas, o tempo de detenção que o recorrente sofreu previamente à aplicação da prisão preventiva”;
- A interpretação que admite que “a data da acusação, para os efeitos de se saber qual o fim da prisão preventiva a essa fase correspondente, é o dia em que aquela é elaborada independentemente de quando é que chega ao processo”.
Já se deixa ver que a resposta desfavorável ao recorrente em qualquer destes pontos – que, afinal, se convertem na identificação do termo inicial e do termo final, respectivamente, do prazo máximo de prisão preventiva, nesta fase – é suficiente para o naufrágio da sua pretensão. Se o prazo se inicia com o despacho judicial, subsequente ao interrogatório, que coloca o arguido em prisão preventiva, a acusação, ainda que devesse atender-se à data do seu recebimento pela secretaria, foi deduzida a tempo (no último dia do prazo máximo de prisão preventiva, nesta fase). Se o relevante, quanto ao momento em que a acusação se considera deduzida, é a data que dela consta (5 de Dezembro), então a duração máxima da medida de coacção não foi excedida, ainda que o dies a quo seja o da detenção cautelar prévia. De modo breve: ao recorrente só o sucesso (cumulativo) nas duas questões aproveita.
Ora, pelo menos quanto àquela segunda questão de constitucionalidade, como sustenta o Ministério Público, não pode considerar-se ter havido suscitação, em termos processualmente adequados, durante o processo.
Efectivamente, com hipotética pertinência para as questões de inconstitucionalidade, apenas se encontra nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação – além da já transcrita conclusão 8. - o seguinte:
“Considerou então aquele despacho, que a prisão preventiva apenas tem início no dia em que for proferido despacho a decretá-la e não em qualquer dos dois dias anteriores em que o arguido pode estar detido a aguardar primeiro interrogatório. O nosso entendimento, salvo o devido respeito por opinião diversa, é o de que a prisão preventiva conta-se a partir do dia em que o arguido tiver sido detido, tenha ou não ocorrido nesse mesmo dia o despacho que venha aplicar a prisão preventiva. Esta parece-nos a única interpretação admissível face aos imperativos constitucionais e também da lei ordinária. Senão vejamos, A jurisprudência do S.T.J. no âmbito da providência de Habeas Corpus tem, para o efeito de saber qual o último dia em que se extingue a prisão preventiva, considera como o primeiro dia do prazo da prisão preventiva o próprio dia da detenção e não o dia em que o despacho de aplicação da medida de coacção é proferido. Outra solução, salvo o devido respeito por outra opinião, como a adoptada no douto despacho recorrido, viola de forma insuprível o direito vigente. Se V. Exas. entenderem, como nós entendemos, que o prazo da prisão preventiva no caso concreto do recorrente se iniciou no dia 5 de Novembro de 2002, então, 12 meses depois, isto é, às 24 horas do dia 5 de Novembro de 2003 aquela medida de coacção extinguiu-se nos termos do nº 3 do artº 215º e nº 1 do artº 217º do CPP. Dizer-se, como se diz no douto despacho recorrido, que a acusação foi acabada no dia 5 mas recebida no dia 6 de Novembro é no mínimo estranho. Pois o que é certo
é que nos presentes autos (os únicos que importam em obediência ao velho brocardo segundo o qual o que não está nos autos não existe no mundo) a acusação não foi deduzida no prazo de 12 meses, mas sim 1 dia depois do prazo permitido no nº 3 do artº 215º do CPP. Pelo que, o arguido deveria ter sido imediatamente restituído à liberdade por se ter entretanto extinguido a medida de coacção – prisão preventiva – no dia 5 de Novembro de 2003.”
Ainda que se admitisse, quanto ao segmento normativo relativo ao termo inicial do prazo de prisão preventiva, que se encontrava neste texto, em conjugação com as conclusões respectivas, um mínimo de referência argumentativa que permitisse perspectivar a questão sub specie constitutionis, já o mesmo se não vislumbra quanto ao segmento normativo relativo ao termo final do mesmo prazo. Neste último aspecto, a Relação apenas foi confrontada com uma questão de direito ordinário (Se não com uma simples questão de facto ou uma questão mista, mas sempre de direito ordinário).
Ora, não estamos perante um daqueles casos anómalos ou excepcionais em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista ou inesperada feita pela decisão recorrida, em termos tais que possa afirmar-se que o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, por não ser razoável que se lhe exigisse a previsão dessa interpretação ou aplicação. Efectivamente, a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido – que, aliás, corresponde ao teor literal do preceito – já o tinha sido pelo (então) despacho impugnado, pelo que, se o recorrente pretendia ver apreciados, não só o seu acerto no plano do direito ordinário, mas também a sua conformidade com normas ou princípios constitucionais, deveria tê-lo feito constar da motivação do recurso perante a Relação.
Em conclusão: não pode conhecer-se da questão de constitucionalidade do segmento normativo relativo ao termo final do prazo em causa (:“sem que tenha sido deduzida acusação” ), por não ter havido oportuna suscitação dessa questão.
4. Como já se deixou dito, a decisão desfavorável ao recorrente da questão prévia que antecede, prejudica o conhecimento da (outra) questão de constitucionalidade, incidente sobre o segmento normativo relativo ao termo inicial do mesmo prazo, uma vez que o recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta desempenha uma função instrumental e que, qualquer que ela fosse, a resposta que lhe viesse a ser dada por este Tribunal não influiria na decisão do caso.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 10 (dez) UCs.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida