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Processo n.º 232/2004
3.ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Tendo, por apenso aos embargos deduzidos aos autos de execução de sentença para prestação de facto em que figuravam, como exequentes, A. e mulher e outros e, como executada, B., vindo esta última requerer a prestação de caução por garantia bancária, a fim de ser suspensa a execução, a Juíza do 4º Juízo Cível do Tribunal de comarca de Santa Maria da Feira, por despacho de 23 de Maio de 2002, indeferiu o peticionado, o que motivou a indicada executada a, do assim decidido, agravar para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 6 de Maio de 2003, concedeu provimento ao agravo, consequentemente determinando a revogação do despacho impugnado, a fim de ser substituído por outro que admitisse a agravante a prestar caução.
Desse acórdão agravaram para o Supremo Tribunal de Justiça os exequentes A., mulher e outros.
Na alegação adrede produzida, formularam os recorrentes as seguintes «conclusões»:
“Primeira: A prestação de caução pelo executado-embargante de que tratam estes autos existe no ordenamento jurídico processual civil como uma garantia, uma salvaguarda para o exequente, para os seus créditos ou direitos. Segunda: Se uma execução fosse suspensa com a entrada em Juízo de embargos de executado, sem mais, o devedor poderia - com o tempo que ficaria ao seu dispor - dissipar os seus bens e deixar o exequente com o seu crédito por satisfazer. Terceira: A admissão de prestação de caução neste processo subverteria o espírito da norma e a intenção com que ela foi criada porque onde ela existe para salvaguardar a posição do exequente, iria ser aplicada precisamente para deixar o exequente completamente desprotegido. Quarta: Os exequentes deram à execução uma sentença para verem efectivados os seus direitos - reconhecidos em sentença judicial- à saúde, bem estar, repouso, cujas agressões (por parte da executada) a caução vai prolongar e manter, pelo que, ao invés de os proteger, tal caução os prejudica e os desprotege. Quinta: As normas jurídicas e os valores sociais em confronto não são comparáveis pelo que a norma adjectiva de direito processual cede perante as normas de direito civil substantivo que tutelam os direitos de personalidade e perante as normas constitucionais que imperam relativas aos direitos fundamentais, ao bem-estar e qualidade de vida, ao direito à saúde e a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Sexta: O artigo 818º do Código de Processo Civil é inconstitucional ao admitir que a prestação de caução suspenda os actos de execução em que os autores procuram tornar efectivos direitos constitucionalmente protegidos como a saúde, o bem estar e ambiente. Sétima: Se tal não for assim entendido, a interpretação de tal norma jurídica nesses termos (efectuada pelo Tribunal da Relação) é inconstitucional porque sustenta o ponto de vista de que direitos protegidos pela nossa Constituição podem ser deixados de lado pela invocação e aplicação de uma norma processual civil. Oitava: Porque o continuar das agressões não pode ser caucionado por qualquer quantia do mundo já que não são bens transaccionáveis a saúde, o sossego e o bem estar do ser humano, nem nada existe que compense a sua falta. Nona: A douta decisão em apreço violou as normas citadas no corpo desta[s] alegações, designadamente: CRP, art.ºs 9º b) e d), 64.º e 66º. CC, art.[º] 70.º. CPC, art.ºs 2º, 818.º.”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Janeiro de 2004, negou provimento ao agravo.
Foi a seguinte a fundamentação carreada a esse aresto:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Como se vê das conclusões, a questão suscitada no agravo traduz-se em saber se, versando a execução sobre direitos de personalidade é ou não possível prestar caução como meio de suspender a execução, pressupondo, claro está, terem sido deduzidos embargos
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Como resulta do Art 933 nº 3 do C.P.C. quando se está perante uma execução de facto, como é o caso, o recebimento dos embargos tem os efeitos indicados nos Arts 818 e 819 do C.P.C., sendo ainda certo que, ainda que a execução se funde em sentença, a oposição pode fundar-se no cumprimento posterior da obrigação a provar por qualquer meio (nº 2).
Portanto é certo que o recebimento dos embargos não suspende a execução salvo se o embargante a requerer e prestar caução (nº 1 do Art 818), por isso que, se requerer a suspensão, oferecendo caução a execução para prestação de facto tem de suspender-se, sendo certo que a lei não faz distinção quanto ao facto a prestar, pelo que não será lícito ao intérprete fazê-la.
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No caso concreto, como vimos, do que se trata é de ordenar a cessação da actividade da unidade fabril da executada por a sua laboração causar danos à saúde e bem estar dos exequentes, perturbar a normal utilização do prédio destes e causar danos ao ambiente.
Como se depreende da decisão exequenda, trata-se de poluição sonora e ambiental (esta provocada pela emissão de poeiras e serrim), devendo no entanto notar-se que a decisão exequenda não ordenou pura e simplesmente a paralização da actividade industrial da executada, senão enquanto não forem realizadas as obras necessárias para a sua insonorização e para evitar a emissão das referidas poeiras e serrim.
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Ora, se é certo que está provado que a laboração da executada provocava aos exequentes os danos acima referidos à data da sentença exequenda, já não é certo que a situação poluidora se mantenha à data dos embargos, cujo fundamento é exactamente a realização das obras recomendadas na sentença e a consequente eliminação da poluição que perturbava os exequentes, caso em que desapareceria a proibição de laborar decretada e que agora se pretende executar.
Por isso, discutindo-se nos embargos precisamente a actual ausência de poluição e, por conseguinte a ausência de qualquer perigo para a saúde dos exequentes, isto é a inexistência de perturbação do seu bem estar e repouso, não pode concluir-se que a prestação da pretendida caução com a consequente suspensão da execução vai manter e prolongar no tempo a agressão, como dizem os agravantes (conclusão 4ª).
Se subsiste ou não a agressão, é exactamente a questão controvertida a ser decidida nos embargos, não podendo partir-se do princípio da sua subsistência, daí que não seja, evidentemente, ‘o continuar das agressões’ que se pretende caucionar, mas apenas a suspensão da execução até ao julgamento dos embargos.
Ora, se a executada pode alegar nos embargos o cumprimento posterior das suas obrigações, no caso a eliminação das causas que determinaram a proibição de continuar a sua actividade industrial, deve-lhe ser permitido prestar caução para os efeitos de suspender a execução até ter oportunidade de demonstrar o que alegou no processo de embargos, como, aliás, a lei processual determina sem qualquer excepção.
É claro que a suspensão da execução pode causar prejuízos acrescidos aos exequentes se f[o]r a sua versão verdadeira, mas igualmente a não suspensão da execução causaria prejuízos à executada se f[o]r ela a detentora da verdade dos factos.
É por isso que, para disciplinar o processo e permitir ressarcir a parte prejudicada existe o instituto da litigância de má-fé que permite a condenação em multa e em indemnização à parte contrária, à parte que litigue contra a verdade dos factos.
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Ambas as partes devem ser colocadas em rigorosa situação de igualdade como é princípio processual indiscutível, não se vendo qualquer razão plausível para não aplicar ao caso dos autos o disposto no Art 818º nº 1 do C.P.C., por estarem em causa direitos de personalidade, designadamente pela sua alegada inconstitucionalidade, que, salvo melhor opinião, não se verifica.
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De facto não existe nenhum confronto entre normas adjectivas e normas substantivas, visto que actuam em planos diversos.
As primeiras não concorrem com as segundas, não se lhes sobrepõem nem sobre elas prevalecem, simplesmente se limitam a actuá-las, efectivá-las ou concretizá-las.
No caso concreto o Art 818º nº 1 não se opõe à efectivação dos direitos subjectivos dos exequentes, nem os põe de lado obviamente, antes faz parte de todo o complexo processo através do qual os exequentes hão-de efectivar esses direitos (se os tiverem na situação concreta), sendo certo que, desse processo, constam também os meios adequados a permitir o direito de defesa da executada e a afirmação dos respectivos direitos substantivos, como, por exemplo
é o direito de exercer livremente a sua actividade industrial desde que tenha cumprido as condições que, para o efeito, lhe foram impostas na sentença exequenda.
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De resto, se é verdade que os direitos à saúde, repouso, bem estar e a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado são direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, não é menos verdade que também o direito à propriedade dos meios de produção, à iniciativa económica privada, bem como o direito ao trabalho, constituem direitos fundamentais, igualmente consagrados constitucionalmente no mesmo plano hierárquico que os primeiramente referidos.
Ora, estes direitos pertencentes à executada e aos seus trabalhadores, seriam necessariamente postos em causa, provavelmente de forma definitiva, se se ordenasse desde já a suspensão da actividade industrial da executada, sem lhe permitir provar, como alegou nos embargos, estar actualmente a laborar dentro de todas as condições legais e determinadas na sentença exequenda, não pondo, pois, em causa, os direitos dos exequentes.
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Por conseguinte, atento até o equilíbrio (designadamente constitucional) entre os direitos em confronto não se vê que deva ter-se por inconstitucional a aplicação do Art 828 nº 1 do C.P.C. numa execução para prestação de facto em que esteja[m] em questão direitos de personalidade como são os invocados pelos agravantes.
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Restará referir que, como resulta do disposto nos Arts 933 e 934 do C.P.C., após o julgamento dos embargos (se estes suspenderem a execução, como no caso suspendem, atento o sentido da decisão que aqui se vai tomar), caso estes improcedam, podem os exequentes converter a execução, requerendo indemnização pelo dano sofrido com a não realização da prestação e se assim fizerem, é claro que a caução prestada lhes garante essa indemnização (ou parte dela), pelo que nunca se pode dizer que, em caso como o dos autos a prestação não tem razão de ser.
.......................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Do aresto, cuja totalidade da fundamentação se encontra acima transcrita, com base na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, recorreram os agravantes para o Tribunal Constitucional, dizendo, no que agora releva, que a “norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que seja apreciada é o artigo 818º do Código de Processo Civil”.
2. Em 22 de Março de 2004 o relator do Tribunal Constitucional proferiu o seguinte despacho:-
“No Alto Tribunal a quo não foi, não obstante os termos constantes do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, utilizado o «poder/dever» a que se reporta o nº 5 do artº 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Porém, tendo em conta, por um lado, que o preceito do artº 818º do Código de Processo Civil contém inúmeras normas, por outro, que, na alegação dos impugnantes no agravo interposto na 2ª instância, o vício de desconformidade com a Lei Fundamental foi, quanto àquele artigo, imputado a determinada dimensão normativa e, por fim, que, sendo o recurso esteado na alínea b) do nº 1 do artº
70º daquela Lei, é incompreensível a invocação, no requerimento de interposição do recurso, da pretensão de análise da ilegalidade do citado preceito, convido os recorrentes, nos termos do que se dispõe no nº 6 do artº 75º-A, ainda da mesma Lei, a, de uma banda, explicitarem qual a concreta norma e seu sentido interpretativo que desejam submeter à análise por este Tribunal e de outra, se, efectivamente, é seu intento a apreciação de qualquer questão de ilegalidade reportada ao citado preceito”.
Na sequência, os recorrente vieram dizer:
“Nas alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça, os recorrentes insurgem-se contra a admissibilidade de, num caso como o destes autos, ser prestada caução que suspenda a execução.
A norma do Código de Processo Civil que dispõe que o recebimento dos embargos suspende a execução, se for requerida tal suspensão e prestada caução,
é o artigo 818º nº 1 (redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março).
Nessas alegações é expresso também o entendimento de que a aplicação e interpretação da norma (CPC. 818º nº 1) tal como é feita nos autos, e uma vez que estamos perante direitos de personalidade, contende com a norma do Código Civil (artigo 70º) que oferece protecção aos indivíduos contra ofensas à sua personalidade física e moral.
Neste caso, a norma adjectiva, de direito processual, deve ceder perante a lei substantiva, pelo que é ilegal (ou ilegal é a interpretação) que, não considerando esta hierarquia das normas, aplica a norma meramente processual.
Os requerentes colocaram este entendimento à apreciação do Alto Tribunal e consideram, salvo melhor opinião, que o Tribunal Constitucional se deve também debruçar sobre este ponto, por fazer parte das suas competências.
As questões cuja apreciação se requer estão colocadas em alternativa, como é legalmente admissível e de prática quotidiana nos tribunais e, para o caso de o Tribunal não sufragar um entendimento, conhecer da pertinência de outra perspectiva jurídica e sobre ela se pronunciar.
Assim, e em conclusão:
- A norma que se deseja submeter à análise do Tribunal é o artigo
818º nº 1 do Código de Processo Civil, e a interpretação que é feita nos autos de que, estando em causa a agressão de direitos de personalidade protegidos pela Constituição, é admissível, ainda assim, prestar-se caução suspendendo-se a execução que procura tornar uma realidade prática a sentença proferida quanto a esses direitos constitucionalmente protegidos;
- deverá (em alternativa) ser apreciada a legalidade da norma (CPC,
818º nº 1) ou da sua interpretação face às normas substantivas de direito civil, designadamente o artigo 70º do Código Civil, que permite (e não deveria permitir) a aplicação daquela norma quando estão em causa direitos de personalidade tutelados pela lei substantiva”.
O relator do Tribunal Constitucional, em 13 de Abril de
2004 exarou despacho com o seguinte teor:
“No seguimento do convite que lhes foi dirigido pelo despacho de 22 de Março de 2004, vieram os ora recorrentes, para além do mais, e se bem se entende o requerimento que pelos mesmos foi apresentado, solicitar, em alternativa, que fosse apreciada a legalidade, em face do artº 70º do Código Civil, da norma constante do nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil, na medida em que, recebidos os embargos, permite a suspensão da execução se o embargante a requerer e prestar caução, “quando estão em causa direitos de personalidade tutelados pela lei substantiva”.
É por demais claro que a solicitação acima indicada não pode proceder.
Em primeiro lugar, o recurso para este Tribunal foi baseado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, razão pela qual, com base nesse preceito, nunca poderia ser apreciada uma questão de ilegalidade normativa, já que a impugnação a que tal preceito se reporta se circunscreve à análise de questões de inconstitucionalidade normativa.
Em segundo lugar, e isso é o que mais releva, mesmo que porventura se entendesse que, aquando da formulação do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, os ora recorrentes, por mero lapso de escrita, não fizeram menção à alínea f) do nº 1 daquele artº 70º, ainda assim, o recurso fundado nessa alínea nunca seria admissível.
E não o seria justamente porque não está em causa qualquer situação de aplicação de:
- norma constante de acto legislativo, cuja ilegalidade tenha sido suscitada durante o processo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (seguramente o Código Civil não poderá ser perspectivado como um corpo de leis com essas características);
- norma constante de diploma regional, cuja ilegalidade tenha sido suscitada durante o processo com fundamento na sua ilegalidade por violação de estatuto de uma Região Autónoma ou de lei geral da República, ou
- norma emanada de um órgão de soberania, cuja ilegalidade tenha sido suscitada durante o processo com fundamento na sua ilegalidade por violação de estatuto de uma Região Autónoma.
Neste contexto, não se tomará conhecimento do objecto do recurso no tocante à pretendida questão de ilegalidade.
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Pelo que respeita ao recurso ancorado na já citada alínea b) do nº 1 do artº 70º:
Na alegação do agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, os ora impugnantes, nas «conclusões» sexta e sétima disseram:
“O artigo 818º do Código de Processo Civil é inconstitucional ao admitir que a prestação de caução suspenda os actos de execução em que os autores procuram tornar efectivos direitos constitucionalmente protegidos como a saúde, o bem estar e ambiente” e que “Se tal não for assim entendido, a interpretação de tal norma jurídica nesses termos (efectuada pelo Tribunal da Relação) é inconstitucional porque sustenta o ponto de vista de que direitos protegidos pela nossa Constituição podem ser deixados de lado pela invocação e aplicação de uma norma processual civil”.
No acórdão lavrado em 27 de Janeiro de 2004 por aquele Alto Tribunal, foi entendido que tinha aplicação o disposto no nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil, se fosse requerida a suspensão da execução, prestando-se caução, num caso em que os fundamentos dos embargos à execução de uma sentença - que determinara a paralização da actividade industrial da executada enquanto não fossem realizadas obras necessárias com vista a evitar a poluição sonora e ambiental decorrente dessa actividade -, eram, precisamente, o de já terem sido realizadas essas obras e de, actualmente, se verificar a ausência de poluição e, por conseguinte, a inexistência da causa de perturbação do bem-estar e repouso dos exequentes, sendo, pois, a questão controvertida a ser decidida nos embargos a de saber se subsistia, ou não, a agressão que ditara a prolação, naqueles termos, da sentença dada à execução.
Foi, pois, com este sentido, que o preceito ínsito no nº 1 do artº
818º do Código de Processo Civil foi interpretado e aplicado in casu.
Significa isso que, muito embora a suscitação da questão de desconformidade com a Lei Fundamental por banda do nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil o tivesse sido em termos amplos, segundo os quais, recebidos os embargos, se estivesse em causa uma execução em que fosse pedida a prática, pelo executado, de determinado facto, imposto por sentença, com vista a preservar direitos de personalidade do exequente (ou dos exequentes), tal execução nunca poderia ser suspensa, e isto no caso de a suspensão vir a ser requerida e de ser prestada caução, o que é certo é que a aplicação daquele preceito foi, concretamente, efectuada pela decisão ora impugnada em termos de ser admitida a suspensão da execução - caso nos embargos isso viesse a ser solicitado e fosse prestada caução - se, em tais embargos, a questão controvertida fosse, precisamente, a de saber se a causa da «agressão» dos direitos de personalidade do exequente (ou dos exequentes) já tinha cessado.
Nesta conformidade, delimito o objecto do recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 ao preceito vertido no nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil na dimensão interpretativa segundo a qual, numa execução para prestação de facto pelo executado, prestação essa determinada por sentença, com vista a preservar direitos de personalidade dos exequentes, deduzidos embargos à execução e sendo pedida a suspensão da execução e prestada caução, poderá ser suspensa a execução se nos embargos a questão controvertida for, precisamente, a de saber se a causa da agressão daqueles direitos está já cessada.
Com esta delimitação notifiquem-se as «partes» para a produção de alegações”.
3. Os recorrentes, na alegação que formularam, concluíram do seguinte modo:-
“Primeira: A prestação de caução prevista no artigo 818° n° 1 do Código de Processo Civil que permite suspender a execução, existindo embargos de executado tem como escopo a protecção do exequente. Segunda: Salvaguardando assim o valor que este traz à execução, enquanto não há decisão definitiva dos embargos. Terceira: Essa caução carece de uma avaliação cuidada e ponderada, sempre atendendo aos interesses do exequente que não podem ser beliscados minimamente. Quarta: A caução para estes autos não salvaguarda os exequentes de absolutamente nada, já que aquilo que trazem à execução são os seus direitos de personalidade. Quinta: A violação desses direitos continua e não é compensável, sendo prestada a caução. Sexta: A interpretação feita nestes termos, de que é admissível suspender uma execução, prestando-se caução, quando estão em causa direitos de personalidade é inconstitucional. Sétima: Os direitos em causa, que são constitucionalmente protegidos, não podem ser postergados, adiados ou colocados na mesma balança com uma caução monetária, prevista em norma de direito processual civil. Oitava: Não devem ser aqueles cujos direitos mais básicos são violados a aguardarem por uma decisão de embargos de executado, arriscando-se preferencialmente que as agressões continuem, mesmo ante uma sentença judicial. Nona: A norma adjectiva contida no artigo 818° n° 1 do Código de Processo Civil deve ser compaginada com as normas constitucionais que conferem protecção aos direitos fundamentais e ceder perante estas. Décima: Interpretar o artigo 818° n° 1 em sentido diverso deste, fazendo tábua rasa dos direitos em causa, desconsiderando-os como se outros direitos quaisquer sem dignidade constitucional se tratasse, é uma interpretação que colide irremediavelmente com a Constituição da República Portuguesa. Décima-primeira: A douta decisão em apreço violou as normas citadas no corpo destas alegações, designadamente: CRP, art.os 9° b) e d), 64° e 66º”.
Por seu turno, a recorrida apresentou a sua alegação, na qual, em síntese, sustentaram:
- que, se é certo que os direitos à saúde, ambiente e repouso têm consagração constitucional, menos não é que tal consagração também se dirige aos direitos à propriedade dos meios de produção, à iniciativa económica privada e ao trabalho;
- que, por isso, não se poderão privilegiar os primeiros em detrimento dos segundos;
- que a questão a decidir nos embargos reside, precisamente, em saber se a recorrida estava, ou não, a laborar em condições que não afectam os direitos dos recorrentes, pelo que, até à decisão a tomar sobre essa questão, haverá que tratar as «partes» “em plano de igualdade, concedendo o mesmo crédito a cada uma das versões apresentadas e, consequentemente, deixá-las exercer e beneficiar dos direitos consagrados na lei, como seja, o e prestar caução, e, beneficiar da posterior suspensão da execução”;
- que seria inadmissível pretender que, antes da decisão a tomar nos embargos, se desse crédito ilimitado à versão dos recorrentes e se penalizasse irremediavelmente a recorrida, ainda que esta já tivesse cumprido as condições estipuladas na sentença dada à execução.
Cumpre decidir.
4. Anote-se, em primeiro lugar, que, não obstante não ter sido impugnada a delimitação do objecto do recurso efectuada pelo despacho do relator de 13 de Abril de 2004, acima transcrito, a alegação dos ora recorrentes não atende minimamente à dimensão interpretativa que aquela delimitação levou a efeito, antes discreteando, e tão só, sobre a, na sua
óptica, desconformidade constitucional do preceito constante do nº 1 do artº
818º do Código de Processo Civil, quando permite a prestação de caução com o fim de suspender a execução, se os “DIREITOS EM CAUSA, TRAZIDOS À EXECUÇÃO SÃO DIREITOS DE PERSONALIDADE”.
Porém, como a delimitação não foi impugnada, o Tribunal irá unicamente apreciar o indicado preceito interpretado no sentido de que, numa execução para prestação de facto pelo executado - prestação essa determinada por sentença, com vista a preservar direitos de personalidade dos exequentes -, deduzidos embargos à execução e sendo pedida a suspensão da execução e prestada caução, poderá ser suspensa a execução se, nos embargos, a questão controvertida for, justamente, a de saber se a causa da agressão daqueles direitos está já cessada.
5. Convém não olvidar que a sentença que foi dada à execução - e a que a ora recorrida se opôs por embargos, na pendência dos quais peticionou o incidente de suspensão da execução, prestando caução, incidente de onde emergiu o vertente recurso de constitucionalidade - não determinou, pura e simplesmente, a cessação ou paralização da actividade fabril da aludida recorrida, cessação ou paralização essas que produziriam poluição sonora e ambiental. Antes decidiu, isso sim, que tal paralização ocorresse se e enquanto não fossem levadas a efeito as obras necessárias para obstar à ocorrência daqueles efeitos.
Ora, à execução opôs-se a recorrida, precisamente com a invocação segundo a qual as mencionadas obras já vieram a ter lugar. E foi na pendência dessa forma de oposição - que ainda se não encontra decidida - que veio a solicitar a suspensão da execução, requerendo a prestação de caução.
Daí a limitação do objecto do recurso que, como se disse já, não foi objecto de contestação por banda dos recorrentes.
6. O preceito inserto no nº 1 do artº 818º do diploma adjectivo civil, na redacção anterior à conferida pelo Decreto-Lei nº 180/96, de
25 de Setembro, dispunha assim:-
Artigo 818.º
(Efeito do recebimento dos embargos)
1. O recebimento dos embargos não suspende a execução, salvo se o embargante requerer a suspensão e prestar caução.
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A alteração de tal preceito, levada a cabo pelo do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, não releva no presente recurso e, de todo o modo, a sua actual redacção não deixava, num caso como o presente, no plano do direito infra-constitucional, de conduzir a solução idêntica à que foi tomada no acórdão impugnado.
A questão a decidir é, pois, a de saber se é constitucionalmente insolvente o transcrito preceito quando interpretado no sentido de, estando em causa uma execução para prestação de determinados factos ordenados por uma sentença que entendeu tal prestação era necessária para não serem ofendidos de direitos de personalidade e ambientais, é possível ao executado, que se opôs à execução com fundamento em já ter efectuado aquela prestação, requerer a suspensão da execução, prestando caução.
7. Como se viu, na pendência da execução controverte-se a questão da manutenção, por parte da executada, dos factores que originaram a situação poluidora sonora e físico-ambiental, manutenção essa que a sentença da
1ª instância tinha determinado dever ser cessada, por ofender direitos de personalidade (perigo para a saúde, bem-estar e repouso) dos exequentes, enquanto não fossem realizadas as cabidas obras no sentido de evitar a mencionada poluição.
O que vale por dizer, como se sublinhou no acórdão recorrido, que, no momento em que, deduzidos os embargos, foi solicitada a suspensão da execução e requerida a prestação de caução, não se pode dar como indiscutível que a agressão dos direitos de personalidade dos exequentes se mantém ou continua a prolongar-se no tempo.
Por outro lado, está dado por assente no aresto impugnado (não cabendo nos poderes cognitivos deste Tribunal infirmar essa conclusão) que a determinação constante da sentença dada à execução não deixa de causar prejuízos à executada e aos seus trabalhadores, provavelmente de forma definitiva.
Tem este Tribunal de aceitar que estes últimos prejuízos e aqueloutros causados nos direitos à saúde, bem-estar e repouso dos ora exequentes, não deixaram de ser ponderados na sentença que ordenou a suspensão da actividade fabril da ora executada até que pela mesma fossem removidos os factores de poluição.
8. Só que, no momento temporal e processual em causa, o que se discute é, exactamente, a questão de ter já ocorrido a remoção dos indicados factores.
Isso significa que se desenha, no caso, um actual conflito de interesses entre os detidos pelos exequentes - que intentam dar exequibilidade a uma sentença que reconheceu os seus direitos de personalidade e veio «comprimir», com a condição a que já se aludiu, os interesses da executada
- e os titulados por esta última, que se opõe a tal exequibilidade, sustentando que já cumpriu a condição sentenciada. Assiste-se, pois, aqui, para se utilizarem as palavras de Vieira de Andrade (in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição), a um “problema da limitação ou harmonização dos direitos, liberdades e garantias, em face dos compromissos naturais e inevitáveis entre os direitos e valores constitucionais que conflituam ou podem conflituar directamente em determinadas situações ou tipos de situações concretas, e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam”).
Atenta a limitação do objecto deste recurso, não está simplesmente em causa saber, em abstracto, se é, ou não, harmónico com o Diploma Básico um sentido interpretativo conferido ao nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil e de acordo com o qual, estando em causa uma execução visando a obtenção concreta da defesa de direitos de personalidade, não pode, sem mais, ser suspensa a execução. É que, como já foi realçado, o que releva é saber se, desenhando-se um conflito entre os interesses dos exequentes e da executada e estando controvertida a questão da remoção dos factores poluidores que afectavam os interesses dos primeiros, a norma em apreço - naquele sentido interpretativo
- se mostra conflituante com os artigos 64º, nº 66º, nº 1, da Constituição ou, ao menos, consagradora de uma solução jurídica desproporcionada.
9. A adoptar-se a óptica segundo a qual os direitos à saúde e a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado devem, em face da sua densificação constitucional, beneficiar de regime idêntico ao prescrito para os direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados no Título II da Constituição, consequentemente só podendo a lei restringi-los nos casos expressamente nela previstos, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, ser-se-ia levado a concluir, com alguma doutrina (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 151), que o sacrifício de um daqueles direitos, ainda que parcial, não pode ser arbitrário, gratuito ou desmotivado – pois não pode “o princípio consagrado na doutrina constitucional como princípio da harmonização ou concordância prática, enquanto critério de solução dos conflitos ... ser aceite ou entendido como um regulador automático” (neste último sentido, Vieira de Andrade, ob. cit., 314).
Na verdade, a sua aceitação pressupõe que o conflito entre direitos nunca afecte o conteúdo essencial de nenhum deles. Todavia, o princípio da concordância prática neste domínio – e como manifestamente resulta da ponderação interpretativa que se faz no caso em apreço – “não impõe necessariamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo ... é apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação)”
(cfr. autor por último citado e indicada obra, 314).
E assim, não se deverá olvidar que, mesmo a tratar-se de direitos fundamentais em presença, os mesmos podem entrar em colisão ou conflito, devendo, pois, em situações desse jaez, aquilatar-se, tanto quanto possível, se uma dada solução legal vem a consagrar uma aceitável concordância prática de onde resulte a menor «compressão» entre uns e outros, por forma a que a seja minimamente limitada - o que já tem sido defendido como a natural vocação de expansibilidade plena de um e de outro dos direitos em confronto
(Vieira de Andrade reporta-se ao atendimento do “âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar com que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito” para se encontrar e justificar a solução mais conforme no caso concreto).
Ora, a solução normativa advinda do sentido interpretativo em análise não se afigura, de uma banda, como aniquiladora do núcleo ou conteúdo essencial dos direitos ao repouso, bem-estar e a um ambiente sadio invocados pelos recorrentes, pois que está em causa saber se, pela recorrida, foram já cumpridas as condições a que a sentença da 1ª instância sujeitou a determinação de paralização da actividade laboral.
A tese sufragada pelos recorrentes levaria, no limite, a que bastaria a alegação, na própria acção, da violação daqueles direitos, para que, independentemente da controvérsia de facto sobre a propriedade dessa alegação, se determinasse judicialmente a cessação da actividade de onde resultaria a «agressão».
De outra banda, se é certo que direitos como aqueles detidos pelos impugnantes, em abstracto, não são traduzíveis monetariamente, menos certo não é que, nos casos de lesão de direitos configuráveis como aqueles, o ordenamento jurídico, em casos em que não é possível a restitutio, ou reparação natural, configura a dação de indemnização pecuniária como uma forma de «compensação».
Ora, o desiderato da lei, ao exigir a prestação de caução, em situações como a sub specie, não deixa também de atender a uma hipotética vicissitude de lesão não reparável em espécie ou in integrum, agindo a caução como uma forma de «compensação» pela irreparabilidade natural do direito lesado.
Aliás, não se deve passar em claro que, de harmonia com o que se prescreve nos artigos 933º e 934º do Código de Processo Civil, e desenhando-se, no caso, uma prestação de facto não fungível, se acaso os embargos improcedessem, sempre os exequentes poderiam solicitar conversão da execução nos termos do disposto no artº 931º do mesmo compêndio normativo, por sorte a serem indemnizados pelo dano sofrido com a não realização da prestação.
Isso significa que o ordenamento jurídico ordinário contém soluções que levam este Tribunal a concluir que a eventual «compressão» dos direitos dos exequentes reconhecidos por sentença (e não é de somenos importância sublinhar-se que essa «compressão» é, por natureza, transitória, visto que a suspensão da execução cessará caso sejam os embargos tidos por improcedentes), não se vislumbra como se apresentando com uma total desprotecção, consequentemente não se podendo dizer que o sentido interpretativo do nº 1 do artº 818º do diploma adjectivo civil é desproporcionado ou irremediavelmente afectador do núcleo essencial de tais direitos.
E, de um outro ponto de vista - este dirigido aos direitos detidos pela executada - a solução que se extrai do aludido sentido interpretativo, vem, ao fim e ao resto, a consagrar uma razoável concordância prática com os direitos dos exequentes, não se postando como constitucionalmente censurável, pois espelha-se nesta solução aquilo que Vieira de Andrade defende como o “critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito ...
: o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja adequado e necessário
à salvaguarda dos outros” (obra mencionada, 315).
10. Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se os impugnantes nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte e cinco unidades de conta.
Lisboa, 12 de Julho de 2004
Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão Luís Nunes de Almeida