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Processo n.º 58/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, na 3.ª Secção, do Tribunal Constitucional
1. Notificados do Acórdão n.º 448/04, de 23 de Junho de 2004, mediante o qual este Tribunal decidiu não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade que haviam interposto, vieram os recorrentes pedir, separadamente, a aclaração desse acórdão, nos termos seguintes:
- O recorrente A., quanto à aparente inaplicabilidade ao caso, considerando a decisão proferida, do disposto na última parte do n.º1 do artigo
80º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro ( LTC);
- O recorrente B., interpretando o ponto 8 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça como não a abrangendo, quanto a saber se a questão relativa
à falta de promoção do processo pelo Ministério Público merece ou não um juízo quanto à sua conformidade com as normas constitucionais.
O Ministério Público responde que os pedidos devem ser indeferidos, visto que o acórdão não sofre de qualquer ambiguidade ou obscuridade.
2. As partes podem pedir o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que o acórdão contenha (cfr. art.ºs 669º, n.º 1, al. a) e 716º do CPC e art.º
69º da LTC). A decisão judicial é obscura quando, em algum passo, o seu sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações distintas. Assim, a aclaração serve para eliminar perplexidades ou dúvidas de interpretação; não é meio para demonstrar o erro da decisão aclaranda ou a debilidade das razões que a suportam.
Tendo presente este genérico enquadramento legal do incidente e o texto do acórdão, nomeadamente a sua parte “B”), sobre a qual incide o pedido de aclaração, vejamos.
2.1. O recorrente A. pretende ser esclarecido sobre se o Tribunal excluiu a aplicabilidade ao caso do disposto no n.º 1 do artigo 80º da LTC, uma vez que, apesar de não ter impugnado o fundamento vertido no ponto 8 do acórdão recorrido, o provimento do recurso de constitucionalidade quanto à interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 187º, 188º e 249º, 263º e 270º do Código de Processo Penal, sempre terá a virtualidade de determinar a reapreciação da causa e a revogação oficiosa do constante daquele ponto 8.
Esta interrogação traduz mais uma insatisfação ou divergência com o entendimento do Tribunal do que uma dúvida face ao teor do acórdão, como se torna evidente pela transcrição seguinte [útil para a apreciação das duas reclamações]:
“1. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão, na decisão recorrida, do julgamento que nele viesse a ser efectuado (ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994). Ora, no ponto 8 do acórdão recorrido afirmou-se o seguinte:
«(...)
8 - Com a explanação que antecede sobre os controvertidos pontos das escutas telefónicas e da falta de promoção do processo pelo M.ºPº, pretendemos apenas secundar o juízo da Relação de Coimbra sobre tais matérias, dado o melindre das questões. Mas, a uma razão de acerto jurídico, que fará substantivamente improceder os recursos em tais pontos, acresceria uma outra razão, esta de ordem formal, e que levaria necessariamente ao mesmo resultado.
É que as referidas questões, como questões prévias que são, terão sido já decididas definitivamente pelo Tribunal da Relação, da decisão não havendo recurso para este Supremo. Na verdade, prescreve o art. 399º do CPP, como princípio geral, que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. E o seguinte art. 400º do CPP dispõe sobre as decisões que não admitem recurso, entre as quais inclui: acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa
[n.º 1, c)].
“Causa” só pode ser entendida para estes efeitos como o processo destinado a determinar a responsabilidade criminal do agente pela prática de facto ilícito
(Ac. de 21.2.02, proc. n. 131/02-5). Neste aspecto, teria razão a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, quando advogou nas suas alegações escritas, quanto ao recorrente B. (e também na audiência, relativamente ao recorrente A.), a irrecorribilidade da decisão quanto às mencionadas questões. Em sentido exactamente coincidente, e por sinal versando a questão, entre outras, do indeferimento pela Relação da nulidade de escutas telefónicas se pronunciou o Acórdão deste STJ de 20/6/02, , Processo n.º 1860/02 - 5, de que foi relator o Conselheiro Simas Santos. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão, também deste Supremo, de 27/2/03, Processo n.º 515/03 - 5, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, sumariado nos Sumários de Acórdãos do STJ, e onde pode ler-se:
«Não é admissível recurso, além do mais, 'de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa' - art. 400º, n.º 1, c), do CPP.
Assim, não se tratando de decisão final proferida pela relação em recurso, mas de decisão interlocutória, isto é, decisão que não ponha termo ao processo, seja com que fundamento for, não é admissível novo recurso dessa decisão. Pôr termo à causa significa que a questão substantiva fica definitivamente decidida, que o processo não prosseguirá para a sua apreciação, e não que o processo no seu todo fica definitivamente julgado». Em consequência de tudo o que foi explanado, poderíamos, em suma, concluir da mesma forma que concluiu o Acórdão já referido de 23/10/02 (Conselheiro Leal Henriques) : ... «por uma via ou por outra sempre a pretensão do impugnante
[aqui, as pretensões dos impugnantes) teria(m) que improceder, como improcede(m).
(...)»». Face a este ponto da fundamentação do acórdão recorrido, foram as partes colocadas perante a possibilidade de não se tomar conhecimento do recurso, uma vez que, na hipótese de que outras razões não obstassem a esse conhecimento e que este Tribunal viesse a dar razão aos recorrentes, tal decisão não teria virtualidade para implicar a alteração do sentido do acórdão recorrido, que sempre se manteria com este outro fundamento de ordem formal. Quando ouvido sobre esta questão, o recorrente B. sustentou que esta passagem do acórdão tinha de ser interpretada como restrita às inconstitucionalidades que foram objecto do recurso interposto do despacho interlocutório. Tal resulta
óbvio, entende o recorrente, de o Supremo Tribunal de Justiça fundar o não conhecimento do recurso na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. Porém, mesmo que este fundamento do acórdão recorrido pudesse ser objecto desta interpretação mais restrita – e não pode, como se verá –, nunca tal redução aproveitaria ao recurso interposto pelo recorrente que a defende. Na verdade, foi o recorrente B. quem, na fase de instrução, interpôs recurso do despacho que desatendeu a arguição da nulidade das intercepções telefónicas, recurso esse que subiu com o recurso da decisão final do tribunal colectivo e a que a Relação negou também provimento. Portanto, o que se afirma no ponto 8 do acórdão recorrido visa seguramente, pelo menos, a situação deste recorrente. Ou seja, pelo menos quanto a este recorrente, o resultado a que chegou nos pontos anteriores do acórdão, sobre as questões relativas às escutas e à falta de promoção inicial do processo pelo Ministério Público – em toda a extensão dessas questões, note-se –, entendeu-o o Supremo Tribunal de Justiça igualmente alcançável pela via, dita de ordem formal, que consiste em considerar tais questões definitivamente resolvidas pelo acórdão da Relação. Sucede que nesta passagem do acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça se refere, por igual, à situação do recorrente A. quanto às mesmas questões. Não pode ser outra a leitura do acórdão quando conclui que “[em] consequência de tudo o que foi explanado, poderíamos, em suma, concluir da mesma forma que conclui o Acórdão já referido de 23/10/02 (Conselheiro Leal Henriques): … «por uma via ou por outra sempre a pretensão do impugnante [ aqui, as pretensões dos impugnantes] teria(m) que improceder, como improcede(m)»”. O cuidado em adaptar a frase retirada do acórdão de 23/10/02 ao plural ( à pluralidade de sujeitos impugnantes) e em evidenciar graficamente essa adaptação torna indiscutível que o acórdão teve a intenção de estender esta fundamentação à improcedência dos recursos dos dois recorrentes quanto às questões relativas às escutas e à falta de promoção inicial do processo pelo Ministério Público.
Ora, não cabe a este Tribunal apreciar o acerto deste entendimento, no plano da interpretação do direito ordinário e da sua aplicação ao caso concreto, designadamente quanto a saber se é exacto que a decisão da Relação se firmara, no que toca às referidas questões, em relação a ambos os recorrentes e em toda a sua extensão. Quanto a esse fundamento, o Tribunal Constitucional só poderia intervir, se os recorrentes tivessem suscitado, a propósito do entendimento das normas relativas aos recursos que lhe subjaz, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Sucede que tudo o que referem respeita à parte do acórdão em que, para usar a linguagem do acórdão recorrido, se consideraram os recursos substantivamente improcedentes quanto a tudo o que respeitava a tais questões. Sobre a outra razão, de ordem formal, que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou suficiente para conduzir, por si só, ao mesmo resultado de improcedência dos recursos a que já antes chegara, em tudo o que se refere às referidas questões, os recorrentes nada disseram. Consequentemente, fosse qual fosse a decisão do Tribunal Constitucional quanto
às questões de constitucionalidade que os recorrentes querem ver apreciadas, sempre se manteria de pé o dito fundamento de ordem formal, que constitui uma ratio decidendi por si só suficiente (“por uma via ou por outra”) para manter o sentido da decisão final assumida pelo acórdão recorrido. Contrariamente ao que pretende o recorrente A. (cfr. resposta de fls. 3611), não pode este Tribunal, ao qual não está cometida a função de hiper-revisão das decisões dos demais tribunais, determinar a revogação oficiosa deste fundamento que, sendo autónomo e não consequencial, ficaria incólume perante eventual decisão de provimento sobre as questões de constitucionalidade.
2. Tanto basta, considerando a função instrumental da intervenção do Tribunal Constitucional em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, para não tomar conhecimento do objecto dos recursos, sem necessidade de analisar as demais questões que, na perspectiva do Ministério Público, conduziriam a idêntico resultado.”
Perante este texto, não tem razão de ser a dúvida sobre se o Tribunal excluiu a aplicabilidade ao caso do disposto no n.º 1 do artigo 80º da LTC. Foi, precisamente, por ter presentes os efeitos das suas decisões em matéria de fiscalização concreta (cfr., além do n.º 1, também o n.º 2 do mesmo artigo 80º) que o Tribunal chegou à conclusão de que o eventual julgamento de inconstitucionalidade não se reflectiria na reforma da decisão da causa, face à fundamentação alternativa adoptada pelo acórdão recorrido. Isto resulta claramente do texto do acórdão, pelo que o pedido de esclarecimento tem de ser indeferido.
2.2. O recorrente B. procura demonstrar que o acórdão recorrido deve ser interpretado como não abrangendo no ponto 8 a questão da falta de promoção do processo pelo Ministério Público. Reconhece que pelo teor literal, no dito fundamento de ordem formal ali versado, poderia considerar-se abrangida esta questão, mas sustenta que ela não pode estar compreendida no seu espírito.
Embora o requerimento culmine na formulação de uma interrogação, também aqui não estamos perante a necessidade de compreender pontos menos claros do acórdão objecto do pedido de aclaração, mas perante a manifestação de uma divergência quanto ao julgamento, num ponto concreto : o da interpretação do acórdão recorrido. O acórdão aclarando entendeu, em conformidade com o expresso teor literal do acórdão recorrido que também essa questão estava abrangida pelo fundamento da decisão impugnada que ficaria incólume. O recorrente sustenta o contrário. Ora, como começou por dizer-se, não é esta a finalidade a que a aclaração está legalmente ordenada, pelo que o pedido tem de ser indeferido.
3. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir os pedidos de aclaração e condenar os recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta (individualmente).
Lisboa, 15 de Julho de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida