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Processo n.º 642/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9 de Fevereiro de 2004 (fls. 461/462) que lhe indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 15 de Dezembro de 2003, do mesmo Tribunal. Este acórdão, alterando o efeito e o regime de subida de recurso interposto pelo recorrente de despacho do Tribunal Judicial de Vieira do Minho, decidira “não tomar, por ora, conhecimento do objecto do recurso e determinar que os autos sejam remetidos ao Tribunal recorrido, para aí o recurso ser processado com o efeito e regime de subida legalmente aplicáveis, ou seja – e nos termos já expostos – com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo da decisão recorrida”. Respondendo a convite que lhe foi formulado no tribunal a quo, nos termos do n.º
5 do artigo 75º-A da LTC, o recorrente define nos seguintes termos o objecto do recurso de constitucionalidade:
“(...)
2. Pretende o Recorrente ver apreciada a (in)constitucionalidade contida no douto Acórdão da Relação de Guimarães, tirado em conferência, de 15.12.2003, proferido a Fls.... dos autos, na medida em que tendo o Senhor Relator
‘suscitado no Exame Preliminar a questão prévia do efeito a fixar ao recurso e dos momentos e forma de subida do recurso” ao não ser dada ao recorrente – previamente à prolação do mesmo – oportunidade para o exercício do direito ao contraditório, tal constitui uma violação da norma contida no Artº 32º - n.º 5 da Constituição e configura, ainda, uma grave violação do direito às garantias de defesa consagrado no Art. 32º-n.º 1, 1ª parte da Constituição e até mesmo uma violação do Art. 32º-n.º1, 2ª parte, que consagra as mais amplas garantias de defesa e do direito efectivo ao recurso.
3. Pretende ainda o Recorrente ver apreciada a (in)constitucionalidade da norma atinente ao ‘Exame Preliminar’ pelo Relator, contida no Artigo 417º-n.º 3 alínea b) e n.º 4 alínea a) do C. P. Penal, - de que se fez aplicação no douto Acórdão em apreço – na interpretação de que, ‘suscitado no exame preliminar a questão prévia do efeito a fixar ao recurso e dos momento e forma de subida do recurso’ não carece de exercício do direito do Recorrente ao contraditório é inconstitucional.
(...).”
2. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas que tenham sido efectivamente aplicadas na decisão recorrida e cuja constitucionalidade tenha sido suscitada, de modo processualmente adequado, durante o processo. A inconstitucionalidade submetida à apreciação do Tribunal Constitucional tem de ser referidas a normas de direito infra-constitucional e não às próprias decisões que as apliquem, porque não está, entre nós, instituído um sistema de acesso ao Tribunal Constitucional do tipo do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã. É o que resulta da Constituição e da lei e tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 612/94,
634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II série, de 11 de Janeiro de
1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996, respectivamente).
2.1. Ora, a inconstitucionalidade que o recorrente refere no transcrito n.º 2 do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal é directamente imputada à decisão judicial impugnada. É o que inequivocamente resulta, quer dos termos literais do requerimento, quer da absoluta falta de referência a qualquer norma de direito infra-constitucional que, alegadamente, tenha sido objecto de aplicação em violação das normas constitucionais que o recorrente aí identifica.
Tanto basta para que, nesta parte, não possa conhecer-se do recurso.
2.2. Diversamente, no ponto 3 do mesmo requerimento, o recorrente já identifica uma norma cuja inconstitucionalidade quer ver apreciada : a norma contida no artigo 417º, n.º3, alínea b) e n.º 4, alínea a) do Código de Processo Penal, na interpretação de que, suscitada no exame preliminar a questão prévia do efeito a fixar ao recurso e dos momento e forma de subida do recurso, “não carece de exercício do direito do Recorrente ao contraditório”. Sucede, porém, que o recorrente não suscitou previamente esta questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. E dispôs de oportunidade para fazê-lo no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão de 15 de Dezembro de 2003. Com efeito, essa nulidade resultava, no entender do recorrente, precisamente, de ter sido proferida decisão a alterar o efeito e o regime de subida do recurso, em conformidade com questão suscitada ex novo no exame preliminar do relator, sem que ao recorrente tivesse sido dada oportunidade de sobre tal questão se pronunciar. Ora, não há, no requerimento de fls. 454 qualquer referência à norma agora em causa. O recorrente refere inconstitucionalidades, por violação do princípio do contraditório, do direito de defesa e do direito ao recurso em matéria penal, mas não as imputa à norma que agora identifica (nem, de resto, a qualquer outra). Não se verifica, portanto, nesta parte, o pressuposto específico do recurso de constitucionalidade interposto, que é a prévia suscitação da questão, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
3. Decisão Pelo exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 70º, n.º1, alínea b), 72º, n.º 2 e 78º-A, da referida Lei n.º 28/82, decido não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.”
2. O recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), pedindo que se decida conhecer do objecto do recurso quanto à norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 417.º, do Código de Processo Penal, com fundamento em que suscitou a respectiva inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal a quo. Para tanto afirma que:
“Com efeito, se é certo que essa suscitação não foi feita de forma expressa, não o é menos certo de que tácita e implicitamente outra coisa não resulta do Requerimento de Fls. 454 em que foi arguida a nulidade do douto Acórdão recorrido de 15.12.2003. Na verdade, logo no ponto n.º 1desse requerimento de fls. 454 se transcreve o parágrafo da decisão recorrida:
‘no exame preliminar, o Exmo. Senhor Desembargador- Relator suscitou a questão prévia do efeito a fixar ao recurso e dos momento e forma de subida do recurso’. Ora, a pertinente norma em causa atinente ao Exame Preliminar e à suscitação pelo Senhor Desembargador-Relator da questão prévia do efeito a fixar ao recurso e dos momento e forma de subida do recurso, não é senão a própria norma contida no Art. 417º - n.º 3 alínea b) do C.P.Penal e nenhuma outra. Assim, naquele Requerimento de fls. 454 essa norma do Artº 417º - n.º 3 alínea b) do C.P.Penal clara e inequivocamente está subjacente a todo o teor desse Requerimento. Deste modo, deverá considerar-se que a prévia suscitação da questão de constitucionalidade foi feita de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.”
O Ministério Público sustenta que a reclamação é improcedente, porque “o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso que interpôs.”
3. Os termos do requerimento de arguição de nulidade do acórdão de
15 de Dezembro de 2003, que para o reclamante comportam suscitação adequada da questão de constitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 417.º, do Código de Processo Penal, são os seguintes:
“(...)
5. O conteúdo do princípio do contraditório vem fixado no Artº 3º - N.º 3 do Cód. Processo Civil, – aplicável ao processo penal (artº 4º C.P. Penal e Artº
32º - n.º 5 da Constituição) – que estatui: ‘O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.’ Inconstitucionalidades
6. O princípio do contraditório tem natureza constitucional e aplica-se ao processo penal (Art. 32º - n.º 5 da Constituição).
7. É que, no caso ocorrente, a ‘Questão Prévia’ suscitada não é uma questão prévia (formal) qualquer, é que tal poderá implicar na prática uma violação do direito efectivo ao recurso, direito esse que tem garantia constitucional no Artº 32º – n.º 1 da Constituição.
8. A entender-se diferentemente, então tal configuraria uma clara violação do direito às garantias de defesa consagrado no Artº 32º – n.º 1, 1ª parte da Constituição e até mesmo uma violação do Art.º 32º – n.º 1, 2ª parte que consagra as mais amplas garantias de defesa e do direito ao recurso, o que aqui se argui para os legais efeitos.
9. Ademais, ressalvado o devido respeito, dir-se-á desde já que a suscitada Questão Prévia está mal decidida, pois que o interposto recurso seria inútil se não lhe fosse atribuído efeito suspensivo, dado que esse recurso tem por finalidade manter a liberdade do Recorrente.
10. Defende pois o Arguido/Recorrente que deve ser mantido o douto Despacho de admissão do recurso proferido a Fls. 425 dos autos, pelo Mmo. Juiz do Tribunal de 1ª Instância.
11. De contrário, o efeito do recurso interposto seria esvaziado de sentido e tornar-se-ia o mesmo recurso inútil, o que configuraria uma grave violação do direito efectivo ao recurso, consagrado no Art.º 32º – n.º 1, 2ª parte da Constituição, que aqui se argui para os efeitos devidos.
12. De resto, sempre se dirá ainda que – com a interposição do(s) recurso(s) – o Arguido/recorrente apenas se limitou a exercer o direito de defesa constitucionalmente consagrado e a utilizar o meio adequado para o efeito que é o recurso e o direito ao recurso.
13. Esse meio não é ilegítimo, antes é um meio legítimo de exercício das garantais de defesa, que tem por suporte o próprio princípio constitucional da presunção de inocência.”
Analisada esta intervenção processual do recorrente, reitera-se o entendimento da decisão sumária de que não foi suscitada, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa.
Em primeiro lugar, lembra-se que a jurisprudência do Tribunal tem unanime e firmemente entendido que, para abrir a possibilidade de recurso ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, além de parâmetros temporais que aqui não estão em discussão, “as questões de constitucionalidade devem ser equacionadas em termos claros, directos e operativos, de modo a não restarem dúvidas ao tribunal que vai proferir a decisão de que deve tomar conhecimento dessas questões” (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 280/99, in
www.tribconstitucional.pt ), como expressamente dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC. O que, apesar de não exigir uma fórmula sacramental, é dificilmente compatível com a relevância de conteúdos não explícitos do acto processual.
Em segundo lugar, mesmo que se admita que a suscitação da questão de inconstitucionalidade pode ser implícita – no sentido de não ser necessária a identificação textual da norma por expressa referência ao preceito legal ou regulamentar que a suporta - a leitura daquela peça processual do recorrente não permite, segundo um padrão objectivo, descortinar uma vontade processual dirigida a provocar a desaplicação, por parte do Tribunal “a quo”, da referida norma de direito ordinário por desconformidade com regras ou princípios constitucionais. Essa pretensão não encontra nessa peça um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa. A invocação que de normas constitucionais se faz no requerimento de arguição de nulidade surge referida à decisão aí atacada (ou à alegada preterição do contraditório que a sua prolação concretiza), para mostrar o seu desacerto, nada havendo que devesse levar o tribunal a quo a equacionar, como não equacionou, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação, confirmando a decisão de não conhecimento do objecto do recurso, e condenar o recorrente nas custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Outubro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Rui Manuel Moura Ramos