Imprimir acórdão
Processo n.º 903/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a assistente A.
(ora reclamante) recorreu para aquele tribunal da sentença do 4º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa que julgou improcedentes a acusação e o pedido cível e absolveu o arguido. Na Relação foi então proferido o seguinte despacho:
“Depois de se analisar a motivação apresentada pela recorrente fica-se sem saber ao certo, no que ao objecto do processo respeita, se ela pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto ou se, pelo contrário, considera que a mesma padece do vício previsto na alínea b) do n° 2 do artigo 410° do Código de Processo Penal. Assim, e antes do mais, notifique a recorrente para, querendo, esclarecer essa questão, apresentando, caso pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nova motivação em que dê cabal cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal”.
2. Veio, então, a ora reclamante aos autos com um requerimento em que, para o que ora releva, dizia o seguinte:
“[...] 1° Atendendo ao solicitado no despacho em epígrafe a Recorrente aproveita para esclarecer que nos presentes autos de recurso pretende impugnar a decido recorrida quer sobre a matéria de facto, quer sobre a matéria de Direito.
2º Sucede que a Recorrente não dispõe do suporte magnético relativo. documentação dos depoimentos prestados em sede de julgamento de forma a proceder
à correspondente transcrição da prova e especificações previstas, nos termos do art. 412°, ns.º 3 e 4, do Cód. de Processo Penal.
[...]
6º Resulta da leitura dos presentes autos que ao tempo de interposição do recurso e motivação (vd. registo postal com a data de 03.11.2003) o douto Tribunal a quo não disponibilizou à Recorrente a transcrição dos depoimentos prestados em sede de julgamento, na sequência da uniformização de jurisprudência do STJ citada no art. 3° do presente requerimento e ou com prévio convite de apresentação da transcrição da prova oralmente produzida em audiência
de julgamento de forma a permitir que a Recorrente apresente nova motivação nos termos do art. 412°, ns.º 3.
[...]
9º Em resumo, e salvo melhor entendimento, consideramos que a situação descrita nos artigos 2º e 6º deste requerimento é potencialmente violadora das garantias processuais consagradas nos artigos 20º, ns.º 1,4 e 32º, nº 7, da Constituição, atenta a possibilidade de frustrar-se a oportunidade da Recorrente poder impugnar a decisão recorrida sobre a matéria de facto, em resultado da norma retirada do disposto no art. 412º, ns.º 3 e 4, do CPP, no que respeita ao sujeito do processo sobre o qual recai o ónus da transcrição da prova e ou a falta de convite prévio para apresentar a referida transcrição (cfr. Ac. STJ de
26.01.2000, Refª SJ200001260009503, www.dgsi.pt).[…]
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 25 de Fevereiro de 2004, rejeitou o recurso por o mesmo ser manifestamente improcedente e condenou a recorrente numa sanção processual correspondente a três UCs. Fundamentou deste modo, na parte agora relevante, a sua decisão:
“[...] II - FUNDAMENTAÇÃO O recurso da matéria de facto
9 - Como resulta do despacho anteriormente proferido pelo relator, o primeiro problema que o presente recurso desde logo suscitava era a de saber se a recorrente pretendia impugnar a decisão de facto, para o que teria que ter dado cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal, ou se se limitava a invocar a existência de um dos vícios da sentença enunciados no n° 2 do artigo 410° do mesmo diploma legal. Notificada para esclarecer essa questão e para, no caso de pretender impugnar a decisão de facto, dar cabal cumprimento ao preceituado nos mencionados nºs 3 e 4 do artigo 412°, a recorrente veio pedir a transcrição das declarações oralmente prestadas ou, se assim se não entendesse, a entrega de cópia das gravações oportunamente efectuadas. Ora, salvo o devido respeito, esse requerimento, em qualquer das suas alternativas, é claramente extemporâneo. Na realidade, a recorrente, para cumprir os imperativos legais, nomeadamente o referido n° 4 do artigo 412°, teve oportunamente a possibilidade de, ao abrigo do artigo 7° do Decreto-Lei n° 39/95, de 15 de Fevereiro, requerer a entrega de cópia das gravações efectuadas, direito que, em devido tempo, não exerceu. Não é agora, já depois de ter apresentado a motivação, de esta ter sido notificada aos restantes sujeitos processuais afectados e de estes terem apresentado a sua resposta, e mesmo depois de o recurso ter subido ao tribunal da relação, que o pode vir a fazer uma vez que tal constituiria um retrocesso a uma fase anterior da tramitação estabelecida, com a concessão de novos prazos para a prática de actos que em devido tempo não utilizou, sem que existisse qualquer vício processual que o justificasse. Mas, para além disso, não foi este o único ónus que, nessa matéria, a recorrente desrespeitou. De facto, ela também não deu cumprimento ao comando previsto no n.º 3 daquele mesmo preceito uma vez que não especificou os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, nem as provas que impunham decisão diversa. Por isso, e porque a recorrente, mesmo depois de notificada expressamente para sanar a irregularidade, não juntou nova motivação que respeitasse essas imposições legais, o recurso que interpôs quanto à matéria de facto não pode deixar de ser rejeitado.
4. Desta decisão pretendeu a ora reclamante recorrer para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do seguinte teor:
“[...], notificada do douto Acórdão de [25.02.2004] e não se conformando com a referida decisão, vem com legitimidade e em tempo, interpor recurso da mesma para o Venerando Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, 15.11.- LOTC.
1. A Recorrente considera que no presente processo foi violado o disposto no art. 20º, n.º 1 da Constituição, mormente o acesso ao Direito e aos tribunais, visto que por alegada extemporaneidade, não lhe foi deferida a transcrição das declarações testemunhais oralmente prestadas em sede de julgamento.
2. Pois, salvo melhor entendimento o segmento normativo operado/ recortado no douto Acórdão recorrido, quanto ao disposto no artigo 7°, do DL- n.º 39/.95, de
15.02, em articulação com o disposto no art. 412º, nsº 3 e 4 do CPP, constitui uma violação das garantias processuais consagradas nos artigos 20º, n.º 1 e 32º, n.º 7 da Constituição, no que respeita. à. garantia. de acesso aos tribunais e aos poderes de intervenção do ofendido no procedimento criminal, anteriormente invocados no artigo 9º do requerimento da Recorrente de 09.02.04.
3. Sumariamente concretizamos o segmento normativo em causa, no sentido em que as normas aplicadas a 9 (vide parte- II- FUNDAMENTAÇÃO-} do aresto sub judice implicam a preclusão do direito da Recorrente, enquanto assistente (cfr. arts.
69º, nsº 1 e 2, al. c), 401º, n.º 1, al. b), ambos do CPP e art. 32º, n.º 7 da Constituição), de vir a obter a transcrição dos depoimentos prestados oralmente em sede de julgamento após a fase de apresentação das motivações, quando o disposto no art. 7º do DL n.º 39/95, não consagra expressamente qualquer cominação processual, quanto à tempestividade e/ou momento processual para o exercício do direito que assiste constitucionalmente ao sujeito do processo de requerer a transcrição da prova oralmente produzida em julgamento.
4. Aliás, a própria documentação dos autos resultou da aplicação das normas processuais constantes do art. 333º, ns.º 1,2,3 e 364º, n.º 3, do CPP, na redacção introduzida pelo art. 1º do DL 320-C/2000, de 15.12 e como tal não adveio de declaração deduzida pela Recorrente ou mesmo pelo arguido, nos termos do art. 364°,n.º 1 do mesmo diploma.
5. Destarte a Recorrente ficou privada de impugnar a matéria. de facto especificada na douta Sentença de 27.10.2003, nos termos legais supra citados, quando inclusivamente após a admissão da subida do recurso foi notificada (vd. Despacho do Ex.mo Senhor Juiz Relator de 12.01.2004) para, querendo, apresentar novas motivações sobre a matéria de facto.
6. Da notificação do referido despacho a Recorrente solicitou em 09.02.2004, a transcrição da prova, .de acordo com a uniformização de jurisprudência recentemente operada. em. plenário das secções criminais do Venerando Supremo Tribunal de Justiça no que respeita. ao ónus da transcrição da prova oralmente produzida em audiência de Julgamento, a qual foi no sentido de incumbir ao tribunal a respectiva transcrição, sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, dando por encerrado a vexatio quanto ao sujeito do processo sobre o qual recai o referido ónus de transcrição da prova.
7. Conforme consta dos autos o referido requerimento de 09.02.2004, veio a ser indeferido pelo douto Acórdão recorrido, razão pela qual a recorrente decidiu através do presente recurso de constitucionalidade expor as sua[s] dúvidas legítimas sobre a. bondade constitucional da aplicação das normas legais enunciadas neste requerimento de recurso e cujo douto suprimento solicitamos a este Venerando Tribunal. Constitucional. [...]”
5. Tal recurso não foi admitido, por despacho de 6 de Maio de 2004, cujo teor é o seguinte:
“A assistente [...] veio, através do requerimento de fls. 313, esclarecido pelo de fls. 323, invocando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão deste tribunal proferido em 25 de Fevereiro de 2004. Pretende que o tribunal “ad quem” aprecie a constitucionalidade da norma que se extrai do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, conjugado com o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, que considera contrária aos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º 7, da Lei Fundamental, dizendo que suscitou tal questão no requerimento que apresentou em 9 de Fevereiro de 2004. Ora, salvo o devido respeito, não vemos ,que nesse requerimento a recorrente tenha suscitado qualquer inconstitucionalidade normativa, o que não é o mesmo que ter invocado como fundamento da sua pretensão uma norma constitucional. Assim, e porque a inconstitucionalidade normativa não foi tempestivamente suscitada perante o tribunal recorrido, não admito o recurso interposto pela assistente para o Tribunal Constitucional. [...]”
6. Inconformada com esta decisão, apresentou a recorrente a presente reclamação, através do seguinte requerimento:
“[...], notificada do douto Despacho de 06.05.2004, e não se conformando com a referida decisão, vem com legitimidade e em tempo, deduzir reclamação do mesmo para o Venerando Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto nos artigos 76º, n.º 4 e 77°, da Lei n.º 28/82, de 15.11 - LOTC. I. - Âmbito Processual da Reclamação
1º No julgamento da presente reclamação relevam os seguinte eventos processuais: a) Nos presentes autos de recurso a Recorrente foi notificada do Despacho de
12.01.2004, para em tempo esclarecer se pretendia impugnar a decisão recorrida
(vd. Sentença de 22.10.2003 e Requerimento/Motivações de recurso de 05.11.2003) sobre a matéria de facto nos termos do disposto nos ns.º 3 e 4. do art. 412º do Código de Processo Penal - CPP; b) Em 09.02.2004, a Recorrente informou que pretendia através de recurso impugnar a decisão recorrida sobre a matéria de facto, esclarecendo no entanto que não possuía a transcrição dos depoimentos oralmente prestados em sede julgamento, pelo que solicitou no referido requerimento a transcrição dos mesmos, de acordo com a fundamentação expedida, que para esse efeito juntou fita magnética caso viesse a determinar-se que o ónus de transcrição dos sobreditos depoimentos teria de ser exercido pela Recorrente; c) Por ofício de 26.02.2004, a Recorrente é notificada do douto Acórdão de
25.02.2004 que decide rejeitar o recurso interposto pela Recorrente em
05.11.2003, por ser manifestamente improcedente; d) No aresto supra mencionado considerou-se que seria processualmente inadmissível a transcrição dos referidos depoimentos, pela circunstância da Recorrente não ter solicitado a referida transcrição na fase e ou momento processual previsto no disposto no art. 7° do DL n.º 39/95, de 15.02, em conjugação com o art. 412°, ns.º 3 e 4 do CPP; e) Em 10.03.2004, a Recorrente interpôs recurso do douto Acórdão de 25.02.2003, para este Venerando Tribunal Constitucional, com base no exposto no art. 9º, do Requerimento de 09.02.2004; f) Por ofício de 12.05.2004, a Recorrente é notificada do douto Despacho de
06.05.2004, que não admitiu o Requerimento de recurso supra referido, por a inconstitucionalidade normativa não ter sido tempestivamente suscitada perante o ora, Venerando Tribunal recorrido, cuja decisão e fundamentos constituem o objecto da presente reclamação. II - Dos Fundamentos da Reclamação
2º Salvo melhor entendimento, a Recorrente considera que a inconstitucionalidade normativa foi tempestivamente suscitada perante o Venerando Tribunal a quo.
3º Esta conclusão retira-se da própria leitura do exposto no art. 9º do Requerimento de 09.02.2004 que passamos a citar: “Em resumo e salvo melhor entendimento, consideramos que a situação descrita nos artigos 2º e 6º deste requerimento é potencialmente violadora das garantias processuais consagradas nos artigos 20º, nºs 1, 4 e 32º, nº 7, da Constituição, atenta a possibilidade de frustrar-se a oportunidade da Recorrente poder impugnar a decisão recorrida sobre a matéria de facto, em resultado do disposto no art. 412º, ns.º 3 e 4, do CPP, no que respeita ao sujeito do processo sobre o qual recai o ónus da transcrição da prova e ou falta de convite prévio para apresentar a referida transcrição (....)”.
4° Contrariamente aos fundamentos em que assenta a decisão operada no douto Despacho sub judice, a Recorrente no Requerimento de 09.02.2004, não invocou as normas constitucionais consagradas nos artigos 20º, ns.º 1, 4 e 32º n.º 7, da Lei Fundamental como fundamento da sua pretensão, antes demais alegou a violação das referidas normas constitucionais, na decorrência dos argumentos que constam do referido requerimento e que em síntese passamos a enunciar: a. A Recorrente à data de interposição do recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa não tinha na sua posse o suporte magnético, relativo à documentação dos depoimentos prestados oralmente em sede de julgamento (vd. artigo 2º do Requerimento de 09.02.2004), pois; b. A transcrição dos respectivos depoimentos não foi efectuado pelo douto Tribunal de 1ª. instância (4° Juízo Criminal de Lisboa - 1. Secção), como seria de esperar de acordo com a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2003, de 16.01.2003, de forma a permitir o recurso da matéria de facto, nos termos do art.412º, ns.º 3 e 4 do CPP (vd. artigo 6º do Requerimento de
09.02.2004); c. Por fim, a Recorrente refere expressamente no artigo 9º que “(...) a situação descrita nos artigos 2º e 6º deste requerimento é potencialmente violadora das garantias processuais consagradas nos artigos 20º, nsº 1,4, e 32º, n.º 7, da Constituição”(...)”em articulação clara com o segmento normativo do disposto no art. 412º, ns.º 3 e 4 do CPP, considerado inconstitucional nos termos em que tacitamente foi interpretado/aplicado pelo douto Tribunal de 1ª instância que não promoveu atempadamente a transcrição dos depoimentos prestados oralmente como seria de esperar, atento o teor do Assento do STJ n.º 2/2003.
5º A inconstitucionalidade normativa em causa foi por isso suscitada antes de proferido o douto Acórdão de 25.02.2004, no âmbito do qual considerou-se, inclusivamente, que o pedido de transcrição das declarações oralmente prestadas e ou de entrega de cópia das gravações efectuados em sede de julgamento, seria manifestamente extemporâneo em virtude do segmento normativo retirado do art.
412º , ns.º 3 e 4, do CPP, em conjugação com o disposto no art. 7º do DL n.º
38/95.
6º Ou seja, o Venerando Tribunal a quo pronunciou-se sobre as normas previstas no art. 412º, ns.º 3 e 4 do CPP, definindo o seu sentido e alcance processuais em sentido diverso do propugnado pela Recorrente nos artigos 1° a 8º do Requerimento de 09.02.2004. pelo que o mesmo Venerando Tribunal a quo teve oportunidade de pronunciar-se sobre as normas constitucionais invocadas no sobredito requerimento.
7º Assim do exposto, reiteramos que o segmento normativo considerado inconstitucional foi suscitado de forma tempestiva do qual o ora, Venerando Tribunal a quo pôde pronunciar-se como, aliás, decorre da leitura do douto Acórdão de 25.02.2004 (vd - ponto 9, Titulo II - Fundamentação), pelo que o douto Despacho de 06.05.2004, deve ser revogado nos termos do art. 77º , n.º 4, da LOTC.
8º A título de exemplo releia-se o seguinte aresto deste Venerando Tribunal Constitucional:
'5- Reza o art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82 (...) que cabe recurso para o TC das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. A1icerça-se esta particular espécie de recurso de constitucionalidade, e fundamentalmente(...), na concorrência do seguintes requisitos: Que a Inconstitucionalidade de certa norma haja sido levantada durante o processo (requisito R1) ; Que a decisão ulterior haja aplicado tal norma (requisito R2); e Que o recorrente de tal decisão seja parte que, em momento progresso, levantou a questão de inconstitucionalidade (requisito R3)' Ac. do TC n.º 339/86, de 10.02.1986 (Proc. n.º 149/86), publicado em DR 2ª Série, de 18 de Março de 1987.
9º Ainda no decurso do ano transacto este Venerando Tribunal Constitucional, teceu sobre os requisitos do recurso constitucional de fiscalização concreta de carácter incidental, o seguinte: “Ora bem: o recurso em causa cabe das decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (alínea b) do n.1 do artigo 70º LTC). Esta expressão tem sido sempre entendida com o significado de requisito de oportuna dedução da questão de inconstituciona1idade normativa por forma a que o tribuna1 recorrido dela deva conhecer.
(...) Ora é precisamente a norma ou a interpretação normativa que o tribunal recorrido aplicou que deverá constituir o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.” – vd Ac. do TC n.º 59/2004, Proc. 734/03 – 1ª. Secção, in www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm.
10º Contudo, a Recorrente reconhece que no seu Requerimento de 09.02.2004, não fez menção da norma prevista no art. 7º do DL n.º 39/95, atendendo que a fundamentação do referido requerimento baseia-se na doutrina recente do referido Assento do STJ n.o 2/2003 (processo n.º 3632/2001 – 3ª Secção) que em Plenário das Secções Criminais fixou jurisprudência nos seguintes termos: ' Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.'
11° A conclusão doutrinária acima citada resulta em síntese da integração de lacuna dos ns.º 3 e 4, do art. 412º, do CPP (ex: saber qual o sujeito do processo com o ónus de efectuar a transcrição dos depoimentos...), através de aplicação analógica do disposto no art. 101°, n.º 2, do CPP, no que concerne ao registo e transcrição dos autos. ex vi, artigos 4° do CPP e 10º, ns.º 1 e 2 do Código Civil.
12º Refira-se que após a publicação do douto Assento do STJ em Diário da República n.º 25, de 30.01.2003 (1ª Série-A) o mesmo Venerando Tribunal, em sede de recurso extraordinário para fixação uniformizada de jurisprudência sufragou, como seria de esperar, a doutrina emanada do referido Assento n.º 2/2003 (vd. Acórdão do ST J de 18.06.2003, n.º Convencional JSTJ000, in www.dgsi.pt).
13º Por esse motivo a Recorrente não poderia razoavelmente contar com a aplicação da norma do art. 7º do DL n.º 39/95, em conjugação com o art. 412º, ns.º 3 e 4, do CPP, face a já extensa jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sobre esta matéria que entronca na doutrina constante do Assento n.º
2/2003, alguma da qual vem citada no sobredito Requerimento de 09.02.2004, como fundamento do pedido de transição ai deduzido pela Recorrente (vd. artigos 3°,
4° e 5°, do Requerimento de 09.02.2004).
14° Neste sentido, reveja-se o seguinte aresto deste Venerando Tribunal Constitucional:
'I - O recurso ao abrigo da alínea b), número 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe a suscitação ao longo do processo de uma questão de inconstitucionalidade reportada a normas e que estas, no procedimento que conduziu à decisão recorrida, tenham sido actuantes em termos tais que as possamos configurar como “ratio decidendi” de tal decisão. II - Tal suscitação tem de ser prévia à decisão recorrida (para que esta de tal questão pudesse conhecer) e só se aceitará que isso não suceda quando a decisão contenha um emprego totalmente imprevisto (com o qual a parte recorrente não pudesse razoavelmente contar) de alguma norma ou dimensão interpretativa desta que se mostre determinante dessa mesma decisão' Ac. do TC de 06.11.1996, n.º Convencional ACTC7110, in www.dgsi.pt.
15º Em suma, a Recorrente face o exposto na presente reclamação, considera que o segmento normativo considerado inconstitucional foi suscitado de forma tempestiva pelo que o douto Despacho de 06.05.2004, deve ser revogado nos termos do art. 77º , n.º 4, da LOTC.[...]”
7. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido da manifesta improcedência da reclamação, dizendo o seguinte:
“A presente reclamação é manifestamente infundada, já que a reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta – e sendo evidente que a interpretação normativa acolhida pela Relação no acórdão recorrido (segundo a qual é intempestivo o requerimento, visando obter transcrição das provas gravadas, já depois de apresentadas a motivação e a contra-motivação do recurso) não pode naturalmente configurar-se como “decisão-surpresa”, com a qual a recorrente não pudesse e devesse razoavelmente contar.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
8. O presente recurso não foi admitido e, como de seguida se verá, nada há a censurar a tal decisão.
A reclamante indicou a alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, como fundamento do recurso. O recurso previsto nessa alínea visa, como resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas e pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa.
Ora, como vai sumariamente ver-se, é manifesto que a reclamante nunca suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa em termos de permitir que dela se viesse a conhecer no recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor, podendo e devendo fazê-lo.
De facto, se atentarmos no teor da reclamação já integralmente transcrita, verificamos que a reclamante sustenta ter suscitado a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada no artigo 9º do Requerimento de 09.02.2004 que já transcrevemos e passamos de novo a citar: “Em resumo e salvo melhor entendimento, consideramos que a situação descrita nos artigos 2º e 6º deste requerimento é potencialmente violadora das garantias processuais consagradas nos artigos 20º, nºs 1, 4 e 32º, n.º 7, da Constituição, atenta a possibilidade de frustrar-se a oportunidade da Recorrente poder impugnar a decisão recorrida sobre a matéria de facto, em resultado do disposto no art. 412º, ns.º 3 e 4, do CPP, no que respeita ao sujeito do processo sobre o qual recai o ónus da transcrição da prova e ou falta de convite prévio para apresentar a referida transcrição [...]” (sublinhado aditado).
Ora, basta ler tal transcrição para se concluir que é manifesto que, de todo em todo, não se encontra aí suscitada, de modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Ora, também não podendo considerar-se surpresa, como bem refere o representante do Ministério Público, a interpretação normativa aplicada na decisão recorrida, é manifesta a falta de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, a saber – ter a recorrente suscitado, modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Assim sendo, não estando presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso, o Tribunal Constitucional dele não pode conhecer, pelo que o mesmo sempre seria de não admitir, como o não foi.
III. Decisão.
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Novembro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício