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Processo n.º 217/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., B. e C., em processo em que D. e mulher E. peticionavam a confiança judicial dos menores F. e G., requereram ao Juiz do Tribunal Judicial da Comarca ------------- a sua citação para contestarem, invocando o primeiro requerente ser irmão e os dois restantes tios dos referidos menores. Sustentaram desde logo a sua legitimidade, aduzindo que a norma do artigo 164.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei n.º
314/78, de 27 de Outubro, sucessivamente alterada pelos Decretos-Leis n.ºs
185/93, de 22 de Maio, 48/95, de 15 de Março, 58/95, de 31 de Março, e 120/98, de 8 de Maio, pelas Leis n.ºs 133/99, de 28 de Agosto, 147/99, de 1 de Setembro, e 169/99, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 552/99, de 15 de Dezembro, e pela Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto – doravante designada por OTM), que dispõe “Requerida a confiança judicial do menor, são citados para contestar, salvo se tiverem prestado consentimento prévio, os pais, e, sendo caso disso, os parentes e o tutor referidos no artigo 1981.º do Código Civil e o Ministério Público, quando não for o requerente”, ao mencionar os parentes referidos no artigo 1981.º do Código Civil (que dispõe: “1. Para a adopção é necessário o consentimento: (...) d) Do ascendente, do colateral até ao 3.º grau ou do tutor, quando, tendo falecido os pais do adoptando, tenha este a seu cargo e com ele viva”), remete apenas para as categorias de parentes aí previstas – designadamente os colaterais até ao 3.º grau –, e não também para o requisito de terem a seu cargo e viverem com o menor, que só releva para efeitos de exigência de consentimento para a adopção, e não para efeitos de legitimidade para contestar o processo de confiança judicial, legitimidade que assiste aos requerentes, colaterais em 2.º (o primeiro) e 3.º (os restantes) graus dos menores, apesar de não terem estes a seu cargo nem com ele viverem (os menores, de origem guineense, viviam com os pais e com o irmão primeiro requerente, então ainda menor, na H., quando os pais faleceram, num acidente aéreo, com um avião da I., na Ilha de São Jorge, em 11 de Dezembro de 1999, na sequência do que os seus tios, segundo e terceiro requerentes, trouxeram para viver com eles, em J., o primeiro requerente, que entretanto atingiu a maioridade, ficando os menores mais novos provisoriamente confiados, por decisão judicial, a uns vizinhos, na H., que posteriormente requereram a sua adopção, de que o presente processo de confiança judicial constitui preliminar).
Por despacho de 19 de Dezembro de 2001, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de ----------------- indeferiu o requerido por entender que da remissão legal em causa resulta que só são citados os colaterais até ao 3.º grau que tenham os menores a seu cargo e com eles vivam, o que não ocorria com os requerentes.
Estes recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 11 de Junho de 2002, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Os recorrentes interpuseram recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando nas respectivas alegações, como aliás já o tinham feito nas alegações do recurso para a Relação, a questão da contrariedade entre a interpretação dada à norma do artigo 164.º, n.º 1, da OTM e o artigo 21.º, alínea a), da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro, que só aceita a adopção quando não for possível uma solução no quadro familiar próximo, assegurando-se a continuidade da educação da criança, os valores referenciais da sua origem étnica, religiosa, cultural e linguística
(artigo 20.º, n.º 3, in fine, da mencionada Convenção), com violação do primado do direito internacional previsto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e também dos mais elementares princípios constitucionais da relevância e prevalência da família, como elemento fundamental da sociedade
(artigo 67.º da CRP), desrespeitando-se ainda o direito de protecção da sociedade e do Estado relativamente a estas crianças órfãs, que vão ficar para sempre desenraizadas dos laços consanguíneos, culturais, étnicos e do relacionamento e convívio com a “família alargada” – os avós, o irmão, os tios, etc., em violação dos artigos 63.º, n.º 3, e 69.º, n.º 2, da CRP e 1887.º-A do Código Civil.
A esse recurso foi negado provimento pelo acórdão de 13 de Fevereiro de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça, com a seguinte fundamentação:
“8. A questão decidenda centra-se em saber se, face ao preceituado no artigo
164.º do Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio [quis-se referir o artigo 164.º da OTM na redacção dada por este Decreto-Lei], assiste ou não aos ora agravantes legitimidade para contestarem o pedido de confiança judicial dos menores. Ora, há desde já que adiantar que bem andaram as instâncias ao concluírem pela resposta negativa a tal interrogação. A norma em apreço estabelece claramente quais as pessoas que devem ser citadas para contestarem a confiança judicial de menores com vista a uma futura adopção: apenas o deverão ser os respectivos progenitores naturais, excepto se prestado consentimento prévio.
É verdade que o preceito logo acrescenta que, «sendo caso disso», serão também citados os parentes ou o tutor referidos no artigo
1981.º do Código Civil. Mas estes só serão citados se se encontrarem na situação excepcional contemplada na lei, ou seja, e designadamente, se houverem falecido os pais do adoptando, tenham este a seu a cargo e com ele convivam – cf. alínea d) do n.º 1 desse último preceito.
Na hipótese vertente, é certo que os pais dos menores já faleceram, mas não vem, todavia, provado que os menores estejam actualmente a cargo dos ora agravantes ou que com eles convivam.
É, de resto, perfeitamente compreensível a referida limitação legal: a necessidade de citação de todos os putativos parentes do adoptando, quiçá desconhecidos ou residentes em país estrangeiro, e sem qualquer ligação próxima ou afectiva ao menor, para além da ilogicidade de que se revestiria, poderia protelar indefinidamente o desfecho final da providência, ao arrepio do carácter urgente que naturalmente a exorna (artigo 34.º da OTM de
1978).
Violará, um tal entendimento, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, designadamente a alínea a) do respectivo artigo 21.º, como sustentam os agravantes?
Tal como bem entenderam as instâncias, a resposta só poderá também ser negativa.
Postula – é verdade – aquela Convenção que a adopção só terá lugar face à situação da criança relativamente a seus pais, parentes e representantes legais. Ora, no caso dos autos, três circunstâncias se tornam incontornáveis: o decesso dos progenitores dos menores, a não convivência
(física e afectiva) e a não dependência económica dos menores relativamente aos parentes ora agravantes.
Isto sem embargo de os parentes – mesmo não tendo que ser citados para contestarem a confiança judicial – poderem, a todo o tempo, ser ouvidos se o tribunal considerar essa audiência relevante para o interesse dos menores, quer em relação à confiança judicial, quer à própria decisão sobre a adopção, nos termos conjugados do disposto nos artigos 147.º-A e 165.º a 171.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na actual redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio, e no artigo 4.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).
E tudo sem olvidar que os menores se encontram legalmente representados pelo Ministério Publico, que, no seu exclusivo interesse, sempre poderá requerer as medidas que considerar mais adequadas – intervenção principal essa genericamente contemplada nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 1, alínea c), da LOMP (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro).
Não há, pois, que confundir citação obrigatória – relativamente à qual vigora um princípio legal de numerus clausus – com diligências ou intervenções processuais avulsas que o tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento do representante legal dos menores, se decida a proceder sempre que tal repute de necessário para a defesa do interesse dos menores ao abrigo do disposto no artigo 165.º da OTM de 1978 (Decreto-Lei n.º
314/78, de 27 de Outubro).
Não se pode, na verdade, olvidar que em procedimentos congéneres – legalmente qualificados como de jurisdição voluntária (artigo 150.º da OTM de 1978) – prevalece o princípio do inquisitório sobre o dispositivo quanto ao respectivo objecto, podendo, por isso, sempre o tribunal «investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes» (artigo 1409.º, n.º 2, do CPC), não obstante só serem admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 1409.º, n.º 2, do CPC); tudo sem que esteja limitado, em regra, aos factos articulados pelas partes (artigo 660.º, n.º 2, do CPC).
Com o que se rejeita a arguição da inconstitucionalidade orgânica, formal ou material do n.º 1 do artigo 164.º da OTM, por não se descortinar, em tal preceito adjectivo, qualquer ofensa – no respectivo conteúdo ou no respectivo processo de gestação legislativa – ao cerne ou âmago da Convenção sobre os Direitos da Criança ou ao primado do direito internacional previsto no artigo 8.º da CRP.
Rejeita-se, outrossim, a aventada violação dos princípios constitucionais da relevância e prevalência da família, como elemento fundamental da sociedade (artigo 67.º da CRP), e também um hipotético
«abuso do direito» aqui chamados à colação com manifesto despropósito e sem a adequada substanciação.”
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), “em ordem à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 164.º, especialmente o seu n.º 1, da Organização Tutelar de Menores [Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio – OTM], por violação do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que este preceito da Lei Fundamental consagra a primazia do Direito Internacional na ordem interna portuguesa e quer as decisões das instâncias, quer o douto Acórdão ora recorrido, se basearam no citado preceito da OTM, quando é certo que o mesmo contraria o disposto nos artigos 8.º, n.º 1, 20.º, n.º 3, 21.º, alínea a), 29.º, n.º 1, alínea c), e 30.º da Convenção sobre os Direitos das Crianças, ratificada pela Resolução da Assembleia da República, n.º 20/90, de 12 de Setembro, que estabelecem a regra de que a adopção só deverá ser aceite quando não for possível uma solução no quadro familiar próximo, assegurando-se a continuidade da educação da criança, os valores referenciais da sua origem
étnica, religiosa, cultural e linguística”, ao que acresce que “o referido preceito da OTM, ao afastar a intervenção dos parentes próximos dos menores no processo de confiança judicial, segundo a interpretação feita pelas doutas decisões recorridas, viola igualmente o princípio do primado da família, «como elemento fundamental da sociedade», consagrado no artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa”.
Os recorrentes apresentaram alegações, que culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – Os menores identificados nos autos são cidadãos da República da Guiné Bissau.
2.ª – Os pais dos menores, também eles cidadãos da República da Guiné, faleceram ambos no dia 11 de Dezembro de 1999, em consequência da queda do avião da I. em que viajavam.
3.ª – O primeiro recorrente é parente dos menores no 2.º grau da linha colateral (irmão) e os demais recorrentes são-no no 3.º grau da mesma linha (tios).
4.ª – Os recorrentes requereram ao Tribunal Judicial da Comarca de -------------------------- que ordenasse a sua (deles) citação no processo de confiança judicial dos menores, a fim de poderem contestar o pedido formulado pelo casal D. e mulher E., os quais não têm quaisquer laços de parentesco ou afinidade com os menores.
5.ª – O M.mo Juiz do Tribunal Judicial de ------------- indeferiu o mencionado requerimento dos recorrentes, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 1981.º do Código Civil, para onde remete o artigo 164.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores (OTM), Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 185/93, de 22 de Maio, e 120/98, de 8 de Maio, e pelas Leis n.ºs 166/99, de 14 de Setembro, e 147/99, de 1 de Setembro.
6.ª – Sucede, porém, que, no entender dos recorrentes, o artigo 164.º, n.º 1, da OTM e o artigo 1981.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, enfermam do vício de inconstitucionalidade porque, ao possibilitarem ao julgador, em caso de morte simultânea de ambos os pais, afastar os parentes mais próximos dos menores de toda a possibilidade de os manterem integrados no seio da sua família natural e, deste modo, fazer tábua rasa da «origem étnica, religiosa, cultural e linguística» dos menores, viola os artigos 21.º, alínea a), e 20.º, n.º 3, in fine, da Convenção sobre os Direitos da Criança, vigente em Portugal desde 26 de Outubro de 1990 (Diário da República, n.º 211, Suplemento, I Série, de 12 de Setembro de 1990).
7.ª – Aliás, a ideia da prevalência da família dos adoptandos está bem vincada em dois dos considerandos do preâmbulo da citada Convenção sobre os Direitos da Criança, o que favorece a aqui propugnada interpretação das respectivas disposições.
8.ª – Por outro lado, o artigo 164.º, n.º 1, da OTM e a alínea d) do n.º 1 do artigo 1981.º do Código Civil também contrariam a letra e sobretudo o espírito do artigo 5.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, que vincula os Estados Partes a respeitar «as responsabilidades e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada», assim como violam o artigo 8.º, n.º 1, da mesma Convenção, que obriga as Estados Partes a «respeitar o direito da criança e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência legal».
9.ª – A Convenção sobre os Direitos da Criança vigora na ordem jurídica portuguesa, por força do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República e, portanto, não pode ser derrogada ou contrariada pelos citados artigos 164.º, n.º 1, da OTM e 1981.º, alínea d), do Código Civil.
10.ª – Para além do já exposto nas conclusões precedentes, cumpre ainda notar que os citados artigos 164.º, n.º 1, da OTM, e
1981.º, alínea d), do Código Civil, ao atribuírem ao juiz o poder de obstar a que os parentes próximos dos menores intervenham no processo de confiança judicial, no caso dos autos, contrariam igualmente o espírito do artigo 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que qualifica a família como
«elemento fundamental da sociedade».
11.ª – O supracitado artigo 67.º da CRP está inserido na Parte I, que estabelece os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos (no aspecto em questão extensivos aos cidadãos estrangeiros – artigo 15.º, n.º 1, da CRP), e, por isso, deve ser interpretado e integrado de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16.º, n.º 2, da CRP), a qual, no seu artigo 16.º, n.º 3, consagra a regra de que «a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado».
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo:
“1.º – A norma constante do n.º 1 do artigo 164.º da Organização Tutelar de Menores, ao regular o exercício do contraditório no
âmbito do processo tutelar cível de confiança judicial do menor, tem de ser interpretada em termos funcionalmente adequados, não podendo conduzir a denegar a legitimidade a quem revele um interesse directo em intervir no processo, com vista a contraditar a pretensão do requerente – aduzindo a sua perspectiva acerca da melhor realização do interesse do menor.
2.º – Tal interesse directo em intervir pode radicar, em termos bastantes, na invocação de uma relação familiar com o menor – tutelada pelo artigo 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – e ainda que – por motivo estranho à vontade de tal familiar – ele não exerça a «guarda de facto» do menor, judicialmente confiado a terceiro, imediatamente após o falecimento de ambos os progenitores.
3.º – É inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20.º e 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa que denega legitimidade para intervir no referido processo aos familiares do menor que – após falecimento de ambos os progenitores – o não têm a seu cargo, por motivo estranho à sua vontade, apesar de manifestarem um interesse em intervir espontaneamente na causa.”
Os recorridos D. e mulher E. não apresentaram alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, isto é, tem por fundamento a aplicação na decisão recorrida de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Para este efeito, releva apenas a “inconstitucionalidade directa”, ou seja, a violação de normas ou princípios constitucionais directamente imputada à norma de direito infraconstitucional aplicada na decisão recorrida, não constituindo questão de inconstitucionalidade a alegada violação, pela norma questionada, de convenção internacional, mesmo que aí se vislumbre, indirectamente, desrespeito pela regra da supremacia do direito internacional convencional sobre o direito interno ordinário contida no artigo
8.º da CRP (“inconstitucionalidade indirecta”). A questão da contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção internacional só pode ser conhecida pelo Tribunal Constitucional nas duas hipóteses contempladas na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ter a decisão recorrida recusado a aplicação da norma legal com esse fundamento ou tê-la aplicado em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional –, e já não, como é o caso do presente recurso, na hipótese de a decisão recorrida ter aplicado norma legal apesar de o recorrente ter sustentado a sua contrariedade com norma convencional internacional.
Porém, os recorrentes também imputaram à norma do artigo
164.º, n.º 1, da OTM, vício de inconstitucionalidade “directa”, por violação do artigo 67.º, n.º 1, da CRP, e, nesta perspectiva, nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso, sendo lícito ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79.º-C da LTC, julgar inconstitucional a norma aplicada na decisão recorrida com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada pelos recorrentes, designadamente por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º
1, da CRP, conforme se sustenta nas alegações do Ministério Público.
2.2. Como se salienta nessas alegações do Ministério Público, a norma questionada (artigo 164.º, n.º 1, da OTM) situa-se no âmbito dos processos tutelares cíveis e dispõe sobre a legitimidade para intervir, como requerido, no processo de confiança judicial dos menores, prévio ao decretamento da adopção. Segundo ela, na interpretação dada pelas instâncias e cuja correcção não cumpre agora questionar, são citados para contestar a providência os pais (salvo se tiverem prestado consentimento prévio para a adopção) e “sendo caso disso”, os parentes ou o tutor referidos na alínea d) do n.º 1 do artigo 1981.º do Código Civil (o ascendente, colateral até 3° grau ou tutor quando, tendo falecido os pais dos adoptandos, tenham o menor a seu cargo e com ele vivam), bem como o Ministério Público, quando não for o requerente.
No âmbito do presente recurso, não está em causa a apreciação da decisão de mérito proferida acerca da confiança judicial, em que o juiz avalia, em termos prudenciais e casuísticos, o interesse dos menores, mas apenas a sindicância da constitucionalidade da norma, de dimensão puramente processual, referente à intervenção no processo, e consequente exercício do contraditório, por parte de familiares dos menores cujos pais falecerem, e que com aqueles não conviviam (os segundo e terceiro requerentes, tios dos menores) ou que com eles deixaram de conviver após a morte dos pais (o primeiro requerente, irmão dos menores, que passou a viver com os tios).
Colocada a questão nesta perspectiva, compreende-se que, nas citadas alegações do Ministério Público, se considere essencial deslocar o parâmetro de aferição da constitucionalidade para o direito de acesso à justiça, embora conjugado com a relevância dos laços familiares reconhecidos pelo artigo 67.º da CRP, e se formule nestes termos a questão a que há que dar resposta neste recurso: será conforme ao artigo 20.º, n.º 1, da CRP considerar que tais familiares não são detentores de um interesse directo em contradizer a pretensão de confiança judicial do menor, com o mero fundamento de que com ele não convivem de facto?
2.3. A resposta a esta questão não pode abstrair da situação concreta dos ora recorrentes no que respeita ao seu relacionamento com os menores, mas pressupõe a prévia densificação do conceito constitucional de
“família”, utilizado no artigo 67.º da CRP.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de proceder a essa densificação, embora a propósito da legitimidade para constituição como assistente em processo penal. Fê-lo no Acórdão n.º 690/98
(Diário da República, II Série, n.º 56, de 8 de Março de 1999, pág. 3411; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41.º vol., pág. 579), que julgou inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivido cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens, e não tenha descendentes. Ponderou-se nesse Acórdão:
“15. O recorrente confronta a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma em apreço com o disposto nos artigos 67.º e 68.º da Constituição.
(...)
O que está em causa, antes, é determinar qual o âmbito do conceito de família adoptado pela Constituição, e ao qual se refere o n.º 1 do artigo
67.º, para então determinar se a prevalência absoluta atribuída pelo legislador ordinário, no âmbito do processo penal, à família nuclear – cônjuge e filhos – conflitua ou não com o entendimento constitucional.
Ou seja, a norma constitucional com que se há-de confrontar a norma vertida no artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do CPP, é a do artigo 67.º, n.º 1, da CRP, a qual dispõe: «A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros».
Importa, então, densificar esse conceito de família no sentido de apurar se o mesmo apenas se reporta ao conceito da família nuclear, atrás definido, ou se tem em mira um conceito mais alargado de família.
16. A distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio, por outro, referida no artigo 37.º, n.º 1, e ainda entre aquela e os conceitos de paternidade e maternidade, operada nos artigos 67.º e 68.º, em nada dificulta, antes parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família conjugal. Assim, as referências ao «agregado familiar», aos «equipamentos sociais de apoio à família», como a uma «política de terceira idade» (cf. artigo 67.º, alíneas a) e b)), são alguns dos índices que relevam a expressa admissão de duas realidades complementares: por um lado, o conjunto nuclear formado pelos cônjuges e descendentes, e, por outro, o conjunto resultante das ligações familiares dos próprios cônjuges – e na primeira linha dos quais se inserirão os ascendentes destes, mas também os irmãos, designadamente.
A recente evolução da tradicional família alargada, característica essencialmente do meio rural, bem como de outras «fórmulas» familiares, tem sido exaustivamente analisada e inventariada pela doutrina (cf., por exemplo, Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1987; Eduardo dos Santos, Direito da Família, Coimbra, 1985; Pereira Coelho, Direito da Família, Coimbra, 1981, e ainda o seu estudo «Casamento e Família no Direito Português», Temas de Direito da Família, Coimbra, 1986; Diogo Leite de Campos, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, 1990, entre outros), concluindo esta pela tendencial
«redução» da família moderna à família conjugal ou nuclear, ou seja,
«circunscrita ao seu núcleo irredutível» (cf. Antunes Varela, obra citada, pág.
38), e caracterizada pelo progressivo esbatimento dos laços do parentesco colateral.
Mas assim como se reconhece constitucionalmente a importância dessa família nuclear ou conjugal, dessa célula essencial, não se está com isso a rejeitar protecção ou a deixar de reconhecer as restantes relações familiares, derivadas dos laços de parentesco, de consanguinidade e mesmo de afinidade. Deve, com efeito, entender-se que a referência constitucional à família – fundamentalmente no artigo 67.º, n.º 1, da CRP –, para além do mais, consagra o expresso reconhecimento constitucional dos laços familiares de parentesco, ou seja, consagra um conceito mais alargado de família, que poderemos designar de família estirpe, ou família linhagem (cf. Eduardo dos Santos, obra citada).
E se a importância e relevância constitucional da família nuclear é um dado irrefutável, resulta do exposto que o legislador constitucional não ignorou este conceito alargado da família estirpe como também merecedor de tratamento e protecção, reconhecendo a sua importância para o desenvolvimento harmonioso da sociedade e dos cidadãos. Se a família nuclear é o primeiro círculo social do indivíduo, é nas relações familiares, na descoberta da pertença a um grupo marcado ou definido pelos laços sanguíneos e de afinidade que o indivíduo prossegue o seu desenvolvimento humano e social, que estabelece as primeiras relações sociais, enfim, descobre a sua identidade, e as suas raízes. Ignorar tal realidade seria negar a própria colectividade.
Assim sendo, não seria legítimo ao legislador ordinário afastar, pura e simplesmente, os ascendentes do ofendido, em caso de morte deste, da possibilidade de se constituírem assistentes no processo penal.
17. De tal reconhecimento não decorre necessariamente a obrigatoriedade para o legislador de tratar de forma idêntica aqueles dois conceitos de família, pois têm diferentes planos de consagração constitucional, espelhando, aliás, a realidade social e a diversidade das respectivas funções.
Assim, também não se afigura que esteja a priori vedado ao legislador optar pelo cônjuge sobrevivo como aquela pessoa que, dentro desse núcleo familiar (ainda que entendido de forma abrangente), se encontrava em mais íntima e estreita ligação com o falecido, para prosseguir os interesses visados pela constituição de assistente em processo penal, concedendo-lhe prioridade no exercício desse direito.
Dir-se-á até que tal opção vem na linha do expresso reconhecimento constitucional da prevalência da família nuclear.
A questão que se coloca, então, é tão-só a de apurar da relevância da separação de facto nos casos de desagregação daquela família nuclear. Ou seja, rompendo-se os laços de facto que uniam os cônjuges, ainda que não tenham legalizado tal rompimento, através da separação judicial, deverá continuar a privilegiar-se a posição do cônjuge sobrevivo como detentor da relação mais próxima, mais íntima com o falecido?
A verdade é que as relações de proximidade que fundamentam a opção pela absoluta prevalência ao cônjuge sobrevivo se encontram, nessa situação, profundamente abaladas, podendo mesmo ser totalmente inexistentes, sobretudo nos casos em que a respectiva união não deixou descendentes. Tal afastamento de facto terá muitas vezes, se não quase sempre, como consequência que o cônjuge sobrevivo não manifeste qualquer interesse em agir processualmente, considerando-se totalmente estranho à questão.
Com efeito, não se pode ignorar que, cada vez mais, na sociedade actual, por largas camadas da população, o casamento deixa de ser encarado como uma instituição acima dos próprios cônjuges, para assumir as características de uma instituição que apenas permanece enquanto ambos, de forma livre, a reconhecerem como fonte de afecto e realização pessoal. Tal não se verificando, essa mútua vontade de vida em comum pode cessar, de modo tão voluntário como se iniciou, enquanto que os laços de consanguinidade como os que ligam pais e filhos revestem características indissolúveis, pela sua própria natureza de proximidade e ligação.
Ora, no âmbito de uma tal realidade social, forçoso é reconhecer que a quebra da vida em comum, ainda que traduzida pela mera separação de facto, implica uma ruptura das relações conjugais com dimensão suficiente para que a ordem jurídica a deva ter em consideração para determinados efeitos, à semelhança, aliás, com o que acontece, em sentido inverso, com as denominadas uniões de facto.
Impedir, nestas hipóteses, o direito de constituição como assistentes aos ascendentes do falecido significa, portanto, negar de forma injustificada a possibilidade de actuação ou expressão dos interesses que se pretendem prosseguir com tal instituto, o que se revela, nesta perspectiva, atentatório do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, quando conjugado com o preceituado no seu artigo 67.º, n.º 1.”
Em casos como o presente, em que está justamente em causa a protecção de menores que perderam os pais, o conceito relevante de família não pode deixar de ser o de família alargada, tendo o legislador ordinário procedido ao alargamento dos familiares com legitimidade para intervenção processual aos ascendentes e aos colaterais até ao 3.º grau. No presente caso, aliás, o primeiro requerente integra mesmo a família nuclear, tendo vivido com os seus irmãos e os seus pais até à morte destes.
2.4. Assente a relevância, no caso, do direito da família dos menores (“família alargada”) à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros, consagrado no artigo 67.º, n.º 1, da CRP, interessa agora apurar se o entendimento adoptado pelas instâncias respeita o direito de acesso aos tribunais que o artigo 20.º, n.º 1, da CRP, assegura a todos, não apenas para defesa dos seus direitos, mas também dos seus interesses legalmente protegidos.
A este respeito, importa salientar que, no caso dos autos, os familiares dos menores tomaram a iniciativa de formular um verdadeiro pedido de intervenção espontânea no processo, pelo que não se trata de afirmar um (claramente excessivo) dever do tribunal, no âmbito do referido processo tutelar cível, de identificar e citar, obrigatória e oficiosamente, todos os
“putativos parentes do adoptando, quiçá desconhecidos ou residentes em país estrangeiro”, mas tão-só de admitir, ou não, a intervir na causa os que manifestaram expressa e tempestivamente o interesse em nela participar, com vista a exercerem o contraditório, estando, assim, obviamente arredado qualquer risco de se “protelar indefinidamente o desfecho final da providência, ao arrepio do carácter urgente que naturalmente a exorna (artigo 34.º da OTM de
1978)”, como se expressa o acórdão recorrido.
E, por outro lado – e decisivamente –, não pode deixar de se ter em consideração, como também se salienta nas alegações do Ministério Público, que “a inexistência do referido convívio de facto não pode imputar-se a qualquer situação objectiva e credível de desinteresse pelo destino dos menores – radicando tão-somente em que a confiança judicial provisória foi conferida judicialmente a terceiro” (os vizinhos a quem os menores ficaram entregues quando os seus pais empreenderam a viagem em que viriam a falecer e que posteriormente requereram a sua adopção) – “imediatamente após o decesso de ambos os progenitores, sem que os ora recorrentes tivessem qualquer oportunidade de participação em tal procedimento e de exercerem efectivamente a «guarda» dos menores”. Situação de desinteresse cuja imputação ainda é mais desajustada relativamente ao primeiro recorrente, irmão mais velho dos menores, que vivia com eles e com os pais, que ainda era menor à data da morte destes, tendo vindo viver com os tios, segundo e terceiro requerentes, e que, atingida a maioridade, com estes veio requerer a possibilidade de intervir no processo, possibilidade que lhe foi negada pelas decisões das instâncias.
A situação dos presentes autos é substancialmente diferente daquela sobre que recaiu o recente Acórdão n.º 141/2004, de 10 de Março de 2004, deste Tribunal (texto integral disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), que não julgou inconstitucional a norma do artigo 123.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1/9, interpretada no sentido de que atribui legitimidade para recorrer das decisões que se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção a quem tiver a guarda de facto da criança ou jovem, mas não às entidades a quem tinha sido atribuída a confiança provisória do menor. É que, nesta última hipótese, a instituição em causa “apenas é chamada a intervir em colaboração com o tribunal, por incumbência deste, em termos precários e provisórios, para acolher crianças e prover ao seu sustento, educação e conforto, mas sem que lhe sejam concedidos poderes de representação e sempre sob o poder decisório do tribunal com que colaboram”, enquanto os familiares dos menores pretendem intervir como titulares de interesses autónomos, legal e constitucionalmente protegidos.
Surge, assim, no presente caso, “como manifestamente excessivo e desproporcionado” – como sustenta o representante do Ministério Público neste Tribunal – “o entendimento que conduza a condicionar a intervenção pessoal dos familiares dos adoptandos em função da existência de uma situação de «guarda de facto» do menor”, mesmo quando aqueles, “tendo conhecimento do processo, se apresentam a manifestar a vontade de nele intervirem espontaneamente, de modo a que – com os argumentos aduzidos – possam determinar uma mais exacta e ponderada valoração do «interesse do menor»”, sendo patente, por outro lado, que este “interesse directo em contradizer não é (...) alcançado através de uma hipotética e eventual audição avulsa, determinada discricionariamente pelo tribunal”. Na verdade, “os familiares próximos são detentores de um interesse próprio e directo em exporem no processo o seu entendimento e perspectiva sobre o interesse dos menores – o qual não será suficientemente acautelado e realizado através de um intervenção eventual, discricionariamente possibilitada pelo tribunal, apenas quando o entenda conveniente” – intervenção essa que, aliás, nos presentes autos nada indica ter sido determinada pelo tribunal.
Da conjugação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e
67.º, n.º 1, resulta, pois, não ser “legítimo ao legislador ordinário afastar, pura e simplesmente, de qualquer intervenção no âmbito do processo tutelar cível de confiança judicial os familiares mais próximos do menor – que lhe restam, após o falecimento conjunto dos progenitores –, com o simples argumento de que – por motivos estranhos à sua vontade – não exercem a «guarda de facto» dos menores”, denegação de acesso ao tribunal que é particularmente chocante quanto ao primeiro requerente, irmão mais velho dos menores, que com eles sempre conviveu até que a morte simultânea dos respectivos progenitores determinou a sua separação.
Impedir, nesta hipótese, o direito de intervenção processual dos familiares mais próximos dos menores, que se interessaram por requerer essa intervenção, significaria negar de forma injustificada a possibilidade de actuação ou expressão dos interesses que se pretenderam prosseguir com a previsão legal, na norma questionada, da citação dos parentes dos menores para contestarem o pedido de confiança judicial, o que se revela, nesta perspectiva, atentatório do artigo 20.º, n.º 1, da CRP, quando conjugado com o preceituado no seu artigo 67.º, n.º 1.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, e 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 164.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 120/98, de 8 de Maio), interpretada no sentido de denegar legitimidade para intervir no âmbito do processo tutelar cível de confiança judicial de menor aos seus parentes colaterais até ao 3.º grau, que, após falecimento de ambos os progenitores do menor, o não têm a seu cargo por motivo estranho à sua vontade, apesar de manifestarem interesse em intervir espontaneamente na causa; e, consequentemente,
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Abril de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos