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Processo n.º 589/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e mulher B. requereram, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, ao abrigo dos artigos 111.º, alínea a), e 4.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, a intimação da Câmara Municipal de Setúbal a aprovar o projecto de arquitectura correspondente ao processo de licenciamento n.º ----/2002, fixando-se, para tanto, prazo não superior a 10 dias. Aduziram, em suma, que: (i) apresentaram à entidade requerida, em 11 de Setembro de 2002, projecto de arquitectura respeitante à construção de uma moradia nos --------------, -------------, ---------, em zona que foi classificada como Parque Natural, de acordo com o Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de Outubro, o que gerava a obrigação, para a requerida, de pedir parecer prévio ao Parque Natural da Arrábida (PNA); (ii) no entanto, essa classificação como área protegida caducou – por força do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 19/83, de 23 de Janeiro – em 14 de Outubro de 2001, por não ter sido elaborado e publicado o Plano de Ordenamento do Território do PNA no prazo máximo de 3 anos previsto no artigo 18.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98;
(iii) desde essa data deixou de ter suporte legal a exigência de pedido de parecer prévio ao PNA; (iv) o artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, que prorrogou por dois anos o prazo de aprovação dos planos de ordenamento do território das áreas protegidas que ainda não dispusessem de tais instrumentos especiais de gestão territorial e fez retroagir os efeitos desse diploma ao termo dos prazos fixados nos diplomas mencionados no n.º 1 para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos, deve ser interpretado como só se aplicando às áreas protegidas cuja classificação ainda se encontrava em vigor à data da sua publicação, o que não acontecia com o PNA;
(v) outro entendimento violaria o disposto nos artigos 12.º, n.º 1, do Código Civil e 18.º, n.º 3, e 65.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa
(CRP); (vi) inexistindo, assim, a necessidade de obtenção de qualquer parecer prévio, já se mostra decorrido o prazo legal de 45 dias para a requerida apreciar o projecto de arquitectura em causa, pelo que o mesmo deve considerar-se tacitamente deferido.
O pedido de intimação foi julgado improcedente por sentença de 21 de Maio de 2003 do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, com base na seguinte fundamentação:
“(...) adiantemos, desde já, que, em nosso entender, não assiste qualquer razão aos requerentes quando afirmam encontrar-se esgotado o prazo legal que a requerida dispunha para aprovar o projecto de arquitectura por si apresentado. Aliás, tal conclusão, extraem-na os requerentes exclusivamente partindo do pressuposto de que, actualmente, já não existe Parque Natural da Arrábida como
área protegida uma vez que, não tendo sido elaborado, dentro do prazo de 3 anos expressamente previsto no artigo 18.° do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de Outubro, Plano de Ordenamento do Território – prazo esse esgotado em 14 de Outubro de 2001 – caducou a classificação supra referida da área em referência e, consequentemente, deixou de ser exigível qualquer parecer à Comissão Directiva. Porém, tal pressuposto está errado, sendo nosso entendimento não só que se mantém a classificação ou reclassificação do Parque Natural do Arrábida como
área protegida como, em conformidade, o parecer da dita Comissão Directiva continua a ser obrigatório, sendo apenas a contar da data da recepção do mesmo ou decorrido o prazo que a mesma dispõe para o emitir – ainda que o não faça – que se inicia a contagem do prazo que a Câmara Municipal, in casu, de Setúbal,
[tem para] aprovar ou não aprovar o referido projecto de arquitectura apresentado pelo requerente (artigo 20.° do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro).
Tal entendimento funda-se, óbvia e juridicamente, no artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro.
É certo que, como dizem os requerentes, aquando da entrada do seu pedido de licenciamento, tinham já decorrido os 3 anos previstos no Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de Outubro (artigo 18.º), para que elaborado fosse o Plano de Ordenamento do Território.
Acontece, porém, que tal diploma (e reportamo-nos agora ao Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro) não só manteve as classificações e reclassificações operadas pelos diversos diplomas que as operaram (n.º 1), como prorrogou por mais dois anos o prazo para elaboração dos planos de ordenamento das áreas protegidas que ainda não disponham de tais elementos, como, por
último, no n.º 3, determinou que os efeitos do presente diploma retroagiam à data do termo dos prazos fixados nos mesmos diplomas para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos. Isto é, com o expressamente consagrado de forma clara no artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, o legislador cumpriu o objectivo primeiro que com tal publicação ou criação legal se visava atingir: obviar a que, por atrasos verificados na emissão ou elaboração de Planos de Ordenamento do Território relativos a áreas protegidas, as mesmas viessem a ser irremediavelmente atacadas, com a consequente eliminação ou frontal violação de valores naturais cuja protecção constitucional não estava, nem foi posta em causa sequer pelos próprios requerentes. Mais claro, em termos terminológicos e conforme ao plano de intenções explanado no seu preâmbulo, dentro, ainda, do contexto justificativo e histórico do seu aparecimento no ordenamento jurídico, o legislador não podia ser.
Afirmam, ainda, os requentes, para sustentarem juridicamente a sua tese de inexistência de Parque Natural da Arrábida, da inexigibilidade de qualquer parecer da Comissão Directiva do mesmo Parque e, consequentemente, do decurso já do prazo que a requerida dispunha para decidir da aprovação ou não do seu projecto de arquitectura para a referida área protegida, que a interpretação defendida quer pela autoridade requerida quer pelo Ministério Público – e como já afirmamos ser também a nossa – é violadora do preceituado no artigo 12.° do Código Civil.
Porém, também nesta parte da sua argumentação jurídica lhe falece a razão.
Na verdade, o artigo 12.°, n.º 1, do Código Civil estabelece que «A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe sejam atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular».
Ora, tendo no caso concreto sido atribuída eficácia retroactiva, não descortinamos que efeitos haviam já sido produzidos quando o Decreto-Lei n.º
204/2002 foi publicado, sendo certo que a caducidade da própria classificação ou reclassificação não era certamente um dos factos que o legislador visava com a publicação da mesma.
Isto é, os eventuais efeitos que se impunham fossem salvaguardados se tivessem sido produzidos na ordem jurídica e que o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, não podia colocar em causa seriam, por exemplo, um eventual acto de licenciamento expresso ou tácito que tivesse já ocorrido quando a lei foi publicada, que no caso nem sequer vem alegado tenha ocorrido nem efectivamente ocorreu.
Por outro lado, os requerentes não podem olvidar que o n.º 1 do normativo em análise fala em presunção quanto à ressalva dos efeitos produzidos.
Ora, tal presunção aparece absoluta e expressamente ilidida com a publicação e conteúdo do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro.
Na verdade, o legislador é claro quanto a ser sua intenção com tal publicação: evitar que qualquer obstáculo se coloque à realização dos objectivos a alcançar com a classificação e/ou reclassificação das áreas protegidas – protecção dos valores naturais em causa, protecção do ambiente, independentemente do que entretanto tenha ocorrido e daí que, conforme expressa e legalmente a lei processual e Lei Fundamental admitem, dispor para o passado.
Mas, mesmo que assim fosse, isto é, mesmo que se entendesse, como pretendem os requerentes, que no caso concreto o Tribunal não pode deixar de considerar o preceituado no artigo 12.°, n.º 1, do Código Civil na perspectiva exclusiva de que a lei só pode regular para o futuro e de que a retroactividade imposta pelo legislador in casu não releva, o certo é que, mesmo assim, não poderia vingar a sua posição.
É que o artigo e diploma chamados à colação não se esgota no seu n.º
1.
Pelo contrário, tem um n.º 2, o qual, por sua vez, determina, como excepção à regra geral consagrada no seu n.º 1 que «Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos» (bold de nossa autoria).
Ora, no caso concreto, o Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, ao proceder à manutenção da classificação ou reclassificação das áreas protegidas, ao prolongar o tempo de elaboração dos Planos de Ordenamento de Território e ao fazer retroagir ao termo dos referidos prazos (prolongados) tais efeitos, acabou por proceder à manutenção das exigências decorrentes de tais classificações. Isto é, acabou por dispor, ainda que reflexamente, sobre as condições de validade substancial e formal do procedimento a adoptar no procedimento de licenciamento no âmbito do qual se insere a presente intimação da Câmara Municipal para aprovação do projecto de arquitectura.
Ora, não subsistindo dúvidas, inexiste fundamento legal para que apenas se aplique aos factos novos, isto é, aos licenciamentos entrados na Câmara após a publicação do mesmo diploma ou, como pretendem os requerentes, apenas às áreas protegidas relativamente às quais se encontravam, à data de publicação do mesmo diploma, em curso os prazos para elaboração dos respectivos Planos de Ordenamento do Território.
E, sendo assim, isto é, mantendo-se a classificação do PNA; a necessária consulta da sua Comissão Directiva cujo parecer é prévio à apreciação camarária do processo de licenciamento em causa; não tendo a Câmara Municipal de Setúbal procedido ainda a tal consulta nem os requerentes solicitado o mesmo (faculdade que igualmente lhes assiste, obviando a demoras que considerem inaceitáveis pela Administração Local), forçoso é concluir que ainda se não iniciou, sequer, a contagem do prazo referido no preceito supra citado.
Portanto, tem de concluir-se que, no caso, diferentemente do que entendem os requerentes, não se esgotou o prazo que a Câmara Municipal de Setúbal dispõe para decidir por nem sequer estarem reunidas as condições para o início da contagem do referido prazo.
Assim sendo, faltando, como falta, a verificação de um pressuposto para a intimação para aprovação do projecto de arquitectura, não poderá a mesma deixar de ser indeferida.”
Desta decisão interpuseram os requerentes recurso para o Tribunal Central Administrativo, suscitando, nas respectivas alegações, além do mais, a questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 204/2002, por assumir características de “lei medida” e não respeitar a proibição de retroactividade de restrições de direitos fundamentais, assim violando os artigos 2.º, 18.º, n.º 3, 62.º, 65.º, n.ºs 4 e 5, e 66.º, n.º 2, da CRP.
Por acórdão de 22 de Julho de 2003, o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, nos termos do artigo 713.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
É deste acórdão que vem interposto, pelos recorrentes, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), o presente recurso, tendo por objecto a apreciação da inconstitucionalidade – por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 3, 62.º, 65.º, n.ºs 4 e 5, 66.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 112.º, n.º 2 da CRP – da “interpretação consagrada no acórdão recorrido da aplicação do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, do artigo
12.º, n.º 1, do Código Civil, e do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro”.
No Tribunal Constitucional, o relator consignou que “das alegações dos recorrentes para o Tribunal Central Administrativo resulta que a questão de inconstitucionalidade suscitada se restringiu à norma do n.º 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, pelo que a essa questão igualmente se deverá restringir o objecto do presente recurso de constitucionalidade” e determinou a produção de alegações, “devendo os recorrentes pronunciar-se, querendo, sobre a delimitação do objecto do recurso atrás enunciada”.
Os recorrentes apresentaram alegações, no termo das quais formularam as seguintes conclusões:
“A. O entendimento dado pelo TCA ao Decreto-Lei n.º 204/2002, no sentido de que o Governo pode repor a classificação já caducada de uma área protegida de interesse nacional, como é o caso do PNA, sem que haja envolvimento e participação dos cidadãos, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território, consagrado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 65.° da CRP, e, em especial, na criação de parques naturais, consagrado nas a1íneas b) e c) do n.º 2 do artigo 66.° da CRP,
B. Esse entendimento viola também o princípio constitucional da democracia participativa, consagrado no artigo 2.° da CRP.
C. A caducidade da classificação do PNA está reconhecida no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 204/2002.
D. A caducidade acarreta a obrigatoriedade de nova classificação do PNA como área protegida.
E. O entendimento do acórdão do TCA, ao ignorar o disposto nos artigos 12.° e 13.°, n.ºs 3, 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 19/93, viola o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais, consagrado nos artigos 65.° e 66.° da CRP.
F. O acórdão do TCA, ao permitir a reposição de uma classificação já caducada, através do mecanismo da retroactividade, reduz ao grau zero a participação dos cidadãos no processo de classificação de áreas protegidas, violando frontal e grosseiramente o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 65.° e no n.º 2 do artigo 66.°, ambos da CRP.
G. A reclassificação do PNA operada pelo Decreto Regulamentar n.º
23/98, nos termos do artigo 32.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 19/93, tem carácter excepcional.
H. A interpretação dada pelo acórdão do TCA ao Decreto-Lei n.º
204/2002 possibilita a manutenção do carácter excepcional da disposição atrás citada, por tempo indefinido, em violação flagrante do princípio constitucional do direito da participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território e na criação de parques naturais (artigos 2.°,
65.° e 66.° da CRP).
I. O acórdão do TCA, ao aceitar a retroactividade do Decreto-Lei n.º
204/2002, no pressuposto da protecção de valores ambientais, ignorou que ao Governo se impunha lançar mão das medidas previstas no artigo 8.° da Lei dos Solos – por remissão do artigo 107.°, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 380/99 – para protecção das áreas, cuja classificação caducou, o que teria, eficazmente, salvaguardado as zonas em causa, sem violação de qualquer princípio constitucional.
J. A interpretação consagrada no acórdão do TCA admite que, por via da retroactividade, nunca se viesse a verificar a caducidade da classificação de uma zona como área protegida, o que implica a negação do princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território (artigo 65.° da CRP) e, em especial, na criação de parques naturais (artigo 66.° da CRP), e ainda, e mais amplamente, a negação do princípio da democracia participativa, consagrado no artigo 2.° da CRP.
K. O direito à democracia participativa está amplamente consagrado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, no que respeita ao direito de participação dos trabalhadores.
L. Nos termos do artigo 2.° da CRP, o aprofundamento da democracia participativa não distingue, nem privilegia, o direito dos trabalhadores face ao direito dos cidadãos.
M. O entendimento dado pelo TCA ao Decreto-Lei n.º 204/2002, no sentido de que é dispensável a participação dos cidadãos para a criação de um parque natura1, viola o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos, consagrado no artigo
18.°, n.º 3, da CRP.
N. O acto de classificação de um parque natural implica, também, a restrição/limitação de direitos dos cidadãos, razão pela qual se garante, constitucional e legalmente, a correcta ponderação dos interesses público e privado.
O. A obrigatoriedade desta ponderação, espelhada na necessidade do envolvimento e participação dos cidadãos, mais não é do que um corolário do princípio da imparcialidade da Administração e um reforço do princípio democrático.
P. Toda e qualquer lei restritiva de direitos fundamentais terá de revestir carácter geral e abstracto e jamais poderá ser retroactiva – cfr. artigo 18.º, n.º 3, da CRP.
Q. A CRP proíbe a retroactividade quando se verifique a restrição de um direito fundamental.
R. É manifesto que a retroactividade do Decreto-Lei n.º 204/2002 restringe o direito fundamental dos cidadãos à participação, consagrado nos artigos 2.º, 65.º e 66.º da CRP.
S. A retroactividade do Decreto-Lei n.º 204/2002, no que respeita ao prolongamento dos prazos para aprovação dos planos de ordenamento das áreas protegidas, cuja classificação ainda não tivesse caducado à data da sua publicação, é perfeitamente válida.
T. O TCA, ao efectuar a interpretação da possibilidade de aplicação retroactiva do Decreto-Lei n.º 204/2002, repondo em vigor a classificação caducada, está a violar o princípio da participação democrática – artigo 2.º da CRP –, o princípio constitucional da não retroactividade das leis restritivas dos direitos e garantias dos cidadãos – artigo 18.º, n.º 3, da CRP –, e o princípio constitucional do direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território – n.ºs 4 e 5 do artigo 65.º da CRP –, e na criação de parques naturais – alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo
66.º da CRP.”
A recorrida não apresentou alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, que estabeleceu normas relativas à Rede Nacional de Áreas Protegidas, previu a existência de áreas protegidas de interesse nacional, regional ou local, consoante os interesses que procuram salvaguardar (artigo 2.º, n.º 2) e, dentre as áreas protegidas de interesse nacional, as seguintes quatro categorias: parque nacional, reserva natural, parque natural e monumento nacional (artigo 2.º, n.º 3). O artigo 13.º desse diploma dispôs que a classificação de área protegida fosse feita por decreto regulamentar, que devia definir: (i) o tipo e delimitação geográfica da área e seus objectivos específicos; (ii) os actos e actividades condicionados ou proibidos; (iii) os
órgãos, sua composição, forma de designação dos respectivos titulares e regras básicas de funcionamento; e (iv) o prazo de elaboração do plano de ordenamento e respectivo regulamento (artigo 13.º, n.º 1). A classificação era obrigatoriamente precedida de inquérito público e audição das autarquias locais e dos ministérios competentes (artigo 13.º, n.º 3). Nos termos do n.º 2 deste artigo 13.º: “A classificação caduca pelo não cumprimento do prazo referido na alínea d) do n.º 1”, isto é, do prazo de elaboração do plano de ordenamento e respectivo regulamento. Relativamente às áreas protegidas existentes, o artigo
32.º, n.º 1, dispôs que: “A classificação feita ao abrigo da Lei n.º 9/70, de
19 de Junho, e do Decreto-Lei n.º 613/76, de 27 de Julho, bem como os respectivos diplomas de criação são revogados no momento da entrada em vigor dos decretos regulamentares que procederem à sua reclassificação, nos termos dos artigos 13.º, 27.º e 31.º”, sendo que a estes decretos regulamentares não se aplicava o disposto, designadamente, no n.º 3 do artigo 13.º.
O Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de Outubro, procedeu à reclassificação do Parque Natural da Arrábida (criado pelo Decreto-Lei n.º 622/76, de 28 de Julho), estabelecendo o n.º 1 do seu artigo
18.º que “O Parque Natural é dotado de um plano de ordenamento do território, nos termos do Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho, a elaborar no prazo máximo de três anos a contar da data da publicação do presente diploma”. O referido Decreto-Lei n.º 151/95 veio harmonizar o regime jurídico dos planos especiais de ordenamento do território (isto é: dos planos que fixam princípios e regras quanto à ocupação, ao uso e à transformação do solo na área por eles abrangida, visando a satisfação de um interesse público concreto através de um correcto ordenamento do território, e que podiam ser dos seguintes tipos: planos de ordenamento florestal, planos de ordenamento e expansão dos portos, planos integrados de habitação, planos de salvaguarda do património cultural, planos de ordenamento de áreas protegidas, planos de ordenamento de albufeiras da
águas públicas e planos de ordenamento da orla costeira).
O Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, veio dispor, no seu artigo único:
“1 – Mantém-se em vigor a classificação das áreas protegidas operada pelos diplomas que procederam à sua criação ou à respectiva reclassificação nos termos do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro.
2 – No prazo de dois anos, a partir da data da entrada em vigor do presente diploma, devem ser aprovados os planos de ordenamento das áreas protegidas que ainda não disponham de tais instrumentos especiais de gestão territorial.
3 – Os efeitos do presente diploma retroagem ao termo dos prazos fixados nos diplomas mencionados no n.º 1 do presente artigo, para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos.”
A justificação desta intervenção legislativa consta do respectivo preâmbulo, do seguinte teor:
“O regime jurídico da Rede Nacional de Áreas Protegidas, contido no Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, com a redacção conferida pelos Decretos-Leis n.ºs
151/95, 213/97 e 227/98, de 24 de Junho, 16 de Agosto e 17 de Julho, respectivamente, estabelece que a classificação das áreas protegidas é efectuada por decreto regulamentar, o qual fixa o prazo de elaboração do plano de ordenamento e respectivo regulamento. Dispõe, ainda, que a classificação caduca pelo não cumprimento do prazo fixado para elaboração de tal plano especial de ordenamento do território. Logo que tomou posse, o XV Governo Constitucional procedeu a uma apreciação exaustiva dos procedimentos de elaboração e de revisão dos planos de ordenamento das áreas protegidas, tendo verificado que ainda se acham em curso a maior parte daqueles procedimentos, muitos deles ainda numa fase inicial, e apenas cinco em condições de se proceder à abertura do período de discussão pública. Incumpridos os prazos para elaboração dos planos de ordenamento, o Governo anterior optou, em determinados casos, por prorrogá-los por meio de resolução do conselho de ministros, como forma de obstar às consequências legais de inércia verificada em muitos daqueles procedimentos, fundamentando-se no disposto no artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, para disciplinar o processo de elaboração dos instrumentos de gestão territorial, neste caso, dos planos especiais de ordenamento do território. De todo o modo, também alguns dos prazos fixados por aqueles instrumentos regulamentares já expiraram ou o seu termo encontra-se iminente, pelo que urge adoptar medidas que salvaguardem, de imediato, as componentes ambientais naturais que justificam que estas áreas se encontrem sujeitas a um especial estatuto de protecção. Do mesmo passo, o Governo estabelecerá orientações claras e precisas para que os serviços responsáveis promovam rapidamente a conclusão dos procedimentos de elaboração dos planos de ordenamento das áreas protegidas. Foram ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses e as associações de defesa do ambiente.”
Refira-se, por último, que, estando a obra de construção de moradia que os recorrentes pretendiam executar sujeita a licença municipal
(artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro) e, por ter lugar em área protegida, sujeita ainda a autorização da respectiva comissão directiva (artigo 18.º, n.º 3, alínea d), do Decreto-Lei n.º 19/93, de
23 de Janeiro), o prazo para a câmara municipal deliberar sobre o projecto de arquitectura se contava, nos termos do n.º 3 do artigo 20.º desse diploma: (i) da data da recepção do pedido ou dos elementos solicitados ao requerente ao abrigo do n.º 4 do artigo 11.º; (ii) da data da recepção do último dos pareceres, autorizações ou aprovações emitidos pelas entidades exteriores ao município, quando tenha havido lugar a consultas; ou (iii) do termo do prazo
(prazo esse que é de 20 dias, se outro não for especialmente estabelecido na legislação aplicável – n.º 8 do artigo 19.º) para a recepção dos pareceres, autorizações ou aprovações, sempre que alguma das entidades consultadas não se pronuncie até essa data. Decorrido o prazo fixado para a prolação de deliberação camarária sobre o projecto de arquitectura, o interessado podia pedir ao tribunal administrativo de círculo da área da sede da autoridade requerida a notificação desta para proceder à prática do acto devido, fixando-se para tanto prazo não superior a 31 dias (artigos 111.º, alínea a), e 112.º, n.ºs 1 e 6); decorrido o prazo fixado pelo tribunal sem que se mostrasse praticado o acto devido, o interessado ficava habilitado a juntar os projectos de especialidades ou, se já os tivesse apresentado no requerimento inicial, iniciava-se a contagem do prazo de 45 dias para a deliberação final sobre o pedido de licenciamento
(artigos 112.º, n.ºs 9 e 10, e 23.º, n.º 1, alínea c), todos do Decreto-Lei n.º
555/99).
Na tese dos recorrentes, da inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, se interpretada – como o foi nas decisões das instâncias – como aplicável à classificação de área protegida que, antes da publicação desse diploma, havia caducado, nos termos do n.º 2 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 19/93, por falta de publicação, no prazo assinalado no respectivo decreto regulamentar (no caso, 3 anos, de acordo com o Decreto Regulamentar n.º 23/98), do correspondente plano de ordenamento e seu regulamento, derivava a não exigência de autorização da comissão directiva do Parque e, daí, o contar-se o início do prazo para emissão de deliberação do projecto de arquitectura, não da data da recepção dessa autorização (ou do termo do prazo para a sua emissão), mas da data da apresentação do requerimento pelos interessados (ou da junção dos elementos que devessem instruir esse requerimento e estivessem eventualmente em falta).
2.2. Feita a resenha das disposições legais relevantes, cumpre começar por assinalar que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcção da interpretação do direito ordinário feita pelas instâncias no sentido de que o Decreto-Lei n.º 204/2002 também se aplica à classificação das áreas protegidas relativamente às quais o prazo para elaboração do plano de ordenamento do território e respectivo regulamento já se havia esgotado antes da publicação desse diploma (e não apenas – como sustentavam os recorrentes – às situações em que esse prazo ainda estava a decorrer), embora as considerações tecidas no preâmbulo desse diploma, acima transcrito, surjam como confortando o entendimento das instâncias.
O que cabe ao Tribunal Constitucional é apreciar se esse entendimento se mostra constitucionalmente conforme. Os recorrentes centram a sua tese na afirmação da violação da proibição da retroactividade de restrições aos direitos fundamentais, que reportam ao artigo 18.º, n.º 3, da CRP, embora tenha variado a identificação do “direito fundamental” em causa: (i) nas alegações do recurso para o Tribunal Central Administrativo [cf. seus n.ºs 30 a
37 e conclusão K)], esse direito foi identificado como o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da CRP como “direito fundamental de natureza análogo aos direitos, liberdades e garantias”, uma vez que “o acto de classificação de um Parque Natural implica a restrição/limitação do direito de propriedade dos proprietários de terrenos situados na sua área de intervenção”, embora no n.º 43 e na conclusão Q) dessas alegações também se aluda a violação dos artigos 65.º, n.ºs 4 e 5, e 66.º, n.º 2, alíneas b) e c), da CRP, mas sem desenvolvimento dos fundamentos dessa imputação; enquanto (ii) nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, é omitida qualquer referência ao direito de propriedade e agora se identifique como direito fundamental alvo de restrição retroactiva o direito de participação dos cidadãos na elaboração de instrumentos de planeamento físico do território (n.ºs 4 e 5 do artigo 65.º da CRP) e na criação de parques naturais (alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP).
A questão da retroactividade de restrições a “direitos fundamentais” no âmbito da legislação sobre protecção do ambiente e planeamento do território foi objecto de desenvolvida ponderação no Acórdão n.º 329/99
(Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, pág. 10 576; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 488, pág. 57; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º vol., pág. 129) – em que se questionava a constitucionalidade das normas do artigo 1.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º
351/93, de 7 de Outubro, que sujeitavam as licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção emitidas anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território a confirmação da sua compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes desses planos –, interessando recordar as considerações então aí tecidas, embora a propósito do direito de propriedade. Escreveu-se nesse aresto:
“5. As questões de inconstitucionalidade material:
5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo «a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93», e encurtando «o prazo de caducidade daqueles actos»,
«estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi».
Também neste ponto falece razão à recorrente.
De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito.
Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) – e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.
Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da «sombra desqualificante da desigualdade» que sobre eles pesa (cf. Fernando Alves Correia, in Problemas Actuais cit.
[Problemas Actuais do Direito do Urbanismo em Portugal, separata da Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente], pág.
19).
As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18.º, n.º 3, conjugado com o artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.
(...)
5.2. As normas sub iudicio e o dever de indemnizar:
A recorrente sustenta ainda que, como não prevêem «a atribuição de qualquer indemnização aos lesados pela prática de acto ablativo de não confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos perfeitamente válidos e eficazes à data da sua prolação, nem pela caducidade resultante dos novos prazos estabelecidos para o exercício dos direitos emergentes daqueles actos» – acto de não confirmação que pode constituir «verdadeiro acto expropriativo do direito de construir concretizado através de licenças urbanísticas válidas e eficazes» – as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, «enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade» (artigos 13.º, 18.º, 62.º e 266.º da Constituição).
Vejamos, então:
Disse-se atrás que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo.
Por isso, a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será – sublinha Fernando Alves Correia, Estudos de Direito do Urbanismo citado, págs. 47 e notas 10 e 11, 68, 112 e 120 – quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
É que, o Estado de Direito deve ser um Estado de Justiça. E, por isso, quando, por tal ser necessário para a realização de um interesse público urbanístico, ele «expropria» o particular de um direito que antes lhe concedera validamente, a justiça exige que esse particular seja indemnizado, como, de resto, impõe o artigo 22.º da Constituição.
Pois bem: uma das situações que, por via da gravidade e da intensidade dos danos que produz na esfera jurídica dos particulares, impõe o pagamento de uma indemnização é, justamente, aquela em que as licenças ou autorizações de loteamento, urbanização ou construção já concedidas são postas em causa por um plano urbanístico posterior, designadamente, em virtude de, como
é o caso, uma lei posterior vir retirar eficácia a licenças de loteamento, urbanização ou construção já concedidas, desde que se não prove que essas licenças já concedidas são compatíveis com as regras de uso, ocupação ou transformação dos solos, constantes desse plano. Esta perda de eficácia, importando a ablação de faculdades ou direitos antes reconhecidos aos particulares, não pode ter lugar senão mediante o pagamento de uma indemnização.
Mas, então, como o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não prevê o pagamento de indemnização no caso de as licenças já concedidas não serem confirmadas, a conclusão que parece impor-se é a de que, tal como pretende a recorrente, as normas aqui sub iudicio são, nesse ponto, inconstitucionais, por violação da princípios da justa indemnização, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça – tudo conforme ao disposto nos artigos 62.º, n.º 2, 13.º e 266.º, n.º 2, da Constituição.
Esta é, contudo, uma conclusão apressada.
É que, não é necessário que o dever de indemnizar seja imposto pelo diploma legal em que se inscrevem as normas sub iudicio para se salvar a sua compatibilidade com a Constituição. Basta que esse dever decorra de outras normas legais.
De facto – como escreve Marcelo Rebelo de Sousa (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, cit., pág. 57) –, «o juízo de inconstitucionalidade não pode recair sobre uma norma legal dissociando-se de todas as demais que vigoram no ordenamento jurídico e, designadamente, daquelas que lhe são mais próximas».
Pois bem: se, no momento em que foi editado o Decreto-Lei n.º
351/93, de 7 de Outubro, não havia norma legal que expressamente previsse o dever de indemnizar, com fundamento no facto de, por «caducarem» as licenças anteriormente concedidas, se ficar impedido de urbanizar ou construir em loteamento já autorizado; o certo é que esse direito a ser indemnizado podia fazer-se decorrer do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 27 de Novembro de
1967.
Na verdade, este artigo 9.º prescreve que o «Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais».
Ora, no caso, o que conduz à perda de eficácia das licenças anteriormente concedidas é um encadeamento de actos que se iniciou com a aprovação de um novo plano de ordenamento; prosseguiu com a edição de normas que, ao exigirem a prova da compatibilidade das licenças anteriormente concedidas, afectam situações jurídicas criadas pela outorga dessas licenças – e, por isso, nessa parte, podem dizer-se «leis medida»; continua, nalguns casos, com o indeferimento do pedido de certificação daquela compatibilidade ou com a não aprovação de projectos de obras de urbanização de loteamentos anteriormente licenciados (e, assim, com a não emissão do respectivo alvará); e culmina, a final, com a perda de eficácia das licenças que antes foram validamente atribuídas.
Sendo isto assim, uma interpretação do mencionado artigo 9.º à luz do artigo 22.º da Constituição não pode deixar de impor ao Estado o dever de indemnizar o particular que assim se viu «expropriado» de faculdades ou direitos que antes lhe foram validamente reconhecidos.
Regista-se que, presentemente, o direito a ser indemnizado encontra-se expressamente consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da citada Lei n.º
48/98, de 12 de Agosto, nos termos seguintes:
«1. Os instrumentos de gestão patrimonial vinculativos dos particulares devem prever mecanismos equitativos de perequação compensatória, destinados a assegurar a redistribuição entre os interessados dos encargos e benefícios deles resultantes, nos termos a estabelecer na lei.
2. Existe o dever de indemnizar sempre que os instrumentos de gestão patrimonial vinculativos dos particulares determinem restrições significativas de efeitos equivalentes a expropriação, a direitos de uso do solo preexistentes e juridicamente consolidados que não possam ser compensados nos termos do número anterior.
3. A lei define o prazo e as condições de exercício do direito à indemnização previsto no número anterior.
Este artigo 18.º – para além de impor que os planos vinculativos dos particulares (ou seja: os planos municipais e os planos especiais de ordenamento do território: cf. artigo 11.º, n.º 2, da citada Lei n.º 49/98) prevejam mecanismos de perequação dos benefícios e encargos deles resultantes – prevê, pois, o dever de indemnizar naqueles casos que se poderão qualificar como expropriações do plano (cf. Fernando Alves Correia, Problemas Actuais, cit., pág. 20). Elas traduzem, na verdade – diz o mesmo autor (ob. e loc. cit.) –,
«modificações especiais e graves da utilitas do direito de propriedade que não podem deixar de ser qualificadas como ‘expropriativas’ (expropriações de sacrifício ou substanciais)»; e, consequentemente, não podem deixar de «ser acompanhadas de indemnização, ainda que com carácter residual, ou seja, quando a compensação não puder ter lugar com base nas técnicas perequativas».
Há, assim, que concluir que, como o regime instituído pelas normas sub iudicio deve ser integrado pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 27 de Novembro de 1967, interpretado por forma a impor ao Estado o dever de indemnizar os particulares que, por aplicação daquelas normas, vejam «caducar» as licenças que antes obtiveram validamente, o facto de não imporem, elas próprias, esse dever de indemnizar não as torna inconstitucionais.
(...)
5.5. As normas sub iudicio e o princípio do Estado de Direito:
A recorrente sustenta ainda que as normas sub iudicio, como se aplicam retroactivamente, violam os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsitos no princípio do Estado de Direito
– e, assim, os artigos 2.º, 9.º, alínea b), 18.º, n.º 2, e 266.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Também neste ponto a recorrente não tem razão.
Pode, desde logo, questionar-se se as normas sub iudicio, ao determinarem (para o que aqui importa) a «caducidade» das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas, são verdadeiramente retroactivas [cf. o Acórdão n.º 339/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17.º, pág. 333 e seguintes)].
De todo o modo, acontece que, fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103.º, n.º
3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18.º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional [cf. Acórdão n.º 95/92
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21.º, pág. 341 e seguintes)]. Fora dos domínios apontados – e isto é o que acontece no presente caso, como decorre do que se disse atrás –, uma lei retroactiva só será inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede quando a lei afecta, de forma «inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa», direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a «protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida» [cf. Acórdão n.º 330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 17.º, pág.
277 e seguintes). Cf. também os Acórdãos n.ºs 574/98 (por publicar) e 575/98
(publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Fevereiro de 1999)].
Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [cf., entre outros, o Acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1.º, pág. 11 e seguintes), o citado Acórdão n.º 287/90, o Acórdão n.º 486/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Outubro de 1997) e os Acórdãos n.ºs 574/98 e
575/98, citados por último].
Pois bem: in casu, não pode dizer-se que a ablação do direito à licença de loteamento concedida (e, com ela, a afectação das expectativas da recorrente – as expectativas de ver deferido o pedido, que apresentou em 13 de Outubro de 1993, de que fosse aprovado o projecto de execução de obras de urbanização do loteamento que lhe tinha sido licenciado em 25 de Setembro de
1992) tenha sido arbitrária ou deva considerar-se demasiado onerosa. Por isso, não é ela intolerável. E, não o sendo, não é constitucionalmente inadmissível.
A ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação daquelas expectativas da recorrente seriam constitucionalmente inadmissíveis, porque arbitrárias, se não houvesse fundamento material (um interesse público) capaz de justificar a mutação operada na ordem jurídica – uma mutação que, então, se apresentaria como imprevisível e injustificada, não podendo os cidadãos contar com ela.
No presente caso, porém, existe um interesse público – o interesse público num correcto ordenamento do território – com relevo suficiente para justificar que se condicione a aprovação do projecto de execução das obras de urbanização, requeridas pela recorrente, à confirmação da compatibilidade do loteamento «com as regras de uso, ocupação e transformação do solo» constantes de plano regional de ordenamento do território posterior: no caso, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto.
É que, como se viu atrás, os planos municipais de ordenamento do território têm como quadro de referência os planos regionais de ordenamento do território. Estes, com efeito, visam «o concreto ordenamento do território através do desenvolvimento harmonioso das suas diferentes parcelas pela optimização das implantações humanas e do uso do espaço e pelo aproveitamento racional dos seus recursos» (cf. artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 176-A/88, de 18 de Maio) e têm os seguintes objectivos: «concretizar para a área por eles abrangida a política de ordenamento»; «definir as opções e estabelecer os critérios de organização e uso do espaço, tendo em conta, de forma integrada, as aptidões e potencialidades da
área abrangida»; «estabelecer normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território abrangido, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais»; e
«estabelecer directrizes, mecanismos ou medidas complementares de âmbito sectorial que forem consideradas necessárias à implementação do PROT» (cf. artigo 3.º do citado Decreto-Lei n.º 176-A/88, na redacção do Decreto-Lei n.º
367/90, de 26 de Novembro). E, por isso, prescrevia o artigo 12.º, n.º 1, do mesmo diploma legal que «as normas e princípios dos PROT são vinculativos para todas as entidades públicas e privadas, devendo com eles ser compatibilizados quaisquer outros planos, programas ou projectos de carácter nacional, regional ou local», acrescentando o n.º 2 que «a desconformidade de quaisquer planos, programas ou projectos enunciados no número anterior relativamente ao PROT acarreta a nulidade». Com a publicação da Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto (Lei de
«Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo»), os PROT deixaram, é certo, de ser vinculativos para os particulares, mas continuaram a sê-lo para as entidades públicas (cf. artigo 11.º, n.º 1). Ou seja: os municípios acham-se vinculados pelos PROT na elaboração e aprovação dos planos municipais. Estes – os planos municipais – é que, tal como os planos especiais, vinculam os particulares (cf. o n.º 2 do citado artigo 11.º). Por isso, está vedado aos municípios incluir nos planos municipais disposições que contrariem as directivas dos planos regionais de ordenamento do território ou ponham em causa as opções fundamentais neles condensadas ou o destino geral dos solos neles traçado. Daqui decorre, naturalmente, que os planos municipais de ordenamento do território do município de Grândola têm que compatibilizar-se com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto. Ora, tendo os planos municipais de ordenamento do território – que são vinculativos para os particulares – que ser elaborados com observância das regras constantes do respectivo plano regional, mal se compreenderia que, depois, as câmaras municipais pudessem conceder licenças para a execução de obras de urbanização que fossem incompatíveis com esse plano regional. Tanto mais que o actos praticados em violação das disposições dos planos urbanísticos, mesmo que se trate de actos tácitos de deferimento, são sempre nulos (cf. Fernando Alves Correia, Estudos cit., pág. 132). Se as câmaras municipais pudessem passar licenças que fossem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, frustrar-se-ia um dos objectivos desses planos, que é – repete-se – o de definir opções e critérios de organização e uso do espaço por eles abrangido, estabelecendo «normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais» (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro). Frustrar-se-ia, em suma, o desiderato de conseguir que aos cidadãos seja assegurado um «ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado», o que passa pela «valorização da paisagem», por um correcto
«ordenamento do território» e pela promoção da «qualidade ambiental das povoações e da vida humana, designadamente no plano arquitectónico» [cf. artigo
66.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e e)]. Pois bem: foi, justamente, o facto de saber que existem situações de incompatibilidade entre as soluções propostas pelos planos regionais de ordenamento do território e «alguns actos praticados, anteriormente à data da sua entrada em vigência, pelas câmaras municipais e outras entidades que, nos termos da lei, autorizam, aprovam ou licenciam usos e ocupações de solos» – situações que «ocorrem não só em relação aos planos regionais de ordenamento do território que já estão em vigor, como podem também vir a verificar-se no que respeita a planos ainda não aprovados e publicados» – que levou o legislador a determinar «a caducidade dos direitos conferidos» por esses «actos praticados anteriormente» em desconformidade com os planos. Mas, ciente também de que existem situações em que «não é clara a incompatibilidade entre o conteúdo dos actos praticados e o regime decorrente de cada plano regional de ordenamento do território», o mesmo legislador decidiu «facultar aos particulares um meio expedito de verificação da compatibilidade do conteúdo dos actos com regras de uso e ocupação do solo decorrentes de plano regional de ordenamento do território», a fim de «permitir uma avaliação casuística da compatibilidade com os planos referidos, possibilitando a definição clara de todas as situações em causa» (cf. citado preâmbulo). Foi a confirmação da compatibilidade do licenciamento do loteamento com o PROTALI que a Câmara Municipal de Grândola pediu que a recorrente solicitasse à entidade competente.
A dita ablação do direito à licença de loteamento, com a consequente afectação das mencionadas expectativas da recorrente, seria também constitucionalmente inadmissível, se fosse demasiado onerosa, pois, em tal caso, ela seria intolerável.
Sucede, no entanto, que, quando as licenças anteriormente concedidas, por serem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, houverem de «caducar», a perda do direito à licença é, como se disse acima, compensada com o pagamento de uma indemnização. E, por isso, não pode a referida ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação das mencionadas expectativas ser havida como demasiado onerosa.
As normas sub iudicio não violam, assim, o princípio da protecção da confiança, que vai implicado na ideia de Estado de Direito, entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica – da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas.
De facto – repete-se –, a mutação introduzida na ordem jurídica por essas normas tem a justificá-la um relevante interesse público: o interesse público de um correcto ordenamento do território. Ao que acresce que os efeitos da sua aplicação retroactiva, quando impliquem a «caducidade» de licenças anteriormente concedidas, são minorados pelo pagamento de uma indemnização ao particular prejudicado. E mais: as licenças só «caducam», se forem incompatíveis com o respectivo plano de ordenamento do território, salvo, ainda assim, se, em casos do tipo do destes autos, as obras de urbanização se iniciaram (e não se suspenderam) antes de entrar em vigor o plano ou começaram dentro do prazo de validade fixado na respectiva licença, pois, tal sucedendo, presume-se que a licença é compatível com as regras constantes do plano. É neste sentido que o artigo 1.º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 351/93 deve ser interpretado, como sustenta Sérvulo Correia (cf. Parecer citado).
Ora, o princípio de justiça que, enquanto decorrência da ideia de Estado de Direito, deve servir de guia à actividade legislativa e, bem assim, comandar a actuação dos órgãos e agentes da Administração (cf. artigo 266.º, n.º
2, da Constituição), não exige mais do que isto.”
Este entendimento foi reiterado no Acórdão n.º 517/99
(Diário da República, II Série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, pág. 17
054; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º vol., pág. 89), proferido em sede de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, no qual se encarou uma nova questão suscitada pelo requerente em defesa da tese da inconstitucionalidade: a da proibição da retroactividade das restrições da liberdade de iniciativa económica privada. A este respeito, ponderou-se nesse acórdão:
“6.1. As normas sub iudicio e o princípio da proibição da retroactividade das restrições de direitos, liberdades e garantias – recte, da liberdade de iniciativa económica privada:
Na tese do requerente, as normas sub iudicio – recte, as normas constantes dos artigos 1.º, n.ºs 1 e 3, e 3.º do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro –, «enquanto aplicáveis aos actos administrativos de licenciamento e aprovação emitidos antes da data» da sua entrada em vigor, violam os artigos
61.º, n.º 1, e 18.º, n.º 3, da Constituição (ex vi artigo 17.º), pois que operam, retroactivamente, «fortes restrições ao ius aedificandi», o qual deve reconduzir-se à liberdade de iniciativa económica privada: de facto – diz -, nelas «prevê-[se] a extinção dos direitos a exercer nos termos das licenças e aprovações emanadas».
Pois bem: para decidir esta questão, não se torna necessário tomar posição sobre saber se, como sustenta alguma doutrina, o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade, sendo uma das faculdades em que ele se analisa, sucedendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração; ou se, como pretende outro sector da doutrina,
é, antes, «o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico-urbanístico, designadamente dos planos» – ou seja, «um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas» (cf., sobre isto, o Acórdão n.º
329/99 e a doutrina aí citada). E tão-pouco é preciso decidir se, como pretende o recorrente, um tal direito se deve reconduzir à liberdade de iniciativa económica privada.
O direito de propriedade é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, gozando, por isso mesmo (ex vi artigo 17.º da Constituição), do respectivo regime naquilo que nele reveste natureza análoga
(cf. o citado Acórdão n.º 329/99 e a jurisprudência aí citada). E outro tanto se pode dizer da liberdade de iniciativa económica privada.
Simplesmente, como se escreveu no mencionado Acórdão n.º 329/99, a liberdade de iniciativa económica privada «não sofre restrição pelo facto de ser proibido construir num determinado solo ou de isso apenas se poder fazer dentro de certos limites ou com determinados condicionamentos. De todo o modo, mesmo que deva entender-se que a dita liberdade foi nalguma medida limitada pelas normas sub iudicio, uma coisa é certa: a garantia constitucional da liberdade económica privada há-de exercer-se sempre ‘nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral’ (cf. artigo 61.º, n.º 1, da Constituição). Ora, o interesse geral não pode deixar de atender às necessidades de ordenamento do território, pois que constitui tarefa fundamental do Estado ‘assegurar um correcto ordenamento do território’ [cf. o artigo 9.º, alínea e), da Constituição]».
As normas sub iudicio não violam, pois, o princípio da proibição da retroactividade das restrições de direitos – e, assim, as normas dos artigos
61.º, n.º 1, e 18.º, n.º 3 (ex vi artigo 17.º), da Constituição.”
As considerações tecidas nesses dois acórdãos são mais do que suficientes para se antecipar a improcedência da tese dos recorrentes. Tais considerações valeriam (até por maioria de razão, uma vez que então estavam em causa direitos de loteamento, urbanização e edificação já titulados e aqui apenas se questiona a persistência de um requisito do procedimento de licenciamento de construção ainda em curso) para a alegada violação da proibição de restrições retroactivas ao direito de propriedade, se esta imputação não devesse – como deve – ser considerado abandonada pelos recorrentes.
Quanto à garantia de “participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território” (artigo 65.º, n.º 5, da CRP) e de “participação dos cidadãos” no desempenho, pelo Estado, da sua incumbência de criar e desenvolver reservas e parques naturais (artigo 66.º, n.º 2, corpo e alínea c), da CRP), para além de não estar em causa uma dimensão desse “direito fundamental” que seja de qualificar como “análoga” aos “direitos, liberdades e garantias”, acresce que não radica na norma impugnada a alegada “restrição retroactiva” desse direito. Quanto ao primeiro aspecto, entende-se, com José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 2.ª edição, Almedina, 2001, pág. 193), que tal “analogia de natureza deve
(...) respeitar, cumulativamente, a dois elementos: tratar-se de uma posição subjectiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, isto é, que integre a matéria constitucional dos direitos fundamentais; e poder essa posição subjectiva ou garantia ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional”. E, quanto ao segundo, assinale-se que a norma em causa não procedeu, ela mesma, a qualquer classificação de áreas protegidas, limitando-se a fazer retroagir o alargamento do prazo de aprovação dos planos de ordenamento dessas áreas, com manutenção em vigor das anteriores classificações; e depois, importa ter presente que o n.º 2 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 19/93 declara inaplicável o disposto no n.º 3 do seu artigo 13.º (que prevê a realização de inquérito público prévio) relativamente aos decretos regulamentares que venham a proceder à reclassificação de áreas protegidas já existentes, designadamente
àquelas cuja classificação fora feita ao abrigo da Lei n.º 9/70, de 19 de Junho, lei ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 622/76, de 28 de Julho, que criou o Parque Nacional da Arrábida. Não radica, assim, na norma agora impugnada a dispensa de inquérito público relativamente ao decreto regulamentar, nem ela afecta que, quanto ao subsequente plano de ordenamento do território e seu regulamento, o direito de participação dos interessados se efective quando os respectivos projectos forem concluídos e colocados em discussão pública.
Por último, aplicando-se o Decreto-Lei n.º 204/2002 a todos os diplomas que procederam à criação ou reclassificação de áreas protegidas nos termos do Decreto-Lei n.º 19/93, não pode o mesmo ser qualificado como “lei medida”, e, de qualquer forma, a argumentação que, com base nessa qualificação, os recorrentes desenvolvem para fundar nova violação do artigo 18.º, n.º 3, da CRP (agora enquanto impõe que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias revistam carácter geral e abstracto) sempre esbarraria com a mesma contra-argumentação tecida a propósito da proibição da retroactividade.
Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões das alegações dos recorrentes.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo único do Decreto-Lei n.º 204/2002, de 1 de Outubro, que retroage os efeitos desse diploma ao termo dos prazos – fixados nos diplomas que procederam
à criação ou reclassificação de áreas protegidas, nos termos do Decreto-Lei n.º
19/93, de 23 de Janeiro – para elaboração dos planos de ordenamento e respectivos regulamentos; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos