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Proc. n.º 547/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 75 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
1. [...] O recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade, por violação do artigo 208º da Constituição, da norma contida no artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, numa determinada interpretação, que assim identifica (requerimento de fls. 69 e seguinte):
– «os advogados, no exercício do Mandato Forense, podem ser condenados, pessoalmente, ao pagamento das custas judiciais fixadas aos incidentes processuais por si promovidos;
– a decisão judicial que, com base nessa disposição e em conjugação com o disposto no artigo 678º do CPC, partindo de uma apreciação por parte do Juiz da conduta do Advogado no exercício do patrocínio forense – considerada, em concreto, anómala, dilatória, acintosa, anormal ao desenvolvimento da lide – aplique, condenação em custas, pessoalmente, ao mesmo, só admite recurso ordinário se o valor das custas judiciais a que o Advogado em concreto tiver sido pessoalmente condenado ultrapassar metade da alçada do Tribunal recorrido, mesmo que o valor da acção ultrapasse a alçada do Tribunal de que se recorre, sendo, portanto insindicável por Tribunal Superior até àquele valor».
[...]
3. Ora tais pressupostos processuais do recurso interposto [o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional] não estão verificados no caso dos autos.
3.1. Desde logo, o recorrente não suscitou, durante o processo, de forma clara e precisa, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade reportada à norma do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Com efeito, na reclamação que deduziu perante o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães do despacho proferido pela Juíza da Comarca de Guimarães que não admitira o recurso de agravo que pretendia interpor da decisão que, no decorrer de uma audiência de julgamento, lhe indeferiu um pedido de esclarecimento e lhe aplicou uma multa, o recorrente limitou-se a referir que
(fls. 8 a 13):
«[...] Entende a Exmª Srª Juiz que o Reclamante não pode recorrer porque o montante em custas em que foi condenado não excede metade da alçada do Tribunal de 1ª Instância. A vingar este entendimento o que é que aconteceria? Os Advogados, no desempenho das suas funções poderiam ser livremente condenados em custas dos incidentes que entendessem adequados à defesa dos interesses dos seus constituintes – ao fim e ao cabo são sempre os Advogados que dão causa aos incidentes processuais. Isto é, Cada vez que um Advogado quisesse ditar um requerimento, interpor um recurso ou pedir um simples esclarecimento, teria que pensar duas vezes, uma [...] vez que sempre se arriscaria a ser pessoalmente condenado em custas que, desde que não ultrapassassem metade da alçada do Tribunal em causa, seriam insindicáveis. Ora, Várias condenações pequenas, em despachos distintos, poderiam transformar-se em quantias elevadas que, arbitrariamente, qualquer julgador entendesse aplicar. Em suma, Estaria definitivamente comprometida a liberdade e independência do Advogado no exercício do mandato. O entendimento perfilhado no despacho reclamado constitui um clara violação do disposto no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa.
[...]». Nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação em termos processualmente adequados de uma questão de inconstitucionalidade reportada à norma do artigo
488º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, com a interpretação que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
3.2. De todo o modo, a norma do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil não constituiu o fundamento jurídico da decisão aqui recorrida. Na verdade, a decisão aqui recorrida é a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães (constante de fls. 59 a 61) que indeferiu a reclamação deduzida pelo ora recorrente e, consequentemente, confirmou o despacho da Juíza da Comarca de Guimarães que não admitira o recurso de agravo interposto da decisão que, no decorrer de uma audiência de julgamento, lhe indeferiu um pedido de esclarecimento e lhe aplicou uma multa. Ora, tal decisão fundou-se num complexo normativo que engloba a norma do artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil e as disposições contidas no artigo 24º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro. A conformidade constitucional desse complexo normativo não pode porém ser apreciada pelo Tribunal Constitucional no âmbito do presente recurso pois, quanto a ele, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade durante o processo nem foi formulado qualquer pedido no requerimento de interposição do recurso, sendo certo que a referência que neste requerimento se faz à norma do artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil não é suficiente para considerar preenchidos os requisitos exigidos pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.”
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 82 e seguintes), invocando, em síntese, para o que agora releva:
“[...]
15. Parece-nos resultar claro que a inconstitucionalidade dessa norma foi suscitada de forma processualmente correcta.
16. Essa inconstitucionalidade foi claramente arguida no primeiro momento processual possível, pós prolação do despacho recorrido, uma vez que o ora Reclamante alegou expressamente, em sede de reclamação do despacho de não admissão do recurso, que a condenação em custas de que tinha sido alvo e, consequentemente, a interpretação do fundamento legal dessa condenação, que estribou essa condenação, violava o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa.
17. Essa arguição foi tão ou tão pouco clara que o Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou concretamente em relação a ela
[...].
[...]
21. Quanto ao segundo argumento, isto é, o facto de no entender da Ex.ma Senhora Juiz-Relatora, a norma do artigo 448º, nºs 1 e 2, do Código do Processo Civil, não constituir fundamento jurídico da decisão aqui recorrida, ainda nos parece mais evidente que [...] este entendimento não será o mais correcto. Efectivamente,
22. Da decisão proferida pelo Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães resulta claro que, se o seu entendimento quanto às inconstitucionalidades suscitadas tivesse sido diverso do que perfilhou, diferente seria o sentido da decisão tomada. Isto é,
23. Resulta dessa decisão que o mesmo entende que a condenação em custas de que o ora Reclamante foi alvo, enquanto Advogado, e portanto o despacho proferido e a interpretação da norma em que se baseia, estão em perfeita consonância com a Constituição da República Portuguesa, razão, também pela qual, foi negado provimento à reclamação.
[...] Sem prescindir
25. A condenação em custas processuais de um Advogado no exercício do Mandato Forense é grosseiramente ilegal e inconstitucional, não tendo qualquer cabimento na nossa lei adjectiva e violando claramente uma das traves mestras do sistema judicial e da própria democracia: a imunidade que aos Advogados, enquanto profissionais essenciais na administração da Justiça, é assegurada pelo artigo
208º da Constituição da República Portuguesa.
[...]
29. Permitir que por razões processuais, claramente discutíveis, se deixe de conhecer o fundo do recurso sub judice será criar um precedente gravíssimo e inédito num sistema processual em que os Advogados, até metade da alçada do Tribunal em que estejam a pleitear, poderão passar a ser livremente condenados, a título pessoal, em custas dos incidentes que decidam suscitar para melhor defesa dos interesses dos seus constituintes, sem sequer poder sindicar o seu mérito.
[...] Termos em que, Requer a V. Ex.as, dando provimento à presente reclamação, se dignem ordenar a revogação da decisão proferida pela Ex.ma Senhora Juiz-Relatora e a sua substituição por outra que, nos termos da lei, admita o recurso interposto, com todas as consequências legais.
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
(fls. 93):
“[...]
1 - Não convencem as razões invocadas pelo reclamante.
2 - Na verdade – e desde logo – não suscitou o mesmo, em termos procedimentalmente adequados, a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, tendo tido plena oportunidade para o haver feito, o que naturalmente compromete irremediavelmente o recurso.
[...].”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso, invocou como fundamento o não preenchimento dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto: o Tribunal Constitucional entendeu que “o recorrente não suscitou, durante o processo, de forma clara e precisa, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade reportada à norma do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil” e que
“de todo o modo, a norma do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil não constituiu o fundamento jurídico da decisão aqui recorrida”.
São os seguintes, em síntese, os argumentos utilizados na reclamação agora deduzida:
Relativamente à falta do primeiro pressuposto, o reclamante afirma que “essa inconstitucionalidade foi claramente arguida no primeiro momento processual possível, pós prolação do despacho recorrido, uma vez que o ora Reclamante alegou expressamente, em sede de reclamação do despacho de não admissão do recurso, que a condenação em custas de que tinha sido alvo e, consequentemente, a interpretação do fundamento legal dessa condenação, que estribou essa condenação, violava o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa” e que “essa arguição foi tão ou tão pouco clara que o Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou concretamente em relação a ela”.
A propósito da falta do segundo pressuposto, diz o reclamante que
“da decisão proferida pelo Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães resulta claro que, se o seu entendimento quanto às inconstitucionalidades suscitadas tivesse sido diverso do que perfilhou, diferente seria o sentido da decisão tomada”.
Por fim, o reclamante sustenta que “a condenação em custas processuais de um Advogado no exercício do Mandato Forense é grosseiramente ilegal e inconstitucional, não tendo qualquer cabimento na nossa lei adjectiva e violando claramente uma das traves mestras do sistema judicial e da própria democracia: a imunidade que aos Advogados, enquanto profissionais essenciais na administração da Justiça, é assegurada pelo artigo 208º da Constituição da República Portuguesa”.
5. Reafirma-se que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, perante o tribunal recorrido, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Basta, de resto, atentar no texto da reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães (texto reproduzido no ponto n.º
3.1. da decisão sumária reclamada e transcrito supra 1.) para concluir que o ora reclamante imputou a inconstitucionalidade à decisão proferida no processo pela Juíza da Comarca de Guimarães e à multa que lhe foi aplicada. À mesma conclusão se chega se analisarmos o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e o modo como nele se identifica a questão que se pretendia submeter ao julgamento deste Tribunal (texto reproduzido no ponto n.º
1. da decisão sumária reclamada e transcrito supra 1.)
Nem se argumente contra esta conclusão dizendo, como diz o ora reclamante, que “essa arguição foi tão ou tão pouco clara que o Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou concretamente em relação a ela”. É que as considerações tecidas na decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães – que constituem obiter dicta, como adiante se recordará – dizem respeito à invocada “inconstitucionalidade da multa” e à alegada “inconstitucionalidade da decisão proferida contra o recorrente/reclamante” (cfr. fls. 61).
Lê-se a este propósito, na decisão:
“[...] Sustenta o reclamante que a multa que lhe foi aplicada viola o disposto no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa [itálico aditado agora]. Não lhe assiste, porém, razão nesta afirmação que faz. Seguramente que a decisão proferida contra o recorrente/reclamante não atenta contra o princípio da independência dos tribunais consagrado no art.º 208º da C.R.P. [itálico aditado agora]; Igualmente, o direito de defesa legalmente atribuído ao cidadão não se compraz com a atitude de tornar recorrível toda e qualquer decisão proferida no âmbito do processo.
[...].”.
Ora, enquanto a competência dos tribunais comuns abrange a apreciação da eventual “inconstitucionalidade da multa” ou da
“inconstitucionalidade da decisão proferida contra o recorrente/reclamante”, a competência que a Constituição e a lei atribuem ao Tribunal Constitucional no
âmbito dos recursos de fiscalização concreta diz respeito a normas e não a decisões judiciais.
6. Do teor da decisão reclamada resulta porém que, apesar de se argumentar com a falta dos dois pressupostos típicos do recurso interposto, o fundamento decisivo do não conhecimento do recurso foi a não aplicação, no despacho aqui recorrido, da norma cuja inconstitucionalidade o recorrente impugna perante o Tribunal Constitucional.
Assim, ainda que pudesse dar-se como verificado o primeiro pressuposto processual do recurso interposto (a invocação pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o tribunal recorrido, da questão da inconstitucionalidade do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), o recurso não poderia ser admitido por falta do outro pressuposto processual do recurso interposto (a aplicação, na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma do artigo 448º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Na verdade, a decisão de que o ora reclamante pretendia recorrer para o Tribunal Constitucional é a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães (constante de fls. 59 a 61) que indeferiu a reclamação por ele deduzida – e que, consequentemente, confirmou o despacho da Juíza da Comarca de Guimarães que não admitira o recurso de agravo interposto da decisão que, no decorrer de uma audiência de julgamento, lhe indeferiu um pedido de esclarecimento e lhe aplicou uma multa. Essa decisão de não admissão do recurso, proferida pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, fundou-se num complexo normativo que engloba a norma do artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil e as disposições contidas no artigo 24º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro.
Como se disse na decisão sumária reclamada, a conformidade constitucional desse complexo normativo não pode ser apreciada pelo Tribunal Constitucional no âmbito do presente recurso pois, quanto a ele, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade durante o processo nem foi formulado qualquer pedido no requerimento de interposição do recurso, sendo certo que a referência que neste requerimento se faz à norma do artigo 678º, n.º
1, do Código de Processo Civil não é suficiente para considerar preenchidos os requisitos exigidos pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
E não podem servir de argumento contra esta conclusão as considerações que constam do despacho recorrido a propósito da não inconstitucionalidade da decisão que aplicara a multa ao ora reclamante. É que a questão jurídica colocada ao Tribunal da Relação de Guimarães, na reclamação então deduzida, era tão somente a questão da admissibilidade do recurso do despacho proferido no Tribunal da Comarca de Guimarães. Tal significa que as considerações feitas quanto à não inconstitucionalidade da multa aplicada constituem, no contexto da decisão proferida, meros obiter dicta, insusceptíveis de fundar um recurso de fiscalização concreta interposto com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Em conclusão, não tendo sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, a norma acusada de inconstitucional, nenhum efeito teria a eventual procedência do recurso, uma vez que se manteria inalterado o verdadeiro fundamento de tal decisão – o complexo normativo que sustentou a irrecorribilidade do despacho proferido no Tribunal da Comarca de Guimarães.
7. A argumentação expendida em último lugar pelo ora reclamante (n.ºs 25 e seguintes da reclamação) destina-se explicitamente a fundamentar a
“ilegalidade”, a “inconstitucionalidade” e a “intolerabilidade” da condenação em custas.
Nesta parte da reclamação, o reclamante pretende – o que afirma expressamente – que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre “o fundo da questão” da condenação em custas que lhe foi aplicada.
Ora, como já antes se deixou dito, a apreciação de tal questão excede a competência do Tribunal Constitucional. O controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, de 17 de Maio de 2004, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa,15 de Junho de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos