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Processo n.º 475/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., exequente no processo de execução sumária n.º
100/99 do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca da Moita, notificada para pagar a quantia em dívida na conta de custas n.º 873/03, no valor de €
45,89, apresentou reclamação, endereçada ao juiz daquele Tribunal, nos seguintes termos:
“A responsabilidade por esta conta recai sobre a executada B., pois que a interrupção da instância, quando vier a acontecer, poderá levar à deserção da instância, que constitui um título extintivo da execução (artigos 285.°,
287.°, alínea c), e 291.°, n.º 1, do CPC).
2. Ora, ocorrendo qualquer título extintivo, deverá proceder-se à liquidação da responsabilidade da executada B., nos termos do artigo 916.°, n.º
3, do CPC.
3. A exequente A., não desistiu da execução e a impossibilidade superveniente da execução constitui também causa de extinção da instância
(artigo 287.°, alínea e), do CPC), que conduz à aplicação do disposto no artigo
916.°, n.º 3, do CPC.
4. Mesmo no caso de a exequente perdoar ou renunciar à execução subsequente, seria ordenada a suspensão da execução (artigo 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC) e a liquidação da responsabilidade do executado (artigo
916.°, n.º 3, do CPC).
5. Donde, pelos encargos postais em causa (artigo 32.°, n.º 2, do CCJ) é responsável apenas a executada B..
Termos em que V. Ex.a deve mandar rectificar a conta em crise, julgando responsável pelo pagamento em causa a B. (artigo 916.°, n.º 3, do CPC).”
Sobre esta reclamação, a escrivã de direito prestou a seguinte informação:
“Em face da reclamação apresentada pelo ilustre mandatário da exequente, salvo o devido respeito, parece-me não lhe assistir razão:
O exequente veio requerer, implicitamente, a fls. 91 e 100, o prosseguimento da execução, para ressarcimento da quantia ainda em dívida, com a penhora de um veículo automóvel, que se frustrou.
A fls. 177, veio o exequente requerer que «os autos fiquem a aguardar a publicação da nova legislação da acção executiva», requerimento este que foi indeferido, sendo-lhe este despacho notificado em 29 de Janeiro p.p..
Nada mais tendo sido requerido, foi o processo remetido à conta em
11 de Julho p.p., isto é, após o decurso do prazo previsto no artigo 51.°, n.°
2, alínea b), do Código das Custas Judiciais, tendo-se apurado as custas em dívida, provisoriamente a cargo da exequente, conforme dispõe o citado artigo.”
Após o representante do Ministério Público ter emitido parecer de concordância com esta informação, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca da Moita, por despacho de 20 de Outubro de 2003, indeferiu a referida reclamação, por entender que a conta se mostrava correctamente elaborada, sendo a responsabilidade das custas legalmente imputadas à exequente, nos termos do artigo 51.º, n.º 2, alínea b), do Código das Custas Judiciais (por manifesto lapso, referiu “Código de Processo Civil”).
Notificado deste despacho, a exequente dele veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Tendo sido notificada, por carta registada de 24 de Outubro de
2003, do despacho proferido em 20 de Outubro de 2003, a fls. , e para efectuar o pagamento da quantia em dívida na conta de custas n.° 873/03, do valor de
45,89 euros (Esc. 9200$00),
Mas não se conformando, de todo em todo, com a referida decisão, porque se trata de um despacho surpresa, já que o impasse executivo é da responsabilidade da Secção Judicial e do Julgador (cfr. despacho de fls. 73),
Além de que o despacho de 27 de Janeiro de 2003, de fls. , previu apenas o decurso do prazo interruptivo da instância (artigos 285.°, 286.° e
916.°, n.º 3, do CPC),
Vem recorrer do despacho de 20 de Outubro de 2003, a fls. , para o Venerando Tribunal Constitucional de Lisboa.
Veja-se que a Conta n.° 873/03, de 14 de Julho de 2003, baseou-se apenas na norma do artigo 32.°, n.º 2, do CCJ e não no disposto no artigo 51.°, n.º 2, alínea b), do CPC (!!!), como refere o M.mo Juiz, sendo certo que tal disposição legal nem existe.
O Tribunal Judicial da Moita não notificou a ora recorrente das
«pronúncias» do Sr. Oficial Contador, nem do Digno Magistrado do Ministério Público, de fls. 197 e 198, motivo por que se requer que se proceda a tal notificação.
Requer a admissão do referido recurso de constitucionalidade, porque já é tempo de os Tribunais assumirem a responsabilidade dos seus próprios erros.”
Tal recurso não foi admitido por despacho de 10 de Novembro de 2003, porquanto não se verificava nenhuma das situações previstas nos artigos 280.º da Constituição da República Portuguesa e 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), “designadamente, e no que para os autos poderia relevar, este tribunal não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade (...) nem aplicou norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o processo
(...)”.
É contra este despacho que vem deduzida, pela recorrente, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, a presente reclamação, com a seguinte fundamentação:
“A interpretação dada à norma do artigo 51.º, n.º 2, alínea b), do
«CPC», referida pelo M.mo Juiz – disposição legal que nem existe –, deverá ser
«CCJ»!!!, é nitidamente inconstitucional, na medida em que abusivamente impõe ao recorrente um impulso impossível, pois quando o executado desviou os bens para outros titulares ou quando é verdadeiramente insuficiente económico, nada há a fazer e, se houver, compete ao Tribunal actuar oficiosamente para que e exequente fique ressarcido.
Os Juízes da 1.ª instância são obrigados a mandar averiguar a identificação e localização de bens penhoráveis do executado e a determinar que este informe, não podendo «escravizar» ainda mais a parte exequente com ónus absurdos que incumbem aos funcionários do Estado, pois a parte exequente já paga para isso e mais alguma coisa e nada devia pagar, pois o exequente executa a quantia exequenda e deveria estar no processo para receber e não para pagar, pagar e pagar!!! Triste sina a do exequente!!!
O processo, com as referidas condições desrazoáveis e escravizantes,
é desajustado ao espírito democrático e não é equitativo: é um processo
«colonizador» e antidemocrático, em que o Estado tem uma atitude desproporcionalmente enriquecedora, no mau sentido, e a parte exequente é espezinhada no seu direito executivo, porque a Lei, ao exigir-lhe tudo e mais alguma coisa, impede o funcionamento equitativo do sistema processual:
há uma disfunção no balanceamento dos ónus públicos e particulares, com prejuízo para os cidadãos exequentes, que não usufruem minimamente do direito a uma averiguação oficiosa e ao dever de cooperação do executado
(artigo 20.º da Constituição e artigo 837.º-A do CPC).
O Tribunal Judicial da Moita recusou a aplicação da norma do artigo
837.º-A do CPC e aplicou uma norma inexistente, o que constitui, de todo em todo, uma atitude judicial surpreendente, tratando-se de um despacho surpresa, já que o impasse executivo é da responsabilidade exclusiva da Secção Judicial e do Julgador, como está sobejamente comprovado no despacho de fls. 73 dos autos executivos.
Já é tempo de os Tribunais saírem da letargia medieval em que vivem, de deixarem de ser preguiçosos em proceder a uma necessária investigação oficiosa e de assumirem a responsabilidade exclusiva dos seus próprios erros, como é patente neste processo executivo.
Esta posição/interpretação inconstitucional do Tribunal Judicial da Moita era completamente inesperada, porque o Estado deve proteger o exequente e não fazer do exequente um executado, nem deve enriquecer à custa da miséria do exequente, que está transformado num mero pagador de custas judiciais.
Veja-se que o Estado nem sabe onde estão os executados, nem os seus bens e, mesmo assim, afirma o primado do direito de propriedade contra o exequente!!!
Devido a esta inesperada contradição judicial é admissível recurso para o Tribunal Constitucional do referido despacho do Tribunal Judicial da Moita.
Na verdade, o despacho de 27 de Janeiro de 2003, de fls. , previu apenas o decurso do prazo interruptivo da instância (artigos 285.º, 286.º e
916.º, n.º 3, do CPC).
Veja-se que a Conta n.º 873/03, de 14 de Julho de 2003, baseou-se apenas na norma do artigo 32.º, n.º 2, do CCJ e não no disposto no artigo 51.º, n.º 2, alínea b), do CPC (!!!), como refere o M.mo Juiz, sendo certo que tal disposição legal nem existe.
Donde, requer a admissão do referido recurso.”
No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que “a presente reclamação é manifestamente improcedente, já que a recorrente não suscitou, durante o processo, e em termos processualmente adequados – podendo obviamente tê-lo feito antes da prolação da decisão recorrida – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Só podem constituir objecto do recurso de constitucionalidade questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional só pode ser a conformidade constitucional de normas ou de interpretações normativas e não a conformidade constitucional de decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
No presente caso, em que a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade e em que manifestamente não ocorre nenhuma das situações elencadas nas alíneas c) a i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recurso para o Tribunal Constitucional apenas poderia encontrar abrigo na alínea b) do n.º 1 desse preceito. Ora, para a admissibilidade de tal recurso importa, em especial, que a questão de inconstitucionalidade normativa haja sido suscitada durante o processo, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da LTC que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade
“de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade, designadamente por ser de todo anormal, insólita ou inesperada a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida.
Ora, no presente caso, nada tem de insólito, anormal ou inesperado a interpretação dada à norma do artigo 51.º, n.º 2, alínea b), do CCJ, que determina que sejam contados os processos parados por mais de 5 meses por facto imputável às partes, sendo certo que o pagamento das custas assim contadas surge como provisório, uma vez que, nos termos do n.º 5 desse preceito, as custas pagas por virtude da conta elaborada nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 entram em regra de custas se o processo vier a prosseguir. O que a recorrente, em rigor, contesta é a decisão judicial que a considerou, a ela exequente, e não à executada, responsável pelo pagamento das custas em causa. Mas, a este propósito, a recorrente nunca suscitou, em termos processualmente adequados, perante o tribunal recorrido (e nem sequer na presente reclamação) qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente reportada a determinada interpretação normativa, que nunca chegou a identificar com o mínimo de clareza e precisão que são exigíveis para abrir a via à interposição do recurso de constitucionalidade.
Assim, sem necessidade de considerações complementares, considera-se que, não ocorrendo nenhuma das situações previstas no n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recurso para o Tribunal Constitucional era, no caso, claramente inadmissível, como bem decidiu o despacho reclamado.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos