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Processo n.º 793/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 5 de Novembro de 1990, A. e B., melhor identificados nos autos, casados sob o regime de comunhão geral de bens, deduziram impugnação judicial da liquidação oficiosa de IRS respeitante ao ano de 1993, feita em 25 de Setembro de 1998, que os tornava devedores da quantia de 10 766 845$99 em razão do não pagamento de mais-valias pela venda, em 29 de Outubro de 1993, de um prédio doado à impugnante em 1 de Fevereiro de 1979, mas que fora alvo de alienação pelo casal em 20 de Março de 1984 (pela importância de três milhões de escudos) e re-adquirido pelo impugnante em 3 de Julho de 1990 (pela importância de um milhão e quinhentos mil escudos), correspondendo tais mais-valias à tributação da diferença entre este último valor de aquisição e o valor de venda em 1993, acrescida de juros compensatórios a favor do Estado. Invocaram os impugnantes que durante todo o período que medeou entre a doação do imóvel (1 de Fevereiro de 1979) e a última alienação (29 de Outubro de 1993) sempre ocuparam, exploraram e fruíram plenamente o referido prédio, com o seu agregado familiar, pois a “venda” de 1984 e a subsequente “compra” de 1990 tinham sido simuladas. Por decisão de 11 de Novembro de 2002, o Tribunal Tributário de 1ª instância de Braga deu como provado que “Os impugnantes decidiram declarar falsamente que vendiam o prédio em questão (...) para o furtarem a uma eventual penhora que pudesse seguir-se ao facto de o impugnante ter sido considerado, pela sua entidade patronal, implicado num desfalque de 500 000$00 (...)”, tendo considerado que as transacções de 1984 e de 1990 eram ambas nulas, a primeira por ter sido simulada e a segunda por corresponder à venda de bens alheios, e concluído que a data de aquisição do prédio, já então urbano, era 1979, data
“relativamente à qual (...) não se põe a questão de mais valias colocada na liquidação – ver art. 5º, n.º do DL n.º 442-A/88,de 30.11”, pelo que anulou a liquidação.
2.O representante da Fazenda Pública recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 1 de Outubro de 2003 da sua Secção de Contencioso Tributário, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e não anulando a liquidação impugnada. Baseou-se o Supremo Tribunal Administrativo, essencialmente, no facto de não ter havido decisão judicial autónoma a declarar nulas as alienações contrapostas de 1984 e 1990 e na opção do legislador, consagrada no artigo 32º do Código de Processo Tributário então em vigor, que considerou conforme a Lei Fundamental, dizendo:
“Assim sendo, por força do art. 32º do CPT a sentença recorrida deve ser revogada sendo de manter a liquidação efectuada. E não ocorre a mencionada inconstitucionalidade desta interpretação do mencionado art.º 32º do CPT, tal como a suscitam os impugnantes em face dos factos dados como provados nos n.ºs 3, 4, 5, e 6. Na verdade, os impugnantes não estavam impedidos de obter decisão judicial relativamente ao negócio jurídico eventualmente nulo desde que a respectiva acção fosse instaurada contra os sujeitos intervenientes em tal negócio e no tribunal competente para o efeito. E o mencionado art. 32º do CPT não impedia os impugnantes de exercitarem os seus direitos e até de conduzir à não tributação do negócio, constante de documento autêntico, desde que obtida decisão judicial a declará-lo nulo.
(...) Daí que não ocorra inconstitucionalidade em tal preceito normativo ao estabelecer que os negócios jurídicos nulos ou anuláveis constantes de documentos autênticos produzem os correspondentes efeitos jurídico-tributários enquanto não houver decisão judicial a declará-los nulos ou a anulá-los.”
3.Recorreu o impugnante para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, para ver apreciada a conformidade constitucional da norma do artigo 32º do Código de Processo Tributário, que impugnara perante o tribunal recorrido por, no seu entendimento, violar os “princípios constitucionais da legalidade e das garantias de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e, implicitamente, os arts. 3º,
103º, n.º 3, e 200º, n.º 2, da Constituição da República.” Admitido o recurso e determinada a produção de alegações, concluiu assim:
“I. O tribunal tributário de 1ª instância de Braga julgou procedente a impugnação deduzida pelos recorrentes, anulando a liquidação de imposto, na qual se considerou a data de realização de uma escritura de compra do prédio daqueles, outorgada em 1990. II. Na sua decisão, aquele tribunal de 1ª instância deu como provada a simulação da dita compra, bem como da anterior venda, ocorrida em 20/03/84 (3, 4 e 5 dos factos provados). III. Face às ditas simulações, os recorrentes foram detentores do prédio objecto da liquidação impugnada desde 1979 até efectiva venda em 1993, assim inexistindo motivação para liquidar qualquer imposto. IV. Após tramitação do recurso interposto pelo Digmº Representante da Fazenda Pública, o Supremo Tribunal Administrativo revogou a sentença da 1ª instância, julgando improcedente a impugnação, por considerar aplicável à situação dos autos o art.º 32º do Código de Processo Tributário. V. Tal norma (art. 32º do CPT) é inconstitucional, não só em si mesma, por permitir a tributação de actos meramente formais, não correspondentes a efectivos negócios jurídicos, mas também na interpretação propugnada pelo colendo STA, violando os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva. VI. Por um lado, tal norma admite ser tributável um acto, cuja simulação possa ser reconhecida pela administração fiscal, dada a concreta factualidade apurada,
‘exigindo’ uma outra decisão judicial a declarar a respectiva nulidade, preterindo, assim, factos reais a favor de meras formalidades. VII. Por outro lado, na interpretação do dito art. 32º do CPT feita pelo STA, a declaração de nulidade de actos simulados, conducente à procedência da impugnação, decretada pelo tribunal de 1ª instância de Braga, é excluída do conceito de decisão judicial, ínsito na dita norma, violando o princípio da jurisdicionalidade dos Tribunais Tributários, constitucionalmente acolhido no art. 212º, n.º 3, da Constituição da República. VIII. Além do mais, tendo sido revogado o art. 32º do CPT, e encontrando-se, actualmente, em vigor o art. 39º da Lei Geral Tributária (Dec.-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), cujo texto afasta, claramente, a tributação sobre negócios jurídicos simulados, sem exigência de declaração judicial autónoma, bastando, obviamente, a jurisdição dos tribunais tributários, afigura-se manifestamente ilegal a decisão do STA, ora recorrida, violadora do respectivo princípio constitucional da legalidade. IX. A aplicação da nova lei (art. 39º da LGT) decorre da aplicação do princípio de que, se da lei nova resultar benefício para o contribuinte, ela é de aplicar imediatamente (in Curso de Direito Fiscal, 2ª Edição, 1972, Livraria Almedina, pág. 243 - Prof. Cardoso da Costa), transposto para todo o sistema jurídico, desde a nossa Lei Fundamental. X. Além da violação dos princípios da legalidade, da igualdade e da capacidade contributiva, a norma correspondente ao art. 32º do CPT e a interpretação da mesma feita pelo STA violam o princípio da tributação do rendimento real, uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento. XI. O douto Acórdão do STA, ora recorrido, ao aplicar o art. 32º do CPT, violou o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos art.s 13º, n.º 1, e 104º, n.º 3, da Constituição da República, bem como o princípio da plena jurisdicionalidade dos tribunais tributários, consignado no art.º 212º, n.º 3, daquela Lei Fundamental e o da legalidade, instituído no n.º 2 do seu art. 202º.” Por sua vez, o representante da Fazenda Pública encerrou deste modo as suas contra-alegações:
“Desde logo, os artigos 32º do CPT e 39º da LGT, quanto à relevância dos actos nulos ou anuláveis para efeitos de qualificação como actos tributários, não divergem entre si quanto à exigência de decisão judicial de declaração do negócio simulado, constante de documento autêntico, para que seja afastada a tributação do negócio simulado. E, estando em causa negócio jurídico de direito privado constante de documento autêntico, a competência para a declaração de nulidade ou anulação do negócio pertence ao tribunal comum (artigo 66º do CPT) Sendo certo que através da acção de declaração de nulidade ou anulação do negócio, da competência do tribunal comum, fica plenamente assegurado ao impugnante um meio probatório idóneo para proceder à impugnação judicial da liquidação. O que não pode é trazer ao processo de impugnação da liquidação os meios de prova que poderia trazer na acção própria. O artigo 32º do CPT não ofende, assim, os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade e da capacidade contributiva e da tributação do rendimento ou da plena jurisdicionalidade dos tribunais tributários.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.É a seguinte a redacção da norma impugnada do Código de Processo Tributário:
“Artigo 32º Actos nulos ou anuláveis
1. Os actos ou negócios jurídicos nulos ou anuláveis constantes de documentos autênticos produzem os correspondentes efeitos jurídico-tributários enquanto não houver decisão judicial a declará-los nulos ou a anulá-los, salvo as excepções expressamente previstas nas leis tributárias.
2. A decisão judicial referida no número anterior implica a não tributação dos respectivos actos ou negócios jurídicos, sem prejuízo, porém, da tributação dos actos ou negócios jurídicos que subsistam.” Está em causa, porém, apenas o n.º 1 deste artigo 32º, já que a situação prevista no seu n.º 2 não chegou a verificar-se, não tendo este número sido aplicado, nem pela administração fiscal, nem pelas decisões judiciais recorridas. Por outro lado, o facto de esta norma não estar já em vigor – em resultado da entrada em vigor da Lei Geral Tributária, em 1 de Janeiro de 1999 – em nada afecta a actividade a desenvolver por este Tribunal, no presente contexto de fiscalização concreta da constitucionalidade, pois a decisão recorrida considerou-a aplicável ao caso dos autos e aplicou-a efectivamente. Não relevam, portanto, no presente contexto, as alegações do recorrente, quer quanto à mera inadequação da “aplicação de uma norma revogada, respeitando, fundamentalmente,
à interpretação de negócios jurídicos” – já que este Tribunal não é instância de reapreciação do modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 44/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º Vol., págs., 403-409, onde se escreveu que “o dado normativo a ser submetido ao parâmetro constitucional chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo pô-la em causa”) –, quer quanto ao sentido da norma do artigo 39º da Lei Geral Tributária, pois esta norma não foi aplicada na decisão recorrida.
5.O que há, portanto, que apreciar no presente recurso é se a norma do artigo
32º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, interpretada no sentido de ser necessária para efeitos tributários decisão judicial autónoma a declarar a nulidade de actos simulados, obtida em acção instaurada contra os sujeitos intervenientes no negócio e no tribunal competente para o efeito. Para os recorrentes, tal interpretação normativa viola os princípios da legalidade, da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, como alegado pelo recorrente, já que com isso se permite a “tributação de actos meramente formais, não correspondentes a efectivos negócios jurídicos”, bem como o princípio da plena jurisdicionalidade dos tribunais tributários ou outros princípios constitucionais aplicáveis (artigo 79º-C, da Lei do Tribunal Constitucional). Vejamos então.
6.Quanto ao princípio da legalidade, não se vislumbra indício de violação. Com efeito, a norma impugnada integra um decreto-lei (autorizado) – o Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril – e estava em vigor, quer no momento da transacção real, quer no da liquidação oficiosa do imposto. Assim sendo, nenhuma violação do princípio da legalidade lhe pode ser assacada. Das conclusões das alegações depreende-se, porém, que a ilegalidade é imputada antes “à decisão do STA”, o que, porém, não pode relevar na presente sede: é que objecto do recurso de constitucionalidade têm de ser normas, não podendo este Tribunal sindicar decisões jurisdicionais em si mesmas (cfr. v.g. Acórdãos n.ºs.
413/94, 605/94 e 521/95, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e 18/96 e
20/96, estes também aí, mas publicados ainda no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996 e de 16 de Maio de 1996).
7.Quanto ao princípio da igualdade, o argumento do recorrente é o de que, com a interpretação dada à norma do artigo 32º do Código de Processo Tributário, se defende “a manutenção de um acto tributário, tendo-se reconhecido no Tribunal de
1ª instância, a inexistência de factos que possam sustentar a tributação impugnada, por serem nulos.” Sobre o princípio da igualdade em matéria fiscal escreveu-se no Acórdão n.º
348/97 (publicado no DR, II Série, de 25 de Julho de 1997), repetindo-se no Acórdão n.º 358/00 (publicado no DR, II Série, de 10 de Novembro de 2000):
«O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º, n.º 2), isto constituído o princípio da igualdade tributária. Este princípio é relevante não apenas para o caso da imposição fiscal mas também para o caso das isenções e regalias fiscais, que não podem deixar de o respeitar sob pena de privilégio constitucionalmente ilícito (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 459). No âmbito dos impostos fiscais que aqui interessa considerar (as coisas não são inteiramente idênticas no plano da extrafiscalidade), a sua repartição deve assim obedecer ao princípio da igualdade tributária, fiscal ou contributiva que se concretiza na generalidade e na uniformidade dos impostos, sendo que, como ensina Teixeira Ribeiro (cfr. ob. cit., p. 261), “generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos, não havendo entre eles, portanto, qualquer distinção de classe, de ordem ou de casta, isto é, de
índole meramente política; por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos”. Deste modo, a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório), e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há-de obedecer a um critério idêntico para todos. E tal critério, como acentua José Casalta Nabais, Contratos Fiscais
(Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, p. 265 e ss., “(...) é o da capacidade contributiva (capacidade económica, capacidade para pagar, etc.), o que significa que os contribuintes com a mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)”, sendo certo que o âmbito subjectivo deste princípio vale tanto para os indivíduos (pessoas físicas) como para as pessoas colectivas. O legislador, na selecção e articulação dos factos tributáveis, deverá ater-se a factos reveladores da capacidade contributiva “definindo como objecto (matéria colectável) de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto”. A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, “um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo”.» A desigualdade do caso residiria, se bem se compreende, na tributação por factos inexistentes – ou seja, no fundo, na violação de um outro princípio constitucional em matéria fiscal, que é o princípio da capacidade contributiva, como também vem alegado. Ora, sobre este princípio – da capacidade contributiva – disse-se recentemente no Acórdão n.º 542/03 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) retomando o discurso do Acórdão n.º 84/03 (publicado no DR, II Série, de 29 de Maio de
2003):
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação. Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos
“impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, A justiça na tributação, in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português (a Carta Constitucional de
1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 1933, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”). Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa
“Constituição fiscal”, sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (cfr. Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, págs. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa). Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste jurídico-constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem definir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais, ob. cit., págs.
459 e 461). Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento”, exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível
(...)” (Direito Fiscal, págs. 157/168). De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal.
[...] certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afinal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (O dever fundamental..., págs. 497/498 e 501/502) considera, quando se refere a “soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fiscal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa “movida por legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pressuposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao
“rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”.» No presente caso, não se trata, porém, nem de presunções, nem da tributação do
“rendimento normal”, mas, antes, da verificação de factos jurídicos-tributários a que a lei ligava imperativamente determinadas consequências fiscais até à superveniência de uma decisão judicial a declará-los nulos ou a anulá-los. Note-se que, no caso, não é tanto a capacidade contributiva que está em causa – o valor de realização da venda, efectuada em 1993, é o mesmo qualquer que seja a data de aquisição do imóvel alienado –, mas antes o momento a partir do qual um determinado índice de capacidade contributiva fica sujeito a tributação de mais valias. Nessa medida, a alienação fictícia de 1984 e a re-aquisição, igualmente fictícia, em 1990, acabam por interferir com o montante do imposto a cobrar e, por essa via, por interferir com a determinação da capacidade contributiva. Daí que, mesmo não sendo arbitrário e destituído de fundamento objectivo e racional o momento a partir do qual a obrigação de pagamento de mais-valias se torna exigível (cfr. o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que, aliás, não vem questionado), nem destituída “de coerência lógica” a conexão
“entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto”, poderia a impossibilidade de se demonstrar que tal conexão não existe num caso concreto implicar uma tributação para lá, e até contra, a revelação da capacidade contributiva. No caso decidido pelo já citado Acórdão n.º 348/97 concluiu-se, assim, que uma presunção inilidível violaria o princípio da igualdade – citando Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, pág.
279: o que se justificaria para garantir “que o imposto se ligue a um pressuposto económico certo, provado e não apenas provável”. Em contrapartida, no também já referido Acórdão n.º 452/03 considerou-se que o conjunto de meios probatórios à disposição do impugnante era aí suficientemente amplo e que “a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais prevista no artigo
20º da Constituição não contempla a possibilidade de utilização irrestrita de todos os meios de prova em qualquer processo judicial (no caso, num processo de impugnação tributária)”. Ora, do que agora se trata, no presente recurso, não é de uma limitação de prova num processo de impugnação tributária, mas da inutilização da actividade probatória aí desenvolvida, já que embora o tribunal tributário de 1ª instância tenha concluído pela veracidade das alegações dos impugnantes – e tenha entendido que “declarou a nulidade dos negócios jurídicos de 20.3.84 e 03.07.90, como se prevê no art. 32º, n.º 1 do CPT”, pelo que a liquidação se não podia manter “contra a verdade económica dos factos a que se reporta” (fls. 80 dos autos) –, concluiu o Supremo Tribunal Administrativo que “não pode tal nulidade, por imperativo deste mesmo art. 32º do CPT, conhecer-se a título incidental em processo de impugnação do acto tributário da liquidação, uma vez que o legislador exige que tal declaração de nulidade ocorra em decisão judicial autónoma.” O que acaba por se reconduzir, portanto, à violação do último princípio invocado: o da plena jurisdicionalidade dos tribunais tributários consagrado no artigo 212º, n.º 3, da Constituição da República.
8.Ora, não existe na jurisdição administrativa, muito menos com a consagração constitucional, qualquer princípio de suficiência, ao contrário do que ocorre com o princípio da suficiência do processo penal (artigo 7º do actual Código de Processo Penal). Assim, onde certas questões prejudiciais tenham de ser decididas por outra ordem de tribunais como condição prévia ao exercício da jurisdição administrativa, ou como pressuposto da efectividade desse recurso, determina agora o artigo 15º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos
(aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro), que o juiz possa sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie, ficando tal suspensão sem efeito se a acção não for proposta no prazo de dois meses, ou o respectivo processo não tiver andamento no mesmo período por negligência das partes, caso em que os tribunais administrativos podem decidir a questão prejudicial com efeitos limitados ao contencioso administrativo. Na falta de previsão específica em processo tributário, a disposição aplicável era o artigo 4º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
129/84, de 27 de Abril, nos termos do qual “[s]e o conhecimento do objecto da acção ou do recurso depender da decisão de uma questão da competência de outros tribunais, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie”, fixando a lei de processo os efeitos da inércia dos interessados na instauração e andamento do processo respeitante à questão prejudicial (cfr. o artigo 2º, alínea b), do Código de Processo Tributário, e, agora, o artigo 2º, alínea c), do Código de Procedimento e de Processo Tributário). Tais opções legislativas – que passam, aliás, por fazer impender sobre os interessados o ónus do recurso à competente ordem de tribunais e de actuação diligente no decurso dessa acção prejudicial – garantem, porém, que não fica em causa o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição. É certo que não se impõe tal caminho ao juiz tributário, que pode, ou não, sobrestar na decisão. Entendeu o juiz da primeira instância não o fazer, e, em sentido diverso, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo que, face ao disposto no artigo 32º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, tinha de ter sido obtida decisão judicial autónoma a declarar a nulidade. E disse-se, correctamente, na decisão recorrida, com relevância para se não poder reconhecer qualquer violação da garantia de acesso aos tribunais, que “os impugnantes não estavam impedidos de obter decisão judicial relativamente ao negócio jurídico eventualmente nulo desde que a respectiva acção fosse instaurada contra os sujeitos intervenientes em tal negócio e no tribunal competente para o efeito.” Argumentou o recorrente, em sentido contrário, que, “dada a inexistência de litígio entre as eventuais partes (intervenientes nos negócios simulados), incongruente seria o recurso ao tribunal para dirimir algo que não carecia de intervenção judicial, atenta a implícita concórdia”; que faltaria, em suma, um pressuposto processual – “o interesse em agir”. Ainda que assim fosse – e, a sê-lo, só o seria num momento diferente (depois de as partes, pretendendo desfazer a aparência do negócio de 1984, celebrarem um negócio simétrico em
1990), pois até esse segundo momento as partes, de acordo, bem podiam ter recorrido aos tribunais cíveis, mais que não fosse para homologar um acordo de transacção reconhecendo a simulação –, convém não perder de vista que tal teria ocorrido por uma actuação imputável aos próprios simuladores, e que não surge, portanto, como arbitrária a responsabilização dos seus autores. Ao que acrescia a possibilidade de intentar tal impugnação judicial junto do competente tribunal tributário – onde o interesse em agir continuaria bem presente –, logo suscitando a questão da prejudicialidade da decisão civil, que passaria a ser, então, instrumental da decisão da questão tributária, com o requisito do interesse em agir a ser por essa via preenchido.
É verdade que uma norma que limitasse a actividade jurisdicional dos tribunais tributários, em benefício da competência de outras ordens judiciais, mas não admitisse a suspensão da instância (ou a dilação do prazo para impugnação do acto lesivo), até à decisão final desses tribunais, necessária para tornar efectiva essa impugnação, ou não fizesse reverter para esses tribunais tributários essa competência – com efeitos limitados ao processo tributário – poderia impedir, de facto, o acesso aos tribunais e, portanto, teria de se reputar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição da República. Mas nem o artigo
32º, n.º 1, do Código de Processo Tributário é essa norma, nem tal resulta de nenhuma outra norma, mesmo não impugnada no presente processo. Bem ao contrário, como se viu, a solução legal adoptada, quer na lei processual civil, subsidiariamente aplicável, quer na actual lei processual administrativa, salvaguarda cada uma dessas soluções. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 32º, n.º 1, do Código de Processo Tributário quando interpretada no sentido da necessidade para a procedência da impugnação de liquidação do imposto de mais-valias de decisão judicial autónoma a declarar a nulidade de actos simulados, obtida em acção instaurada contra os sujeitos intervenientes no negócio e no tribunal competente para o efeito.; b) Confirmar a decisão recorrida e condenar os recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos