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Processo n.º 652/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão datado de 1 de Abril de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso interposto por A., da decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que indeferira o pedido que havia deduzido, de separação de processos. Pode ler-se na fundamentação daquele aresto:
«Da motivação de recurso apresentada pelo recorrente, e designadamente das suas conclusões – que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso – decorre claramente que uma única questão está em causa: a de saber se se justificava ou não no caso, designadamente em vista do disposto no art. 30° do CP, a separação de processos que requereu e foi indeferida pela decisão recorrida. Desde logo há que ter em conta que, não obstante com a sua desistência a instrução tenha sido feita apenas em relação aos outros arguidos que a requereram, há que salvaguardar a hipótese de, nos termos do disposto no art.
307°, n.º 5, do CPP, o Juiz dela retirar as consequências legalmente impostas a todos os arguidos, possibilidade que logo poderia ficar prejudicada com a separação de processos pretendida - o que só por si poderia justificar o indeferimento da mesma. Mas, mesmo deixando de lado tal aspecto da questão, não seria caso de determinar a separação de processos, não se verificando circunstância alguma que, no quadro de argumentação do recorrente – o da previsão do art. 30° do CP – o justifique
(designadamente por, contrariamente ao que pretende, as circunstâncias que invoca para sustentar a sua pretensão, não serem susceptíveis de, em tal quadro, determinar a cessação da conexão). Assim, vejamos:
É certo que, como refere, determinando a cessação da conexão nos casos em que, pelas formas que refere, a subsistência da mesma possa causar prejuízos ou criar os riscos nele indicados, o art. 30° do CPP consagra o direito a uma decisão justa produzida num tempo razoável. Porém, tais preceito e consagração não impõem que qualquer retardamento invocado faça prevalecer de forma absoluta a cessação da conexão, sendo que, pelo contrário, esta só deve ser determinada quando se perfile alguma das situações naquele previstas, havendo assim, perante invocação de pretenso motivo de cessação de conexão, que aferir em concreto se o alegado se enquadra em alguma dessas situações. Ora, no caso, tal não acontece, não ocorrendo, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, situação que determinasse cessação da conexão nos termos daquele preceito. Assim, nem existia interesse ponderoso que a impusesse (a circunstância que invoca para justificar prejuízo na continuação da conexão – o facto de estar sujeito a suspensão de funções – não lhe causa, atendendo até a que, conforme referido a fs. 70, continua a receber o seu salário, prejuízo relevante para o efeito), nem, considerando o estado dos autos na perspectiva do momento processual em curso, a continuação da conexão implicaria retardamento excessivo do seu julgamento (a seis dias do debate instrutório, diligência que necessariamente precede de muito perto a decisão instrutória e a marcação do julgamento para os pronunciados, não se pode falar em retardamento excessivo, sendo até que, como bem salienta o Sr. Procurador-Geral Adjunto, considerando que os autos ora em curso têm, por estarem arguidos presos à sua ordem, natureza urgente, a separação de processos antes iria muito provavelmente remeter o julgamento para data posterior àquela que será encontrada para o julgamento nesses autos). Não pode pois ter acolhimento, carecendo de justificação nos termos referidos e do dito preceito – e bem assim de suporte legal – a cessação da conexão pretendida pelo recorrente (pretensão que, aliás, melhor se compreende como forma de lograr julgamento em separado dos demais arguidos nos autos, objectivo sem suporte na lei que, conforme se colhe da motivação do recurso – cf. fs. 4 – terá, no fundo, norteado a formulação do requerimento desatendido). Nada há assim a censurar à decisão que a indeferiu, não violadora de qualquer norma legal, maxime constitucional.»
2.Inconformado com esta decisão, o referido arguido veio interpor recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 30º, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, na interpretação que, “(...) perante uma situação de delonga ainda não determinada mas não previsível de alguma duração temporal, considera como não sendo um interesse ponderoso e atendível, nem como sendo um retardar excessivo do julgamento do arguido, para efeitos de separação de processos”, invocando “violação do art. 6º da CEDH, que vigora na ordem jurídica constitucional portuguesa, por força do princípio da recepção automática consignado no art. 8º da mesma Constituição.” Considera ainda o recorrente no requerimento de recurso:
«Viola também o princípio referido plasmado no mesmo art. 6° da CEDH a interpretação segundo a qual, estando um arguido suspenso do exercício de funções, tal facto não é suficiente para preencher o conceito de motivo ponderoso e atendível ou de retardamento excessivo do julgamento, quando ainda não existe data previsível para o mesmo, visto não se coadunar com os melhores cânones da interpretação hermenêutica de um julgamento célere, justo e rápido. Assim, também a interpretação do art. 30°, alíneas a) e c), que perante uma imprevisibilidade de duração, mas com carácter de alguma durabilidade, e estando o arguido sujeito a uma medida de coacção de suspensão de funções, não considera preenchida a previsão do art. 30° do C.P.P., quer da sua alínea a), quer da sua alínea c).
É também inconstitucional a interpretação feita do art. 307°, n° 5, do C.P.P., segundo a qual o facto de qualquer arguido poder aproveitar a decisão que vier a ser tomada no âmbito dessa instrução, apesar de esse arguido não a ter requerido, invalida a imediata separação de processos e serve de argumento para o indeferimento da mesma, pois ninguém pode estar à espera de um acontecimento futuro e incerto. Num Estado de Direito Democrático as normas jurídicas têm de possuir uma interpretação minimamente coerente do ponto de vista lógico e literal, não se podendo extrair das mesmas conclusões irreais, sob pena de se preterir e violar o Estado de Direito Democrático. » Admitido o recurso, foram recorrente e recorrido notificados para apresentar as respectivas alegações. O recorrente concluiu assim as suas alegações:
“I. Por douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 1 de Abril de
2004, viu o Recorrente negado o seu pedido de separação de processos. II. Todavia, não pode o Recorrente concordar com o teor do mesmo. E isto porque, III. A norma ínsita no artigo 30º, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal
– na interpretação que defenda que, perante uma situação de delonga ainda não determinada mas não previsível de alguma duração temporal, e que considere como não sendo um interesse ponderoso e atendível, nem como sendo um retardar excessivo do julgamento do arguido, para efeitos de separação de processos – é inconstitucional, por violação do art. 6º da CEDH, que vigora na ordem jurídica constitucional Portuguesa, por força do princípio da recepção automática consignado no art. 8º da mesma Constituição. IV. Viola também o princípio referido, plasmado no mesmo art. 6º da CEDH, a interpretação segundo a qual, estando um arguido suspenso do exercício de funções, tal facto não é suficiente para preencher o conceito de motivo ponderoso e atendível ou de retardamento excessivo do julgamento, quando ainda não existe data previsível para o mesmo, visto não se coadunar com os melhores cânones da interpretação hermenêutica de um julgamento célere, justo e rápido. V. Assim é ainda inconstitucional uma interpretação do art. 30º, alíneas a) e c), que, perante uma imprevisibilidade de duração, mas com carácter de alguma durabilidade, e estando o arguido sujeito a uma medida de coacção de suspensão de funções, não considere preenchida a previsão do art. 30º do C.P.P., quer da sua alínea a), quer da sua alínea c). VI. É também inconstitucional a interpretação deduzida do artigo 307º, n.º 5, do C.P.P., segundo a qual o facto de qualquer arguido poder aproveitar a decisão que vier a ser tomada no âmbito dessa instrução, apesar de esse arguido não a ter requerido, invalidar a imediata separação de processos e servir de argumento para o indeferimento da mesma, pois não é humanamente exigível (sendo mesmo violador dos direitos fundamentais tal situação) que alguém permaneça, ad eterno, desconhecendo até quando, à espera de um acontecimento futuro e incerto. VII. Num Estado de Direito Democrático as normas jurídicas têm de possuir uma interpretação minimamente coerente do ponto de vista lógico e literal, não se podendo extrair das mesmas conclusões irreais, sob pena de se preterir e violar o Estado de Direito Democrático.” Em resposta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional formulou as seguintes conclusões:
“1 – Na falta de um dos pressupostos de admissão do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na não suscitação da questão de forma processualmente adequada, não deverá conhecer-se do objecto do recurso.
2 – Está nesta situação a norma do n.° 5 do artigo 307° do Código de Processo Penal, cuja aplicação, para além do mais, não constitui ‘ratio decidendi’, motivo pelo qual, também por esta via, não deve o Tribunal Constitucional conhecer do recurso.
3 – Não viola qualquer norma ou princípio constitucional a não separação de processos, nos termos do artigo 30°, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, quando, estando em causa a obtenção de uma decisão justa num prazo célere, nada indica, antes pelo contrário, que tal viesse a ocorrer, em termos de previsibilidade, face ao caso concreto.
4 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.” Por despacho datado de 16 de Julho de 2004, foi o recorrente notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público nas suas contra-alegações. Veio, então, o recorrente dizer:
“1° Em sede de doutas contra-alegações, veio o Digníssimo Magistrado do Ministério Público referir que relativamente à norma do artigo 307°, n.º 5, do Código de Processo Penal, não foi suscitada pelo ora recorrente a sua inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, de modo a estar obrigado a dela conhecer, como o exige o n.º
2 do artigo 72° da Lei do Tribunal Constitucional, para os recursos com fundamento no n.º 1 da alínea b) do artigo 70°, como é o caso.
2° Mais refere ainda, que é a própria decisão recorrida que invoca tal normativo
(a decisão da primeira instância não o fizera) de forma lateral, que não constitui a ‘ratio decidendi’.
3° Salvo o devido respeito por entendimento contrário, falece na íntegra o invocado em sede de doutas contra-alegações.
4° Em primeiro lugar, cumpre referir, aliás conforme assim bem se refere em sede de doutas contra-alegações, que o artigo 307°, n.º 5, do Código de Processo Penal apenas foi invocado em sede do douto acórdão datado de 01-04-2004, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
5° Conforme decorre da Lei, proferido o douto Acórdão em referência, esgotou-se o poder jurisdicional do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa - nos termos conjugados do disposto no artigo 4° do Código de Processo Penal e do disposto no artigo 666°, n.º 1, do Código de Processo Civil. Pelo que
6° O recorrente não poderia junto desse Venerando Tribunal arguir a inconstitucionalidade do artigo 307°, n.º 5, do Código de Processo Penal, porque da mesma já não podia conhecer esse Venerando Tribunal, na medida em que se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional. Por outro lado,
7° Desse douto Acórdão não cabia recurso ordinário, mostrando-se assim esgotada a respectiva via jurisdicional de impugnação, por via da qual o ora recorrente pudesse suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo
307°, n.º 5, do Código de Processo Penal. Pelo que
8° O ora recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 307°, n.º 5, do Código de Processo Penal em momento próprio e da forma processualmente adequada, aliás a única possível, isto é, através da interposição do respectivo recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, o único meio processual legalmente admissível. Face ao exposto
9° É forçoso concluir que o ora recorrente invocou atempadamente a inconstitucionalidade do artigo 307°, n.º 5, do Código de Processo Penal, ou seja, assim que verificada, foi a mesma arguida, e da forma processualmente adequada, falecendo, por esse motivo, o douto entendimento expresso em sede de doutas contra-alegações, uma vez que esgotado que se encontrava o respectivo poder jurisdicional do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e não havendo lugar a recurso ordinário, outra via não ser legalmente admissível para suscitar a inconstitucionalidade em referência, que não fosse a interposição do respectivo recurso para o Venerando Tribunal Constitucional. Pelo que
10° Deve improceder, na íntegra, a questão prévia suscitada em sede de doutas contra-alegações.” Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.Como se referiu, a norma em relação à qual foi suscitada questão prévia de não conhecimento do recurso foi a do n.º 5 do artigo 307º do Código de Processo Penal, segundo a qual “[a] circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos”. Tal norma corresponde, porém, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º
320/2000, de 15 de Dezembro, ao n.º 4, e não ao n.º 5 do dito artigo 307º, devendo entender-se a referência à anterior numeração como um mero lapsus calami, que não impediria a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada (não fosse a existência de outras razões nesse sentido). Nas suas contra-alegações, o Ministério Público invocou duas razões que obstam à possibilidade de se tomar conhecimento do recurso, nesta parte: a não suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente, de forma processualmente adequada, e a não aplicação da norma na decisão recorrida, como sua ratio decidendi. Respondendo a esta questão prévia, o recorrente invocou que impugnou a conformidade constitucional da norma de forma processualmente adequada, por o ter feito logo após a invocação da norma e perante a única instância possível, como se viu. Não objectou, porém, contra o argumento de que tal norma não foi aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi. Assim, o que quer que se entendesse sobre a obrigação que o recorrente tinha de adoptar “uma estratégia processual adequada” – na expressão do Acórdão n.º
479/89, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1992 –, traduzida no ónus de identificar as normas potencialmente aplicáveis à decisão do pleito em que está envolvido e de lhes opor qualquer desconformidade constitucional impeditiva da sua aplicação (e, portanto, sobre a existência, ou não, de uma decisão-surpresa quanto à invocação de tal norma, que o dispensasse desse ónus de impugnação), não obstaria a que tivessem de ser consideradas as palavras do acórdão recorrido, o qual, após admitir que a invocação de tal norma poderia ser impeditiva da pretendida separação de processo, acrescentava:
“Mas, mesmo deixando de lado tal aspecto da questão, não seria caso de determinar a separação de processos, não se verificando circunstância alguma que, no quadro de argumentação do recorrente – o da previsão do artigo 30º do CP
– o justifique (designadamente por, contrariamente ao que pretende, as circunstâncias que invoca para sustentar a sua pretensão, não serem susceptíveis de, em tal quadro, determinar a cessação da conexão).” [itálico aditado] Equivale isto a dizer que o indeferimento da pretendida separação de processos se decidiu logo com base na falta de motivo para tanto, e não com base nos seus possíveis efeitos. Procede, portanto, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, ao menos no que diz respeito à não aplicação da norma ora em causa como ratio decidendi da decisão recorrida (podendo dispensar-se maior aprofundamento da outra, concorrente, razão para o não conhecimento de tal questão, única que, afinal, foi controvertida pelo recorrente).
4.É a seguinte a redacção das disposições do artigo 30º do Código de Processo Penal, em relação às quais é assacada desconformidade constitucional
(destacando-se os passos relevantes):
“Artigo 30º
(Separação dos processos)
1. Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o Tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns dos processos sempre que: a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
(...) c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos;
(...)” Quer no requerimento de interposição de recurso, quer nas suas alegações – e respectivas conclusões –, o sentido impugnado de tais normas foi determinado a partir da projecção das circunstâncias em que se encontra o arguido, caracterizada como “situação de delonga ainda não determinada mas não previsível de alguma duração temporal” (sic); inexistência de “data previsível para o
[julgamento]”; e que a “medida de coacção de suspensão de funções” não seja “um interesse ponderoso e atendível”. Apesar de, assim, se aproximar a apreciação solicitada a este Tribunal de um verdadeiro – mas inexistente na ordem constitucional portuguesa – recurso de amparo, cujo objecto seria o controlo do respeito pelos direitos fundamentais pela decisão, em si mesma, pode admitir-se, no caso, que se esteja ainda perante a definição das “circunstâncias objectivas em que essa aplicação ocorreu”, na expressão do Acórdão n.º 124/94, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol. [e, mesmo, sem reentrar na discussão do “respeito pelo princípio da legalidade (...) por parte de dimensões interpretativas de normas adoptadas como ratio decidendi pelo tribunal recorrido”, discussão, essa, a que se refere a declaração de voto aposta pelo ora relator ao Acórdão n.º 197/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt]. Admite-se, pois, que está em causa uma interpretação da norma da alínea a) do artigo 30º do Código de Processo Penal que desconsidera como interesse ponderoso e atendível, para efeito da determinação da separação de processos, a suspensão de funções de um arguido, sem perda de vencimento, e que cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a conformidade de tal interpretação, não propriamente com o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como pretende o recorrente, mas com o texto constitucional, designadamente o nele disposto no artigo 20º, n.ºs 4 e 5 – pois, como se escreveu no Acórdão n.º 124/90 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol.), também no presente caso, na parte ora relevante:
“Os princípios jurídico-internacionais invocados pelo recorrente (...) não dizem nada que já se não contenha nas normas ou princípios constitucionais pertinentes.”
5.Admitidos ambos estes pressupostos, logo se conclui, porém, que a referida interpretação não se afigura incompatível com o texto constitucional. Bem pelo contrário, atendendo aos interesses em jogo, no direito infra-constitucional a separação de processos – com as consequentes repetições de actos jurisdicionais, produção de prova, audição de testemunhas, decisões e recursos autónomos – aparece como claramente excepcional, como induz a parte final da dita alínea a): onde esteja em causa uma situação de prolongamento da privação da liberdade, a lei identifica um “interesse ponderoso e atendível”, deixando em aberto que outras situações que não impliquem essa perda de liberdade, mas dêem origem a circunstâncias de limitações ponderosas a direitos fundamentais, ou de privação
– como poderia ser, eventualmente, uma situação de suspensão de funções sem vencimento, sem alternativas de obtenção de rendimento –, possam também ser enquadradas na previsão da norma. Até na medida em que a norma é flexível e aberta à possível inclusão de uma diversidade de situações não pré-tipificadas, percebe-se nela uma possibilidade de conformação à ordem constitucional de valores. Por outro lado, a invocação de inconstitucionalidade da dimensão interpretativa que lhe foi assacada no caso é improcedente, e também a imputação de inconstitucionalidade à referida interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo
30º do Código de Processo Penal é claramente improcedente. Como referiu o Ministério Público nas suas contra-alegações – e já fora mencionado na decisão recorrida –, o arguido, que não se encontra preso, só tem a beneficiar, em termos de celeridade processual, de o seu processo manter a conexão com o de outros arguidos que se encontram presos, em razão de, por o processo revestir, assim, natureza urgente, os prazos processuais que, também, lhe são aplicáveis, serem os mais curtos previstos na lei, enquanto tal conexão de mantiver (até para a tramitação do presente recurso). E como referiu ainda o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal:
“Criticando-se a não separação com o fundamento numa delonga não determinada, de duração temporal não previsível, tal argumentação [em prol da separação de processos], no caso concreto, ou é inócua ou revela-se até como contrária aos fins visados.” De tal contradição entre um sentido supostamente desconforme com o texto constitucional e as razões aduzidas para tal desconformidade resulta, imediatamente, sem necessidade de mais consideração a improcedência da imputação de inconstitucionalidade, e, por conseguinte, do presente recurso, nesta parte.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada em relação ao disposto no n.º 4 do artigo 307º do Código de Processo Penal vigente (por lapso, identificado como n.º 5); b) Não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo
30º do mesmo Código quando interpretadas no sentido de que a previsão não inclui a situação de um arguido sujeito a uma medida de suspensão de funções com manutenção de vencimento, com co-arguidos sujeitos a prisão preventiva, e sendo a separação de processos requerida poucos dias antes do debate instrutório e da decisão instrutória; c) Por conseguinte, confirmar a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade; d) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Setembro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos