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Processo n.º 173/04
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 17 de Março de 2004 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto por A. com o seguinte teor:
«I. Relatório
1. Por decisão de 4 de Abril de 2002, do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, o arguido A. foi condenado por um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por 4 anos na condição de pagar 25.000.000$00 à Segurança Social no prazo de 3 anos, ficando ainda proibido de exercer funções de gerência em sociedades comerciais por um prazo de 4 anos, tendo ainda sido condenado em custas. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa onde, designadamente, questionou a realização do julgamento na sua ausência, escrevendo nas suas alegações:
«Com efeito, nos termos do art. 332º, n.º 1, do CPP de 1987 (diploma que se aplica por que mais favorável), “é obrigatória a presença do arguido na audiência...”, sendo esta adiada caso haja falta do arguido (art. 333º do CPP/87). Só assim não seria se ao caso coubesse processo sumaríssimo e o procedimento tivesse sido reenviado para a forma comum ou se o arguido tivesse requerido ou consentido que a audiência tivesse lugar na sua ausência (art. 334º do CPP/87). E certo é que, logo à primeira data, tendo o arguido apresentado atestado médico e requerido o adiamento da audiência, iniciou-se logo a mesma, o que violou os supra citados preceitos legais e ainda os arts. 29º, n.º 4, in fine e 32º, n.º
6, da Constituição da República Portuguesa, impondo-se, por isso, a anulação do julgamento e a sua repetição com a presença do arguido.» Com pequenas alterações, este texto foi levado às primeiras sete conclusões das alegações, não se fazendo nas alegações quaisquer outras referências a normas ou princípios constitucionais eventualmente violados. Por acórdão de 30 de Setembro de 2003, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida, considerando-se, quanto à questão prévia “resultante do facto de a audiência de discussão e julgamento ter sido realizada na ausência do recorrente”, o seguinte (após passar-se em revista a evolução do regime da presença do arguido em audiência, na redacção introduzida no Código de Processo Penal pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e pela Lei n.º 59/98, de
25 de Agosto):
«O arguido passa a poder ser julgado na ausência, desde que:
– Haja prestado TIR, nos termos do artigo 196º, na redacção do Dec-Lei n.º
320-C/2000 (...);
– O Tribunal de julgamento considere dispensável a presença do arguido, sendo representado por advogado constituído ou defensor nomeado e [sendo] todas as declarações, produzidas, no decurso do mesmo documentadas (arts. 332º e 333). Vejamos o caso dos autos. O arguido/recorrente não põe em causa a notificação que lhe foi feita, com datas designadas para julgamento, a qual se mostra devidamente efectuada como consta de fls. XXX tendo em mente que havia prestado TIR, nos termos supracitados. E o Sr. Juiz pronunciou-se acerca da ausência do arguido (fls. 1035 e 1036) da seguinte forma:
“Quanto à falta do arguido e independentemente da justificação ou não justificação da sua falta, o Tribunal, nos termos do art. 333º, n.º 1 e 2, do CPP, não considera absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência pelo que, ao abrigo destes normativos, se procederá ao início da audiência, sem prejuízo do arguido manter o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência. Assim sendo, ordena-se a documentação de todas as declarações, art. 333º, n.º 2, do CPP.” Perante tais factos e atento o teor do despacho que se transcreveu, nenhum atropelo às regras processuais foi cometido ou coarctado o direito de defesa do recorrente, improcedendo a questão prévia em análise.» O arguido apresentou requerimento de aclaração e de arguição de irregularidades e nulidades da referida decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, em que alegou não ter sido
“devidamente apreciada a questão da invocada violação dos arts. 29º, n.º 4, in fine, e 32º, n.º 6, da C.R.P., na interpretação feita da aplicabilidade imediata do novo regime que permite a realização do julgamento na primeira data marcada ainda que o arguido ausente tenha justificado a sua falta, se não prescindir de estar presente e tenha requerido o adiamento da audiência.” E acrescentou:
“Com efeito, o douto acórdão infirmou os argumentos apresentados pelo recorrente por remissão para o despacho do Meritíssimo Juiz de Direito, assumindo, assim, que a aplicação dos preceitos processuais penais actuais é, no caso concreto, correcta. Fez, assim, uma interpretação e aplicação do novo normativo contrária
à referência constitucional dos direitos de defesa – sua amplitude e efeitos – e aos artigos 29º, n.º 4, e 32, n.º 6, da Lei Fundamental, interpretação normativa que, s.m.o., é inconstitucional. Isto porque, como acima se referiu, a questão em apreço resume-se ao princípio processual penal da aplicação da lei no tempo, que foi olvidado. Ora, tendo presente aquele princípio, a interpretação que se faça dos artigos
29º, n.º 4, e 32º, n.º 6, da C.R.P. nunca poderá ser a que consta implicitamente do douto acórdão. Ademais, o recorrente invocou no seu recurso precisamente a violação destes princípios, o que manifestamente foi causa do atropelo àquelas normas constitucionais, que deverão ser interpretadas e aplicadas à luz da lei processual que for mais favorável.” O requerimento foi indeferido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9 de Dezembro de 2003, que considerou estar a “questão do julgamento na ausência do arguido (...) devidamente estudada e (...) de acordo com a jurisprudência recente desta Secção e maioritária nos tribunais superiores”.
2. O recorrente veio então apresentar o presente recurso para o Tribunal Constitucional, transcrevendo no respectivo requerimento as primeiras sete conclusões das alegações que dirigiu ao Tribunal da Relação de Lisboa, bem como o trecho das alegações a que correspondiam (e de que se deixou transcrição acima) e um trecho – mais extenso do que o que foi transcrito supra – do requerimento de aclaração e arguição de irregularidades e nulidades. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. Analisados os autos, verifica-se que não se pode tomar conhecimento do recurso, pelo que é caso de proferir decisão sumária, nos termos do artigo
78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Na verdade, é sabido, tem sido reiteradamente sublinhado, que os recursos de constitucionalidade só podem ter por objecto normas, e não directamente as decisões judiciais que as apliquem (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs
461/91, 192/94, 20/96 e 489/03, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 599, e Diário da República [DR], II Série, de 14 de Maio de 1994, de 16 de Maio de 1996 e de 28 de Novembro de
2003), pois o nosso sistema de controlo de constitucionalidade é um sistema de controlo normativo (cfr. v.g. os acórdãos n.ºs 26/85 e 18/96, publicados no DR, II Série, de 10 de Abril de 1985 e de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, págs. 932 e 943). Ora, das transcrições efectuadas resulta evidente que, no presente caso, nenhuma norma foi, durante o processo, impugnada como portadora de uma incompatibilidade com a Constituição, de modo a justificar a intervenção fiscalizadora deste Tribunal em recurso de constitucionalidade.
5. Com efeito, o que o arguido sempre invocou até ao requerimento de aclaração e suscitação de nulidades foi que as decisões – ou a actuação – das instâncias violaram disposições legais e constitucionais, indo a invocação da desconformidade constitucional a par da invocação da desconformidade com a lei.
É verdade que no requerimento de arguição de nulidades já se faz uma alegação de
“interpretação e aplicação do novo normativo contrária à referência constitucional dos direitos de defesa” e que se sedia nessa interpretação a inconstitucionalidade alegada. E é também verdade que no requerimento de interposição do recurso o recorte da questão de constitucionalidade se situa nos limites do nosso sistema de controlo normativo – sem prejuízo de se poder discutir se o que está em causa não é antes a regra que determina o início de vigência da nova redacção dos artigos 332º, 333º e 334º (o artigo 4º do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro). Porém, nenhum desses momentos é já idóneo para a adequada suscitação de uma questão de constitucionalidade para efeitos de preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 94/88, 439/91 e 166/92, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 1089, 20º vol., pág. 587, e 22º vol., pág. 913). E isto porque o recurso de constitucionalidade visa a reapreciação de um anterior juízo, expresso ou implícito, sobre uma questão de constitucionalidade, e isso supõe que tal questão não surja perante o Tribunal Constitucional como uma questão nova, exigindo antes que essa questão tenha sido suscitada de modo processualmente adequado, “durante o processo”, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, “em termos de este saber que tinha que apreciar e decidir essa questão” (Acórdão n.º 469/91, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 567). Ora, quer no momento de apreciação do requerimento de aclaração e de arguição de nulidades, quer no de apresentação do requerimento do recurso de constitucionalidade, quaisquer questões de constitucionalidade estão fora do alcance da decisão do tribunal recorrido, pois este já esgotou o seu poder jurisdicional. Se o arguido não fez tal suscitação antes – e no caso não fez –, inviabilizou também a pronúncia do Tribunal Constitucional no presente recurso de constitucionalidade. Só ficam de fora dessa exigência de suscitação da questão de constitucionalidade nestes termos (cfr., v. g., Acórdãos n.ºs 90/85 e 61/92, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pág. 663, e
21º vol., pág. 761) situações, de todo excepcionais, em que – designadamente, pelo carácter “insólito” ou “imprevisto” da decisão – o recorrente não tenha tido oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. Ora, na situação dos autos a decisão cujo acerto veio a ser impugnado em recurso foi proferida logo antes do início do julgamento na 1ª instância, sem que tivesse sido objecto de reacção nessa altura, tendo sido mantida na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, sem, contudo, que perante qualquer dos dois tribunais tivesse sido suscitada uma questão de constitucionalidade normativa. Quando o foi – isto é, apenas no requerimento de arguição de nulidades perante esse último Tribunal – já esse Tribunal da Relação esgotara a possibilidade de a decidir, e, portanto, já ficara inviabilizado o recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso.»
2.Inconformado, o recorrente veio reclamar desta decisão, “nos termos do artigo
78º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro”, dizendo:
«1. Ao contrário do que se refere na douta decisão ora reclamada, o recorrente suscitou ab initio a questão da inconstitucionalidade na interpretação e aplicação feita de normas processuais penais e não apenas no requerimento de arguição de nulidades que apresentou no Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Com efeito, tal como decorre do recurso que interpôs da decisão judicial de
1ª instância, o recorrente alegou que, ao ter requerido o adiamento da audiência com fundamento em doença do foro cardíaco, devidamente comprovada por atestado médico e posteriormente validada, e ao ter sido decidido prosseguir o julgamento na sua ausência com fundamento na aplicação do actual artigo 333° do C.P.P., depois de se ter oposto expressa e oportunamente ao prosseguimento da audiência sem a sua presença, violou-se os artigos 29º, n.º 4, in fine e 32°, n.º 6, da C.R.P..
3. É que o actual artigo 333° do C.P.P., nos termos em que foi interpretado e aplicado, consubstancia, claramente, uma violação daqueles preceitos constitucionais.
4. O recorrente isso mesmo referiu no recurso que dirigiu ao Tribunal da Relação de Lisboa: “E certo é que, logo à primeira data, tendo o arguido apresentado atestado médico e requerido o adiamento da audiência, iniciou-se logo a mesma, o que violou os supra citados preceitos legais e ainda os art.s 29º, n.º 4, in fine e 32º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa...”
5. O que daqui resulta não é que tenha sido a decisão ou a actuação judicial a violar directamente disposições legais e constitucionais. Bem pelo contrário!
6. Pois, aquela decisão de prosseguir com a audiência não foi arbitrária nem discricionária, antes resultou da aplicação de uma norma (artigo 333° do actual C.P.P.) que in casu era violadora de dispositivos constitucionais, como o foi, vício que não é sanável.
7. Assim, o recorrente, no requerimento de arguição de nulidades, veio apenas confirmar e, mais uma vez, concretizar uma questão que havia oportunamente abordado no seu recurso.
8. Ou seja, a de que o Meritíssimo Juiz, ao decidir por despacho o prosseguimento da audiência, o que fez com base no artigo 333º do C.P.P., interpretou e aplicou preceito que, naquela situação concreta, estava ferido de inconstitucionalidade.
9. Recorde-se que o recorrente sempre cumpriu escrupulosamente as suas obrigações processuais, nunca faltando nem dando origem a quaisquer adiamentos ou protelamentos do processo. E tinha pleno direito de estar presente à audiência de julgamento pois era acto que lhe dizia directamente respeito, isto para além de lhe ser mais favorável a aplicação do regime originário do C.P.P. de 1987 que impunha o adiamento em caso de ausência, mais a mais plenamente justificada, como o foi, por doença do foro cardíaco e necessidade de exames clínicos e complementares de diagnóstico.
10. Isto é, a decisão de prossecução do julgamento na ausência do arguido tinha como subjacente uma interpretação e aplicação imediata de norma vigente, é certo
– o artigo 333° do C.P.P. – norma essa não aplicável por força do dispositivo constitucional contido nos artigos 29°, n.º 4, e 32°, n.º 6, da C.R.P., porquanto ter-se-ia que respeitar, e não se respeitou, o entendimento normativo que impõe a aplicação do regime mais favorável ao arguido - o qual decorria da aplicação do artigo 332°, n.º l do C.P.P. de 1987.
11. Aliás, a própria decisão reclamada é bem clara quando refere que “É verdade que no requerimento de arguição de nulidades já se faz uma alegação de
‘interpretação e aplicação do novo normativo contrária à referência constitucional dos direitos de defesa’ e que se sedia nessa interpretação a inconstitucionalidade alegada. E é também verdade que no requerimento de interposição do recurso o recorte da questão de constitucionalidade se situa nos limites do nosso sistema de controlo normativo – sem prejuízo de se poder discutir se o que está em causa não é antes a regra que determina o início de vigência da nova redacção dos artigos 332º, 333° e 334° (o artigo 4° do Decreto-Lei n. ° 320-C/2000, de 15 de Dezembro).” Face ao exposto, revogando-se a decisão liminar reclamada, deverá prosseguir o presente processo para conhecimento do mérito do mesmo, seguindo-se os demais termos até final, designadamente com a marcação do prazo para alegações.» O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da reclamação deduzida, veio responder nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º Na verdade, é evidente que o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso que interpôs para este Tribunal Constitucional – tendo tido plena oportunidade processual para o fazer.
3º Termos em que deverá confirmar-se inteiramente a decisão reclamada, que em nada se mostra abalada com a presente reclamação.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Adianta-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento. Com efeito, o reclamante sustenta que “suscitou ab initio a questão da inconstitucionalidade na interpretação e aplicação feita de normas processuais penais e não apenas no requerimento de arguição de nulidades que apresentou no Tribunal da Relação de Lisboa”. As passagens que invoca das alegações do recurso interposto da decisão de 1ª instância, já consideradas na decisão sumária reclamada, não apoiam, porém, este seu entendimento. Na verdade, o que o recorrente afirmou (transcrevendo na sua reclamação o segundo parágrafo) foi:
«Com efeito, nos termos do art. 332º, n.º 1, do CPP de 1987 (diploma que se aplica por que mais favorável), “é obrigatória a presença do arguido na audiência...”, sendo esta adiada caso haja falta do arguido (art. 333º do CPP/87). Só assim não seria se ao caso coubesse processo sumaríssimo e o procedimento tivesse sido reenviado para a forma comum ou se o arguido tivesse requerido ou consentido que a audiência tivesse lugar na sua ausência (art. 334º do CPP/87). E certo é que, logo à primeira data, tendo o arguido apresentado atestado médico e requerido o adiamento da audiência, iniciou-se logo a mesma, o que violou os supra citados preceitos legais e ainda os arts. 29º, n.º 4, in fine e 32º, n.º
6, da Constituição da República Portuguesa, impondo-se, por isso, a anulação do julgamento e a sua repetição com a presença do arguido.» O que daqui resulta não é que tenha sido invocada durante o processo, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido (razão pela qual as referências no requerimento de arguição de nulidades e no de recurso de constitucionalidade não podem já ser consideradas), a inconstitucionalidade de qualquer norma, ou dimensão normativa – isto é, de uma determinada interpretação de um ou mais preceitos. Antes pelo contrário, o que o arguido aqui invoca é a desconformidade constitucional – a par da desconformidade com a lei – das decisões ou da actuação judicial concreta, não identificando sequer um preceito ao qual fosse de imputar uma determinada interpretação que tinha como inconstitucional.
4.É certo que a actuação judicial em causa se terá baseado em certa norma, ou entendimento normativo, mas tal não basta para se poder dar por preenchido o requisito da suscitação da inconstitucionalidade dessa norma ou dimensão normativa com base na impugnação, por inconstitucionalidade, da decisão ou actuação judicial concreta. Era ao recorrente que cabia o ónus de identificar, perante o tribunal recorrido, e antes de esgotado o poder jurisdicional deste, a norma ou interpretação normativa que tinha por inconstitucional. O que, porém, não fez, assim, deixando de preencher um requisito indispensável para se poder tomar conhecimento do recurso que veio a interpor, ao abrigo do artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Este Tribunal tem, aliás, salientado, em aplicação do disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que incumbe ao recorrente o ónus de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo de modo procedimentalmente adequado, “o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental” – assim o Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República
[DR], II Série, de 28 de Março de 1989). E, no mesmo sentido, podem ver-se também, por exemplo, o Acórdão n.º 269/94, in DR, II Série, de 18 de Junho de
1994, e o Acórdão n.º 560/94, in DR, II Série, de 10 de Janeiro de 1995, no qual se “exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e perceptível”. A presente reclamação tem, pois, de ser desatendida, por falta de preenchimento de um requisito indispensável para se tomar conhecimento do recurso, confirmando-se a decisão sumária reclamada, nesse sentido. III Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 25 de Maio de 2004 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos