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Processo n.º 44/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Nos presentes autos foi proferida, neste Tribunal, decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto por A., com o seguinte teor:
“ I. Relatório
1. Em 28 de Fevereiro de 2001, B. e mulher, C., intentaram, no Tribunal Judicial da Póvoa do Varzim, acção declarativa de condenação em processo comum, sob a forma ordinária, contra A., pedindo que fosse declarada a nulidade do contrato-promessa de cessão de exploração do estabelecimento dos autores, que a demandada lho entregasse com todos os seus equipamentos e pertenças, que lhes pagasse os montantes em dívida pela ocupação do estabelecimento entre Agosto de
2000 e Fevereiro de 2001, acrescidos dos juros legais, e ainda uma importância equivalente à acordada (250.000$00/mês), por cada mês que se mantivesse na posse do estabelecimento, acrescida dos juros legais, além dos juros de mora, custas e procuradoria. Contestou a demandada, alegando quebra do contrato verbal de cessão de exploração do estabelecimento por o cedente, o autor marido, não ter realizado as obras a que se comprometeu, e alegando sempre ter entregue a este o IVA correspondente às transacções mensais efectuadas por o estabelecimento estar registado no nome deste, e pedindo em reconvenção indemnizações várias e a condenação dos autores a efectuar as obras necessárias ao legal funcionamento do estabelecimento. Por sentença de 19 de Junho de 2002, o contrato-promessa verbal de cessão do estabelecimento foi declarado nulo, tendo a ré sido condenada à imediata restituição do estabelecimento, bem como ao pagamento do montante acordado de
250.000$00 por cada mês decorrido entre Outubro de 2000 e a efectiva entrega, acrescido dos juros moratórios vencidos e vincendos desde a data da citação, e absolvendo-se os autores do pedido reconvencional e a ré dos restantes pedidos.
2. A demandada recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, escrevendo, para o que ora importa, nas suas alegações:
“Resultando a Douta Sentença Recorrida do Tribunal a quo completamente incompreensível e ininteligível, não resultando minimamente clara e inequívoca como é exigível art. 210º CRP, o que até é compreensível por constituir a mesma violação de lei.” E na última das conclusões então apresentadas acrescentava:
“E violação pela douta sentença recorrida do art. 289º, n.º 1, do CC que tira as devidas consequências de direito da declaração de nulidade transcritas dos fundamentos da douta sentença recorrida e constante no n.º 15 destas conclusões, violando ainda o art. 210º da CRP.” Nenhuma alusão foi feita a qualquer outra desconformidade constitucional. Por acórdão de 20 de Março de 2003, a sentença recorrida foi confirmada, julgando-se improcedente a apelação. Inconformada, recorreu a ré para o Supremo Tribunal de Justiça, reiterando praticamente o que já escrevera nas anteriormente apresentadas alegações
(“Resultando a Douta Sentença da 1ª Instância completamente incompreensível e ininteligível, não resultando minimamente clara e inequívoca como é exigível art. 210º CRP, o que até é compreensível por constituir a mesma violação de lei, enfermando do mesmo ao corroborá-la o Venerando Acórdão Recorrido do Tribunal a quo”) e conclusões (“E violação pela douta sentença da 1ª Instância e pelo Venerando Acórdão do Tribunal a quo, do art. 289º, n.º 1 do CC que tira as devidas consequências de direito da declaração de nulidade transcritas dos fundamentos da douta sentença recorrida e constante no n.º 15 destas conclusões, violando ainda o art. 210º da CRP”), como não deixou de notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 27 de Novembro de 2003:
“Nota-se, o que vem sucedendo cada vez com maior frequência, que as alegações e conclusões desta revista constituem, praticamente, a reprodução, quase ipsis verbis, das alegações e conclusões da apelação.”
3. Trouxe então a ré o presente recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade do acórdão relativa à violação dos arts. 289º, n.º 1 e
473º ambos do CC, e art. 668º, n.º 1 d) do CPC e ainda dos art.s 13º e 205º, actual 202º, todos da CRP no concernente à violação pelo Venerando Acórdão dos princípios da igualdade e da Justiça.” II. Fundamentos
4. Analisados os autos, verifica-se que não se pode tomar conhecimento do recurso, pelo que é caso de proferir decisão sumária, nos termos do artigo
78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, o presente recurso foi interposto simultaneamente ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade) e na alínea b) do mesmo normativo (aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo). Compulsando as peças processuais da recorrente, nenhuma outra alusão se encontra a qualquer desconformidade constitucional que não as que foram acima transcritas, e em nenhuma dessas se imputa tal desconformidade a norma alguma. Bem ao contrário, no seu discurso as violações de normas constitucionais vão de par com violações de normas legais e são sempre imputadas às decisões judiciais proferidas. Ora como repetidamente se tem escrito – por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 461/91, 318/93, e 489/03, publicados, respectivamente, no Diário da República [DR], II Série, de 24 de Abril de 1992, 2 de Outubro de 1993 e 28 de Novembro de 2003 –, no sistema português de controlo de constitucionalidade só as normas, que não as decisões judiciais que as aplicam, podem ser objecto de recurso de constitucionalidade. Forçoso é concluir, pois, que, em momento algum, suscitou a ora recorrente uma questão de constitucionalidade normativa que as instâncias devessem ter considerado. E não tendo de o ter feito, nenhum juízo foi formulado durante o processo sobre a conformidade ou desconformidade de norma alguma impugnada pela ora recorrente, nem nenhuma norma foi desaplicada pelas instâncias com fundamento em inconstitucionalidade, razão só por si suficiente para tornar inviável o recurso a este Tribunal, ao qual cabe apenas reapreciar tais juízos dos restantes tribunais sobre a conformidade constitucional de normas. Em suma: não estando preenchidos os requisitos de nenhum dos dois tipos de recurso interpostos – ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por não ter havido desaplicação de norma alguma, e ao abrigo da alínea b) do mesmo normativo, por nenhuma questão de constitucionalidade normativa ter sido alguma vez suscitada –, impossível é tomar conhecimento de qualquer deles.”
2.Notificada desta decisão, a recorrente veio requerer a “seguinte aclaração”:
“Posto que interpôs o presente recurso para o VENERANDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, constatou que não foi notificada para os termos do art. 78.°- A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que requer desde já que seja notificada a fim de produzir as devidas ALEGAÇÕES, conforme preceitua o art. 79.° da citada Lei. Quanto a não ter invocado norma que foi desaplicada, respeitosamente permite-se discordar, dado que invocou no processo os art.s 158.°, 660.º, 2, 668.°, 1, c) e d) e 721.°, 2 do CPC, art. 289.°, 1 do CC, art.s 13.° e 205.° da CRP. TERMOS EM QUE MAIS UMA VEZ REQUER A V. Ex.as SE DIGNEM MANDAR NOTIFICÁ-LA PARA PRODUZIR AS RESPECTIVAS E DEVIDAS ALEGAÇÕES. ESPERA RESPEITOSAMENTE DEFERIMENTO” Notificados, os recorridos vieram dizer o seguinte:
«Nos termos do art. 78°-A da Lei de Organização, Funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, aquando do exame preliminar, o relator, “Se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, ...profere decisão sumária...”. Ora, “in casu”, e como bem fundamentado pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, outra solução não restava, que não a de proferir decisão sumária, como veio acontecer. Consequentemente, uma vez proferida decisão sumária, não é o recorrente notificado para apresentar alegações, como facilmente se extrai do n.º 6 do art. 78.°-A da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que é lamentável e completamente descabido, que venha agora a recorrente afirmar que não foi notificada para apresentar as mencionadas alegações. Com o devido respeito, o que pretende a recorrente com tudo isto? Não foi notificada, porque pura e simplesmente não tinha de o ser. O comportamento presente por parte da recorrente é mais uma de muitas manobras dilatórias utilizadas pela mesma ao longo de um processo em que, desde o seu início, sempre foi dada razão aos agora recorridos. Para melhor se entender o agora dito, refira-se que o presente processo deu entrada no Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim em 28 de Fevereiro de 2001, isto
é, há mais de 3 anos, momento a partir do qual a recorrente tudo tem feito para protelar a aplicação final das decisões que constantemente têm sido elaboradas, sempre favoráveis aos recorridos, utilizando todos os mecanismos ao seu dispor, como o presente pedido de aclaração, para retardar mais algum tempo a aplicação da decisão agora tomada pelo ilustre Juiz Conselheiro Relator. Assim facilmente se percebe que a única intenção da recorrente é prolongar ainda mais este processo já demasiado longo, utilizando para isso mais uma manobra dilatória que lhe é permitida, pois quanto à decisão sumária proferida pelo Ex.mo Juiz Conselheiro, nada existe que se lhe possa apontar ou passível de aclarar, por ter sido devidamente tomada e fundamentada. Pelo exposto, deverá ser mantida a decisão sumária já formulada, em nada se alterando a decisão tomada.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.A reclamante afirma pedir uma “aclaração” da decisão sumária de 17 de Março de
2004, logo contestando, porém, “não ter invocado norma que foi desaplicada”, requerendo que seja notificada para produzir alegações. Ora, o meio próprio para reagir contra decisão sumária (no caso, de não conhecimento do recurso) de que se discorda é, nos termos do artigo 78.º-A, n.º
3, da Lei do Tribunal Constitucional, a reclamação para a conferência. Como, por um lado, não se vislumbra que haja alguma obscuridade ou falta de clareza, que justifiquem a aclaração da decisão sumária, e, por outro lado, se afigura, perante o teor do requerimento, que a requerente não tem dúvidas, mas discordâncias, (que logo adianta) quanto à decisão sumária de não conhecimento do recurso, entende-se que o presente requerimento é de interpretar como uma reclamação, prevista no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sendo, pois, de apreciar e decidir pela conferência.
4.Pode, porém, adiantar-se desde já que nada há a alterar na decisão reclamada. Quanto à pretensão de notificação para produção de alegações, trata-se, como é claro, de um acto processual que só tem sentido, e só está previsto na lei, posteriormente ao exame preliminar do recurso previsto no artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Se, nesse exame, se concluir que o recurso não preenche os requisitos indispensáveis para dele se poder tomar conhecimento, é de proferir imediatamente decisão sumária de não conhecimento do recurso, não chegando o recorrente a ser notificado para produzir alegações – nem tendo de o ser, pois tais alegações não teriam qualquer utilidade, não podendo conhecer-se do recurso. Se a recorrente discordar do não preenchimento dos requisitos para o conhecimento do recurso, pode deduzir reclamação para a conferência, onde poderá expor os motivos de tal entendimento, mas, também então, só será notificado para produzir alegações se essa reclamação for atendida. Tudo isto resulta, claramente, do preceituado no artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, não sendo o pedido de notificação para produção de alegações, apenas por ter sido interposto recurso de constitucionalidade, explicável senão pela falta de consideração dessa disposição.
5.Quanto à discordância da decisão reclamada, também se não encontra baseada em fundamentos que possam levar à alteração daquela. Na verdade, segundo a reclamante, teria invocado “norma que foi desaplicada”. E, efectivamente, o recurso vinha interposto simultaneamente ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade) e na alínea b) do mesmo normativo
(aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo). Consultando a decisão recorrida, verifica-se, porém, que nela se não encontra recusa de aplicação de norma alguma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, pelo que não está preenchido o requisito do recurso enquanto interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional. E, por outro lado, conclui-se igualmente (conclusão que, aliás, a reclamante não põe em causa, pois se refere apenas a “norma que foi desaplicada”) que nenhuma questão de constitucionalidade normativa foi alguma vez suscitada durante o processo. Antes pelo contrário, e como se salientou na decisão reclamada, no discurso da ora reclamante as violações de normas constitucionais foram sempre de par com violações de normas legais e imputadas às decisões judiciais proferidas. Ora, como se sabe, no direito português só as normas, que não as decisões judiciais que as aplicam, podem ser objecto de recurso de constitucionalidade. A presente reclamação não pode, pois, ser atendida, sendo de confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso. III Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar a reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 25 de Maio de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos