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Proc. n.º 490/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. pretende recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido em 11 de Março de 2004 no Supremo Tribunal Militar, com fundamento nas alíneas g) e i), 2ª parte, do n. 1 do artigo 70º da LTC. No entanto, o recurso não lhe foi admitido no Tribunal recorrido.
Inconformado, reclama desse despacho, nos termos do artigo 76º n. 4 da LTC, dizendo:
1. Para a rejeição do recurso em referência, no essencial, aduz-se que: i) não se conhece o aresto do Tribunal Constitucional que se tenha pronunciado sobre o art. 5º da Lei 50/98, de 25.8; ii) os acórdãos citados … de 1989 e 1997, por anteriores à publicação daquele art. 5º, não podem … ter apreciado o mesmo preceito; e, iii) que essa norma nada dispõe quanto à definição de «crime essencialmente militar».
2. Desde logo importa sublinhar que o art. 5º da referida L 50/98, é a única norma legal expressamente invocada como fundamento da decisão formada no acórdão recorrido — daí ter sido, também, a única expressamente referenciada como tal.
3. No tocante ao afirmado «desconhecimento de arestos» sobre tal norma (art. 5º da L 50/98), e de que a mesma «nada dispõe sobre a definição de crime essencialmente militar», são argumentos que no caso em apreço se apresentam de improceder.
4. Com efeito, bastará compulsar o acórdão em crise para se apurar que, na verdade, a coberto do art. 5º da aludida L 50/98, o tribunal a quo fez implícita e materialmente a interpretação e aplicação do art. 1º do CJM, aprovado pelo DL
141/77, mercê da subsunção na previsão desta norma dos ilícitos imputados ao arguido, como, de resto, se patenteia na decisão ali formada de revogar despacho onde se concluíra que:
«a conduta do arguido não pode ser considerado como integrando o conceito de
“crime essencialmente militar”» (previsto no indicado art. 1º do CJM) — vd. fls.
5 e 8 do acórdão do STM.
5. No sentido da «admissão do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do artigo 70º, nº 1, da LTC, por ter sido implicitamente aplicada norma já declarada inconstitucional» (ou ilegal), se tem pronunciado o Tribunal Constitucional, com fundamento em que só a ele cabe interpretar as suas próprias decisões — cfr., por todos, Acórdão 98-187-1 (Proc. nº 97-0711), de 19.2.98, in
www.dgsi.pt.
6. Ora, nos termos do requerimento de recurso rejeitado, a referência ao art. 5º da mencionada Lei 50/98 expressamente explicitava que «…a desconformidade
(imputada ao acórdão recorrido) com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional» se reportava: i) «à definição dos crimes essencialmente militares» — objecto do aludido art.
1º do CJM; ii) «à ilegalidade (do decidido no acórdão recorrido) à luz dos arts. 108º,
111º, e 113º do novo CJM» (ex vi art. 6º da L 100/2003) — normas também elas relativas à definição da competência material para os ilícitos «estritamente militares».
7. Assim, e porque: i) a coberto do único preceito invocado na decisão de rejeição do recurso (art.
5º L 50/98) implícita e materialmente se aplicam normativos respeitantes à definição de «crimes essencialmente militares», no caso, o art. 1º do CJM, aprovado pelo DL 141/77; ii) porque essa norma consta de diploma anterior aos arestos do TC invocados no requerimento de recurso; e ainda porque, iii) o requerimento de recurso expressamente explicitava que a desconformidade do acórdão do tribunal a quo, com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional, se reportava à definição dos «crimes essencialmente militares», nos termos referidos em i) e ii) de 6 e 7; apresentam-se de improceder os argumentos invocados pela decisão reclamada, nomeadamente, os enumerados em 1, i a iii.
II
8. Depois — para afastar a afirmação do requerimento de recurso de que a interpretação e aplicação feita no acórdão, a coberto do art. 5º da L 50/98, é ilegal à luz dos arts. 108º, 111º e 113º do novo CJM (ex vi art. 6º da L
100/2003) —, invoca a decisão reclamada que o CJM «só entra em vigor em 14 de Setembro de 2004 (art. 11º da Lei nº 100/2003), não podendo haver ilegalidade por violação de norma ainda não vigente».
9. Porém, a entender-se como na decisão reclamada, não se descortina qual o alcance do art. 6º da indicada Lei 100/2003, de 15.11.
10. É que, se o Legislador pretendesse que todas as disposições do CJM —
«processuais» e «substantivas» —, entrassem em vigor apenas em 14.9, para o efeito bastaria a norma do art. 11º da aludida lei.
11. Sucede que o art. 6º daquele diploma expressamente dispõe que «as disposições processuais do CJM são de aplicação imediata…». Termos em que se apresenta de improceder igualmente a afirmada não vigência imputada às normas «processuais» referidas no requerimento de recurso — a saber:
«arts. 108º, 111º e 113º do novo CJM (ex vi art. 6º da Lei nº 100/2003)». III
12. Por último, no que na decisão reclamada se refere sobre «não ter sido invocada a alínea b) do art. 70º da LTC», importa sublinhar que tal norma pressupõe que a inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
13. Acontece que, não tendo sido notificado ao arguido o despacho que foi objecto da revogação operada pelo acórdão do tribunal a quo — tendo-o sido apenas este último —, não teve, por isso, aquele oportunidade para suscitar o que quer que fosse durante o processo que culminou no referido acórdão revogatório.
14. A referida falta de notificação está, assim, na base da falta de pronúncia durante o processo, o que gerou que o ora reclamante não tenha tido oportunidade de, em tempo, se pronunciar sobre a definição da jurisdição materialmente competente para os ilícitos de que é acusado, matéria essencial à sua defesa
(vd. art. 6º/2 da L 100/2003) maxime, tendo em conta a já várias vezes declarada inconstitucionalidade da diferenciação entre o regime punitivo («penas» e
«medidas substitutivas» das mesmas), entre as jurisdições comum e militar, com fundamento na infundada desproporcionalidade e desigualdade do regime desta
última quando não estejam em causa ilícitos classificáveis como «essencialmente militares», como é o caso.
16. Tal não pode, pois, concorrer para cercear direitos ao arguido, ora reclamante, nomeadamente do único que ainda lhe resta em sede da prévia, mas primordial questão, da definição da competência material para os ilícitos de que
é acusado: o recurso subjacente a esta reclamação.”
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público diz que a presente reclamação “carece manifestamente de fundamento, por obvia inverificação dos pressupostos dos recursos interpostos”.
Cumpre decidir, começando por recordar o teor do requerimento de interposição do recurso, que é o seguinte:
A., arguido nos autos em referência, notificado, por via postal, em 15.3.2004, do Acórdão proferido nestes autos, em 11.3.2004, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento nas als. g) e i), 2ª parte, do nº 1 do art. 70º da LTC, por entender que a interpretação e a aplicação que foi feita no caso presente do art.º 5º da Lei 50/98, de 25.8, é desconforme com o anteriormente decidido pelo mesmo Tribunal Constitucional, maxime, no tocante à definição dos crimes «essencialmente militares» (entre outros, Acórdãos nos.
271/97 (P.º 772/96), e 449/89 (P.º 603/88) in DR de 21.9.89; é ilegal à luz dos arts. 108º, 111° e 113° do novo CJM (ex vi art. 6° da Lei no 100/2003, de
15.11); e, é inconstitucional por ofensa às normas dos arts. 180/1/2 e 32/1 da CRP.
O despacho reclamado não admitiu o recurso com os seguintes fundamentos:
A., identificado nos autos, pretende recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 33 e seguintes. Fundamenta o recurso no disposto nas alíneas g) e i) , 2ª parte, do n° 1 do art°
70° da Lei do Tribunal Constitucional, “por entender que a interpretação e aplicação que foi feita no caso presente do artigo 5° da Lei n° 50/98, de 25.8,
é desconforme com o anteriormente decidido pelo mesmo Tribunal Constitucional, maxime no tocante à definição dos crimes essencialmente militares (entre outros, acórdãos nos 271/97 (Pº 772/96) e 449/89 (Pº603/88) in D.R. de 21.9.89; é ilegal
à luz dos art°s 108°, 111 ° e 113º do novo CJM (ex vi art° 6° da Lei n°
100/2003, de 15.11); e é inconstitucional por ofensa às normas dos art°s 18/ 1/2 e 32° /1 da CRP”. Sucede, porém, que nenhum destes fundamentos se verifica. De facto, não se conhece aresto do Tribunal Constitucional que se tenha pronunciado sobre o art° 5° da Lei n° 50/98, de 25 de Agosto, sendo que os acórdãos citados pelo requerente de 1989 e 1997, por anteriores à publicação daquele art° 5°, não podem, obviamente, terem apreciado o mesmo preceito. Recorde-se que o referido art° 5° apenas mantém em vigor algumas disposições até então vigentes do Código de Processo Penal, nada dispondo quanto à definição de crime essencialmente militar . No que toca à arguida ilegalidade do aludido art° 5° por violação de disposições do novo Código de Justiça Militar , haverá apenas que referir que este Código só entra em vigor em 14 de Setembro de 2004 (artigo 11 ° da mencionada Lei n°
100/2003), não podendo haver ilegalidade por violação de norma ainda não vigente. Aliás, o dito art° 5° é uma disposição temporária que caduca justamente com a entrada em vigor do novo C.J.M.. Finalmente, não tendo sido invocada a alínea b) do art° 70° da L. T .C. não pode também ser arguida a inconstitucionalidade. directa de uma norma aplicada pelo Tribunal a quo. Pelo exposto, não admito o recurso interposto pelo requerimento de fls. 43.
Vejamos. Face ao teor do já citado requerimento de interposição do recurso – peça que define irremediavelmente o respectivo âmbito – torna-se incompreensível o que se diz nos pontos 12 a 16 da reclamação; na verdade, não tendo sido interposto pelo recorrente recurso com fundamento na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, é totalmente inútil a matéria que trata, exclusivamente, de questões relacionadas com o recurso previsto na aludida alínea b), que não está – nem pode estar – aqui em causa. Não deve, portanto, apreciar-se esta matéria.
É também possível afastar já os argumentos esgrimidos quanto ao recurso da alínea i) do preceito em análise. Na previsão desta norma incluem-se os casos de desaplicação de norma legal com fundamento na sua contrariedade com convenção internacional, ou de aplicação de norma legal em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional sobre a questão da contrariedade dessa norma com convenção internacional. Em ambos os casos, impõe-se que ocorra uma situação de desconformidade de norma constante de acto legislativo com uma convenção internacional, circunstância que aqui manifestamente não sucede.
Subsiste a questão relativa ao recurso da alínea g).
O recurso interposto ao abrigo do disposto nesta alínea pressupõe que haja sido efectivamente aplicada na decisão recorrida uma norma anteriormente julgada inconstitucional.
Tal como se afirmou no Acórdão n.º 586/98, a alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC apenas admite recurso de decisões que tenham aplicado normas que o Tribunal Constitucional haja anteriormente julgado inconstitucionais, constituindo, portanto, pressuposto deste tipo de recurso, que o tribunal a quo aplique certa norma e que a norma aplicada já antes tenha sido julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Ora, sendo no requerimento de interposição do recurso que devem constar os elementos necessários à verificação dos respectivos requisitos, segue-se que constitui ónus do recorrente a identificação, nesse requerimento, da norma anteriormente julgada inconstitucional e a enunciação do aresto ou arestos em que se operou esse julgamento.
O recorrente indicou, como norma recorrida, a do artigo 5º da Lei 50/98, de 25 de Agosto. A referência à Lei 50/98 constitui manifestamente um lapso, supondo-se que o diploma a que se pretende referir o recorrente seja a Lei
59/98, de 25 de Agosto, efectivamente aplicada no acórdão recorrido. Este diploma visou, todavia, introduzir alterações ao Código de Processo Penal, mas nada tem a ver com crimes essencialmente militares. O seu artigo 5º tem a seguinte redacção:
1 - A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
2 - A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
Acontece que os acórdãos mencionados pelo recorrente, no seu requerimento, também nada têm a ver com esta norma, sobre a qual, aliás, não consta que haja recaído pronúncia de inconstitucionalidade. Na realidade, o problema que o recorrente aborda, no requerimento de interposição do recurso, tem a ver com “a definição dos crimes essencialmente militares”, que não se relaciona, de todo, com esta matéria.
Não se verifica, por isso, o requisito que permite interpor este tipo de recurso, pois não é possível reconhecer que, antes do acórdão recorrido, a norma impugnada haja sido julgada inconstitucional.
Não ocorre, portanto, este pressuposto essencial do recurso previsto na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC, pelo que é de manter o despacho que não admitiu o recurso.
Em face do exposto decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 18 de Maio de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos