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Processo n.º 334/01
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada por último pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro, doravante designada por LTC), recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 8 de Março de 2001, que negou provimento a recurso deduzido contra acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Maio de 2000, que, entre o mais, confirmara despacho saneador-sentença que absolvera o réu
(Inspector Judicial B.) da instância por inexistência de interesse em agir por parte do autor, em acção declarativa tendo por objecto o reconhecimento de não serem verdadeiros quinze factos concretos referidos no relatório de inspecção feita pelo réu ao autor, pelo serviço por este prestado como juiz de direito no Tribunal de ----------- de ----------.
Segundo o requerimento de interposição de recurso, o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade (que teria sido suscitada nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça e no pedido de aclaração do acórdão recorrido) das seguintes normas:
“1 – Os artigos 4.º, n.º 2, alínea a), e 26.º do Código Civil, aplicados pelo douto Acórdão recorrido, que declarou adesão ao Acórdão da Relação, «remetendo para os fundamentos da decisão impugnada» no mesmo, na interpretação segundo a qual o ora recorrente, nesta acção de simples apreciação em que pretende a declaração de falsidade de acções e omissões que lhe foram imputadas e reconhecidas como tal pela parte contrária (autor das referidas imputações), não poderia aceder ao tribunal por falta de interesse em agir, por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 2 (estes dois por referência aos artigos 6.º, n.º 1, da CEDH, 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP), 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 203.º, segunda parte, da CRP;
2 – Os artigos 510.º, 684.º, n.º 3, e 709.º do CPC, aplicados pelo douto Acórdão recorrido, que declarou adesão ao Acórdão da Relação, «remetendo para os fundamentos da decisão impugnada» no mesmo, na interpretação segundo a qual é permitido aos tribunais exercerem competências reservadas ao órgão administrativo Conselho Superior da Magistratura, por violação dos artigos 2.º,
111.º, n.º 1, 202.º, n.º 2, e 217.º da CRP.
3 – Os artigos 510.º, 684.º, n.º 3, e 709.º do CPC, aplicados pelo douto Acórdão recorrido, que declarou adesão ao Acórdão da Relação, «remetendo para os fundamentos da decisão impugnada», conjugado com o artigo 449.º do CPP ex vi artigo 131.º do EMJ, 28.º, n.º 3, alínea i), da LOTJ, por referência ao artigo
168.º, n.º 1, do EMJ, por violação dos artigos 209.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, 210.º, n.º 1, primeira parte, e 203.º, segunda parte, da CRP e ainda o artigo 111.º, n.º 1, do Diploma Fundamental.
4 – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado no sentido de obrigar o recorrente a obter decisão da Administração Pública sobre o pedido dos autos quando, por Acórdão do Tribunal de Conflitos transitado em julgado, este considerou ser a apreciação da presente acção da competência dos tribunais judiciais, bem como o artigo 4.º, n.º 1, do EMJ, ambos os preceitos por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 205.º, segunda parte, 210.º, n.º 4, e 211.º, n.º 1, da CRP.
5 – Os artigos 508.º-A, n.º 1, alíneas b) e d), e 510.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC, na interpretação segundo a qual um acto administrativo de classificação de serviço não é susceptível de revisão, por violação dos artigos 266.º e 268.º, n.º 5, da CRP.
6 – Os artigos 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, e 13.º, todos da Lei n.º
43/90, de 10 de Agosto, e o artigo 9.º, n.º 1, alínea b), do CPA, na interpretação dada, segundo a qual ao recorrente não existe o direito de petição, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 50.º, 266.º, n.º 1, e 52.º, n.º
1, todos do Diploma Fundamental.
7 – Os artigos 32.º, n.º 4, 34.º, n.ºs 2 e 4, 35.º, n.º 1, 36.º,
37.º, 44.º, n.º 3, 45.º, 46.º, 52.º, n.º 1, alínea a), 110.º, 127.º, n.º 1, e
133.º do EMJ, bem como o artigo 85.º, n.º 1, alínea b), do ETAF e 21.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RIJ, na interpretação dada segundo a qual o acto administrativo não é susceptível de revisão, por violação dos artigos 26.º, n.º
1, e 50.º do Diploma Fundamental.
8 – Os artigos 84.º e 497.º do CPP, na interpretação dada de que uma decisão punitiva não é susceptível de revisão, por violação dos artigos 8.º (por referência ao artigo 6.º da CEDH), 20.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, do Diploma Fundamental.
9 – Os artigos 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 9.º do CPA, na interpretação dada segundo a qual o acto administrativo não é susceptível de reapreciação administrativa, por violação do artigo 203.º, segunda parte, da CRP.
10 – O artigo 70.º do CC, na interpretação dada segundo a qual o recorrente não tem direito à tutela jurisdicional do direito à honra, por violação do artigo 26.º, n.º 1, da CRP.
11 – Os artigos 26.º do CPC e 1.º e 2.º do CPA, na interpretação constante do douto Acórdão, por violação dos artigos 203.º, 2.ª parte, e 212.º, n.º 3, da CRP.”
O primitivo Relator proferiu despacho determinando a apresentação de alegações, com a advertência expressa de que “o objecto do recurso tem de considerar-se circunscrito à matéria jurídico-constitucional do ponto 5 do acórdão recorrido (sob o título de «Inconstitucionalidades»), relacionado com a temática do interesse em agir, que é a trave mestra da presente causa e está na base da absolvição do réu da instância (no mais, quanto ao universo das outras normas infraconstitucionais identificadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente imputa sempre o vício de inconstitucionalidade à própria decisão jurisdicional, como se colhe da leitura das conclusões das suas alegações apresentadas para o Supremo Tribunal de Justiça, sempre antecedidas das expressões «O M.mo Juiz a quo», o «Douto Acórdão recorrido» ou o «Douto Acórdão»”.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“I – Os artigos 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma apreciação jurisdicional sobre a veracidade ou inveracidade dos factos ofensivos da sua honra, bons nomes pessoal e profissional, da sua identidade pessoal, para defesa dos seus Direitos Fundamentais à honra, ao bom nome e reputação, à sua identidade pessoal significa que o recorrente não é titular dos direitos fundamentais de personalidade como os direitos à honra, ao bom nome e à reputação e à identidade pessoal, significa que o recorrente não detém a dignidade humana inerente a qualquer ser humano, dignidade essa estruturante do Estado de Direito Democrático, significa que o recorrente não tem direito à tutela do artigo 70.º do Código Civil, o que torna essa disposição processual civil inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 8.º, n.º 2, 18.º – estes dois por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, e
26.º, n.º 1, da CRP.
II – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado como não tendo o recorrente interesse em agir para tutela dos seus direito à honra, ao bom nome e à reputação e identidade pessoal, como na conclusão anterior, viola, também, os artigos 18.º, n.º 1, e 204.º, segunda parte, da CRP, tornando, também por aí, essa norma do CPC inconstitucional.
III – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma decisão jurisdicional que lhe permita obter a revisão pela Administração do acto administrativo que lhe atribuiu uma notação negativa que permita ao recorrente, revista que seja essa notação, concorrer em condições de igualdade a cargos públicos, significa que o recorrente não é titular do direito fundamental constante do artigo 50.º da CRP, o que torna esse artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC inconstitucional e, sem necessidade de repetições do que acima já foi dito em sede de conclusões, é essa mesma norma inconstitucional na interpretação que lhe foi dada por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 2 (estes dois últimos por referência aos artigos 6.º, n.º 1, da CEDH, 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP), 17.º, 18.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, e 204.º, segunda parte, da CRP.
IV – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, [interpretado] como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma decisão jurisdicional que lhe permita obter a revisão pela Administração do acto administrativo que lhe atribui uma notação negativa que permita ao recorrente, revista que seja essa notação, concorrer em condições de igualdade a cargos públicos, significa que o recorrente não é titular do direito fundamental constante do artigo 47.º, n.º 2, da CRP, o que torna esse artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC inconstitucional e, sem necessidade de repetições, é essa mesma norma inconstitucional na interpretação que lhe foi dada por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 2 (estes dois últimos por referência aos artigos 6.º, n.º 1, da CEDH, 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP), 17.º, 18.º, n.º 1, 47.º, n.º 2,
268.º, n.º 4 e 204.º, segunda parte, da CRP.
V – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado como não tendo o recorrente interesse em agir, recusa ao recorrente a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legítimos, sendo, como tal, inconstitucional por referência aos artigos 26.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, e
50.º da CRP, como supra referido, sendo, concomitantemente, inconstitucional face ao disposto nos artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP
(estes dois últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH), 18.º, n.º 1, e 204.º, segunda parte, da CRP.
VI – O artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma única apreciação jurisdicional sobre a veracidade ou inveracidade dos factos ofensivos da sua honra, bons nomes pessoal e profissional, da sua identidade pessoal, do seu direito de acesso em condições de igualdade a cargos públicos ou a cargos do funcionalismo público, – o que não constitui uma mera questão académica mas uma apreciação necessária à tutela dos direitos fundamentais do recorrente –, recusa ao recorrente o acesso a qualquer grau de jurisdição e, consequentemente, priva o recorrente do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais para tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legítimos, sendo, como tal, inconstitucional, por referência aos artigos 26.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, e 50.º da CRP, como supra referido, sendo, concomitantemente, e também, inconstitucional face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP (estes dois últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH), 18.º, n.º 1, e 204.º, segunda parte, todos da CRP.
VII – Por todo o exposto, deve ser declarado inconstitucional o artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, interpretado e aplicado como o foi no Acórdão recorrido, tudo com as necessárias consequências legais.”
O recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
“I – O ora recorrente diz ter sido detectado, entre as mais de cem acções e omissões a ele negativamente atribuídas no relatório da inspecção, cerca de quinze «acções e omissões erradamente imputadas», mas não alegou se todas ou algumas destas erradas imputações foram consideradas na decisão que o classificou de Medíocre. E, não o tendo sido, será obviamente indiferente a sua eventual falsidade. Com efeito, o ora recorrente só teria interesse em confrontar o CSM com a falsidade das imputações que, constantes do relatório da inspecção, tivessem sido expressamente avocadas e invocadas, pelo CSM, para justificar a classificação atribuída.
II – O recorrente, porém, não cumpriu, na sua petição, o ónus de alegar se essas falsas imputações foram assumidas, como verdadeiras, pelo acórdão do CSM e, sobretudo, se constituíram fundamento da decisão. E também não alegou, no momento processual próprio (a petição inicial), se o CSM já fora ou não confrontado – ou na resposta ao relatório da inspecção ou na sua reclamação para o plenário – com tais pretensas falsidades, pois que – na hipótese de essa matéria ter sido «discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever»
– nem sequer se poderia obter agora, do CSM, a «revisão da sua decisão», na medida em que «a falsidade de documento não é (...) fundamento de revisão se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever».
III – Mas, mesmo na hipótese de tais imputações terem relevado, como verdadeiras, na decisão classificativa e de a matéria da sua eventual falsidade não ter sido arguida ou discutida no respectivo processo, o visado só teria interesse em recorrer à via contenciosa (ou seja, a uma acção judicial de declaração de falsidade) depois de malogrado o recurso à via graciosa, ou seja, ao confronto directo do CSM com os documentos comprovativos da falsidade das tais imputações ditas falsas. Só que não consta que o ora autor/recorrente já tenha – nem este alegou na sua petição inicial que já tivesse – confrontado o CSM com os documentos comprovativos das falsidades do relatório da inspecção.
IV – Podendo o ora autor/recorrente, no exercício até do seu direito de petição (artigo 52.º, n.º 1, da Constituição) e de «procedimento administrativo» (artigos 53.º e 74.º e seguintes do CPA), iniciar, junto do CSM, o adequado «procedimento administrativo» (artigo 53.º, n.º 1, do CPA) e «juntar documentos e pareceres ou requerer diligências de prova úteis para o esclarecimento dos factos com interesse para a decisão» (artigo 88.º, n.º 2), só se justificaria o seu recurso à via contenciosa em caso de insucesso do procedimento administrativo. Pois que o «interesse em agir» pressupõe um estado de carência de tutela judicial, ou seja, de uma «real precisão de utilizar a arma judicial».
V – Em síntese, só se justificaria o recurso ao processo – para que, por seu intermédio, o CSM ficasse finalmente convencido da falsidade do documento em que se fundamentara para arbitrar ao visado a classificação de Medíocre – se o interessado, antes de recorrer à via judicial, já tivesse usado, infrutiferamente, dos informais meios graciosos de que legalmente dispusesse para confrontar o CSM com essa falsidade. É que «seria injusto que alguém pudesse, sem mais, solicitar tutela judiciária, impondo à contraparte os incómodos e os ónus inerentes à posição de demandado». Acresce – para a necessidade do requisito «interesse em agir» – «uma razão de interesse público
– a própria utilidade da actividade jurisdicional. O tempo e a actividade dos tribunais, para defesa do próprio contribuinte, só devem ser tomados quando os direitos carecem efectivamente de tutela» (Anselmo de Castro).
VI – «Haverá (aliás) que requerer-se, como pressuposto da acção (de mera apreciação), um estado de incerteza objectiva da situação jurídica respectiva, originado em dúvidas levantadas pela autoridade, quando perante ela
é invocada a respectiva relação jurídica, ou pela contraparte ou terceiro e de molde a que esse estado de dúvida afecte seriamente o direito em causa» (Anselmo de Castro).
VII – Porém, o aqui autor/recorrente não alegou (especificadamente): a) que o CSM se tenha prevalecido ou valido, para o classificar, das falsidades aqui concretamente arguidas, b) que o visado tenha invocado essa falsidade perante o CSM, e c) que esta autoridade tenha rejeitado as alegadas falsidades ou sobre elas «levantado dúvidas».
VIII – E, mesmo que, «em termos de titularidade, interesse em agir e relação material controvertida fossem conceitos que se equivalessem» (Miguel Teixeira de Sousa), ainda assim o ora autor não gozaria, contra o aqui réu/recorrido (porque estranho – ou terceiro – relativamente à relação material controvertida), de «interesse em agir». É que são partes da relação jurídica de classificação de serviço a entidade classificadora e o funcionário ou magistrado classificado (e não o inspector, mero auxiliar da entidade investida do poder/dever de classificar, e o inspeccionado). Daí que jamais o ora autor/recorrente pudesse reclamar-se desse interesse processual numa acção, como esta, em que, em lugar de demandar a contraparte da relação material controvertida (o CSM/Estado), se limitou a demandar o agente, dos serviços de inspecção do CSM, que o presidente deste – no exercício da sua competência de dirigir esses serviços – encarregou de «colher informações sobre o (seu) serviço e mérito».
IX – O Estatuto dos Magistrados Judiciais, consentindo embora a revisão das decisões disciplinares (cfr. artigo 127.º e seguintes), não prevê a revisão das classificações periódicas de serviço dos juízes (cfr. artigo 168.º e seguintes). Se as decisões disciplinares – em razão da proximidade substancial entre o direito penal e o direito disciplinar – são, de algum modo, equiparáveis a decisões jurisdicionais penais, já o mesmo não sucede com as classificações periódicas dos juízes de direito, que, não constituindo condenações, não são equiparáveis a sentenças jurisdicionais condenatórias e não são, por isso, susceptíveis do recurso de revisão previsto, pelos artigos 127.º e seguintes do EMJ, para as «decisões condenatórias proferidas em processo disciplinar».
X – Mesmo uma classificação de «Medíocre» – não obstante os seus efeitos («A classificação de Medíocre implica a suspensão do exercício de funções do magistrado e a instauração de inquérito por inaptidão para esse exercício») – não constitui «decisão condenatória» e, porque atribuída no
âmbito e na decorrência de «processo de inspecção» (artigos 33.º e seguintes e
161.º do EMJ) e não no de «processo disciplinar», muito menos constituiria
«decisão condenatória proferida em processo disciplinar».
XI – A classificação de Medíocre também não constitui uma «pena»
(sendo que «as penas a que os magistrados estão sujeitos são, taxativamente, as especificadas no artigo 85.º») e, se implica «a suspensão do exercício de funções» e a «instauração de inquérito» (artigo 34.º, n.º 2), é porque o legislador, prevenindo-se contra a presunção – ínsita numa tão baixa classificação – da «inaptidão do magistrado para o exercício de funções», entendeu incompatível com a confiança que os serviços de justiça devem merecer ao utente a continuação em exercício de um magistrado cujo serviço anterior obteve, quanto ao seu merecimento, a classificação mais baixa de entre as legalmente atribuíveis. No entanto, e porque entre o serviço prestado e a respectiva classificação podem decorrer «três anos» ou mesmo «quatro anos»
(cfr. artigo 36.º, n.º 1, do EMJ), a lei, ao mesmo tempo que, por exigência da correspondente presunção de «inaptidão», impõe a imediata «suspensão do
(presumivelmente inepto) exercício de funções», determina que, em inquérito ad hoc, se confirme ou infirme, no actual exercício do magistrado, a persistência dessa anteriormente indicada – e, por isso, conjecturável ou, mesmo, provável – inaptidão.
XII – E tanto a classificação de «Medíocre» não constitui uma pena disciplinar – mas um simples indício, ainda que encorpado, de «inaptidão» – que a sua atribuição carece, até à instauração de processo disciplinar, da mediação de «inquérito», à aptidão para o exercício de funções, que conclua pela
«inaptidão do magistrado». E só a «revelação», em inquérito, dessa indiciada inaptidão é que há-de implicar a perseguição disciplinar do visado e, ao cabo do respectivo processo (artigos 110.º e seguintes), a imposição, «quando o magistrado revele inaptidão profissional» (artigo 95.º, n.º 1, alínea c)), de, finalmente, uma pena de «aposentação compulsiva» ou de «demissão».
XIII – Tendo entretanto terminado – pois que a aposentação compulsiva implica «a imediata desligação do serviço e a perda dos direitos e regalias conferidas por este Estatuto (...)» (artigo 106.º do EMJ) – a
«carreira do recorrente na judicatura» deixou de ser influenciável pela decisão que classificara de Medíocre a sua prestação profissional entre 1985 e 1988. Daí que a presente instância seja de declarar extinta por inutilidade superveniente da lide (artigo 287.º, alínea e), do CPC).
XIV – Em suma, nem as instâncias nem o Supremo Tribunal de Justiça negaram ao ora recorrente (com a interpretação/aplicação que fizeram do artigo
4.º do CPC) a «tutela jurisdicional efectiva dos seus interesses e direitos». Por um lado, o ora recorrente tinha ao seu dispor – e dela dispôs efectivamente
– a que o EMJ lhe conferia através do seu artigo 168.º do EMJ. Por outro, nem as instâncias nem o STJ excluíram – nem era essa a questão posta por esta acção – que o ora recorrente, «para apreciação jurisdicional da veracidade ou inveracidade dos factos ofensivos do seu bom nome profissional», pudesse, ou possa ainda, lançar mão – contra o Estado/Conselho Superior da Magistratura (que foi a entidade que, com base nesse «factos», o classificou de «Medíocre») – de uma qualquer acção de simples apreciação (artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC). O que as instâncias e o STJ negaram é que o ora recorrente tivesse ou tenha interesse (prático) em agir – contra um mero auxiliar do CSM – para (sem qualquer resultado a nível da satisfação da sua pretensão) o convencer judicialmente da pretensa «inveracidade» de dezena e meia dos mais de cem
«factos» profissionalmente desabonatórios constantes do seu relatório de inspecção. É que, por muito convencido que o ora recorrido (como autor do relatório) pudesse vier a ficar da «inveracidade» de algumas das imputações feitas ao ora recorrente, no relatório de inspecção de 1991, a correspondente declaração judicial não se imporia nem seria oponível, pois que terceiro em relação às partes na acção, ao Conselho Superior da Magistratura (artigo 671.º do CPC). Até porque, para inverter o sentido do acórdão classificatório do CSM, este mesmo órgão do Estado é que teria de ser (directamente) convencido da eventual falsidade de alguns dos factos – por ele próprio atribuídos ao magistrado objecto de classificação profissional – de que se servira para o classificar negativamente.
XV – Por tudo isto – e o mais que consta, a propósito, do douto acórdão recorrido –, o recurso não merece provimento.”
Notificado para se pronunciar sobre a alegada inutilidade superveniente da lide, o recorrente respondeu, sustentando a sua improcedência.
Redistribuído o processo a novo relator, por o primitivo ter cessado funções neste Tribunal, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar, querendo, sobre a questão, eventualmente conducente ao não conhecimento do objecto do recurso – anteriormente delimitado, como se registou,
à temática do “interesse em agir” –, da “falta de identificação precisa e clara da interpretação normativa reputada inconstitucional e/ou por imputação da violação da Constituição directamente às decisões judiciais recorridas, em si mesmas consideradas”.
O recorrente apresentou a resposta de fls. 2578 a 2620, que sintetizou nas seguintes conclusões:
“I – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis como não tendo o recorrente interesse em agir para tutela do direito fundamental à honra torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP, estes dois últimos por referência ao artigo
6.º, n.º 1, da CEDH.
II – Também, a aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2, 493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis como não tendo o recorrente interesse em agir para tutela do direito fundamental à honra por questões colaterais – como a revisibilidade ou não da classificação de serviço, a exercitabilidade ou não do direito de petição –, introduzindo nessa interpretação restrições ao exercício de direitos fundamentais não constitucionalmente consentidas, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea b), e 202.º, n.º 2, da CRP.
III – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis, como não tendo o recorrente interesse em agir para obtenção de uma decisão jurisdicional que lhe permita desencadear os mecanismos previstos na lei para tutela do direito fundamental à honra, por a decisão disciplinar, no entender das instâncias, não ser revisível nos termos do artigo 127.º do EMJ – o que, aliás, compete à Administração decidir –, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP, estes dois últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, artigos 165.º, n.º 1, alínea b), e 202.º, n.º 2, todos da CRP.
IV – As instâncias cíveis, ao aplicarem os artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2, 493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC e 70.º do CC, na interpretação que o recorrente não tem interesse em agir para exercer um direito que a lei – artigo 9.º do CPA –, expressamente lhe concede para defesa aqui até do direito fundamental à honra, tornam essas mesmas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º
1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP, estes dois
últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 202.º, n.º 2, e 203.º, todos da CRP.
V – Também, a aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º
2, 493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis, como não tendo o recorrente interesse em agir para obtenção de uma decisão jurisdicional que lhe permita desencadear os mecanismos previstos na lei para tutela do direito fundamental à honra, por, no entender das instâncias, não ser aplicável o artigo 9.º do CPA – o que, aliás, compete à Administração decidir –, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º
1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP – estes dois
últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH –, artigos 165.º, n.º 1, alínea b), e 202.º, n.º 2, todos da CRP.
VI – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC na interpretação feita pelas instâncias cíveis, como não tendo o recorrente interesse em agir para obtenção de uma decisão jurisdicional que lhe permita desencadear os mecanismos previstos na lei – direito de petição consagrado no artigo 52.º, n.º 1, da CRP aplicando o artigo 12.º, n.º, alínea b), da Lei n.º 43/90 – para tutela do direito fundamental à honra, por, no entender das instâncias, não ser aplicável o direito de petição consagrado no artigo 52.º, n.º 1, da CRP, aplicando o artigo 12.º, n.° 1, alínea b), da Lei n.º 43/90 – o que, aliás, compete à Administração decidir –, introduzindo restrições ao exercício de direitos fundamentais, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1,
268.º, n.º 4, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP – estes dois últimos por referência ao artigo 6.º, n.º 1, da CEDH –, artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 202.º, n.º 2,
203.º e 52.º, n.º 1, todos da CRP.
VII – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, n.º 1, todos do CPC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma decisão jurisdicional que permita o desencadear de mecanismos administrativos para tutela dos direitos fundamentais de acesso em condições de igualdade a cargos e funções públicas, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, e
268.º, n.º 4, da CRP.
VIII – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis como não tendo o recorrente interesse em agir para obter uma decisão jurisdicional que permita o desencadear de mecanismos administrativos para tutela dos direitos fundamentais de acesso em condições de igualdade a cargos e funções públicas, torna essas normas inconstitucionais por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 42.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP.
IX – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, na interpretação feita pelas instâncias cíveis ao reduzirem os direito de acesso em condições de igualdade a funções e cargos públicos apenas à «carreira» introduzem nessa interpretação restrições ao exercício desses direitos fundamentais não constitucionalmente consentidas, o que torna essas mesmas disposições processuais inconstitucionais por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 50.º, 47.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, 268.º, n.º
4, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
X – A aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea a), 26.º, n.º 2,
493.º, n.ºs 1 e 2, e 494.º, n.º 1, todos do CPC, e 70.º do CC na interpretação feita pelas instâncias cíveis como não tendo o recorrente interesse em agir para tutela do direito fundamental à honra e de acesso a cargos e funções públicas em situação de igualdade não consubstanciando a defesa desses direitos um interesse em agir subsumíveis aos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, torna essas normas processuais cíveis inconstitucionais por violação dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, 20.º, n.º 1,
16.º, n.º 2, e 8.º da CRP – estes dois últimos por referência ao artigo 6.º, n.º
1, da CEDH –, e 268.º, n.º 4, todos da CRP.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Pelo anteriormente referido despacho do primitivo Relator deste recurso, de 13 de Julho de 2001, circunscreveu-se o objecto do recurso “à matéria jurídico-constitucional do ponto 5 do acórdão recorrido (sob o título de «Inconstitucionalidades»), relacionado com a temática do interesse em agir, que é a trave mestra da presente causa e está na base da absolvição do réu da instância”.
O recorrente conformou-se com este despacho.
No aludido ponto 5 do acórdão recorrido – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Março de 2002 – consignou-se o seguinte:
“5. Inconstitucionalidades:
Recordem-se algumas das conclusões mais pertinentes.
– «A interpretação feita pelo M.mo Juiz a quo do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC como não tendo o recorrente interesse em agir constitui uma interpretação que viola os artigos 1.º, 2.º, n.º 1, artigo 8.º, n.º 2 – por referência aos artigos 12.º da DUDH e 17.º, n.º 1, do PIDCP –, e 50.º, n.º 1, da CRP e, ainda (...)»;
– «Uma vez que nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição
‘os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas’, a interpretação feita pelo M.mo Juiz a quo do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC como não tendo o recorrente interesse em agir viola, também, os artigos
18.º, n.º 1, e 203.º, segunda parte, da CRP. O douto acórdão recorrido, ao não revogar a decisão recorrida, incorreu nos mesmos erros de interpretação, violando essas mesmas disposições, pelo que deve ser revogado.»;
– «O M.mo Juiz a quo, ao decidir que o recorrente não tem interesse em agir, recusando ao recorrente a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legítimos, fez uma interpretação inconstitucional do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, por referência aos artigos 28.º, n.º 1, e
50.º da CRP, como supra referido, violando, concomitantemente, os artigos 20.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 8.º da CRP, estes dois últimos por referência ao artigo
6.º, n.º 1, da CEDH. O douto acórdão recorrido, ao não revogar a decisão recorrida, incorreu nos mesmos erros de interpretação, violando essas mesmas disposições, pelo que deve ser revogado.»
– «O douto acórdão recorrido, ao entender que os 15 factos alegados pelo recorrente são insuficientes para que este veja tutelados os seus direitos consagrados nestas disposições constitucionais concluindo, por aí, da falta de interesse em agir do recorrente fez uma interpretação inconstitucional dos artigos 26.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da CRP, e do disposto nos artigos 70.º, n.º
1, do CC e artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC – conceito de ‘interesse em agir’ –, e, consequentemente, violou essas disposições, devendo, como tal, ser revogado.» (conclusões CXXX, CXXXI, CXXXIV e CXXXVII).
5.1. Não se duvida que as questões relativas à constitucionalidade das normas são do conhecimento oficioso do tribunal [cf., neste sentido, acórdãos do STJ, de 6 de Maio de 1998 e de 10 de Maio de 2000, processos n.º
356/97 e n.º 320/00, respectivamente]. Importa, porém, explicitar. Aceita-se, com efeito, que esse conhecimento oficioso por parte, designadamente, do tribunal de recurso – tal como o conhecimento que é suscitado por qualquer das partes –, só encontra justificação face a uma efectiva aplicação de normas inconstitucionais ou face à recusa da aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, sendo indispensável, também e ainda, que a questão de inconstitucionalidade tenha relevância na decisão final, ou seja, que dessa aplicação ou recusa tenha dependido o sentido da decisão recorrida. Com esse sentido, o Tribunal Constitucional tem salientado que: – «o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, tem como pressuposto que a norma impugnada tenha efectivamente sido aplicada na decisão recorrida, como resulta expressamente da referida alínea b) e o Tribunal tem repetidamente afirmado» (Acórdão n.º
587/99, de 20 de Outubro de 1999, processo n.º 96/98, 3.ª Secção); - «O Tribunal só pode conhecer do recurso interposto, se os recorrentes tiverem suscitado perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade das normas ... ; e se o acórdão de que recorrem as tiver aplicado como suas rationes decidendi» (Acórdão n.º 471/99, de 14 de Julho de 1999, processo n.º 148/99); – «necessário para que se verifiquem os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional é que a alegada recusa de aplicação da norma tenha determinado o sentido da decisão recorrida, ou, dito de outra forma, tenha funcionado como razão de decidir» (Acórdão n.º
322/99, de 26 de Maio de 1999, processo n.º 210/98).
5.2. Da jurisprudência recenseada flui, com clareza, que a decisão judicial, em si, e enquanto tal, não é susceptível de arguição de inconstitucionalidade, mas antes a(s) norma(s) nela aplicada(s), ou a(s) norma aplicada(s) na interpretação que a decisão lhe(s) deu e que contrarie normas ou princípios constitucionais. Caso este em que, ressalte-se, importa se indique qual a concreta interpretação da norma aplicada que se tem por desconforme com a(s) norma(s) ou princípio(s) da Lei Fundamental. É este o sentido da jurisprudência constitucional: – «o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de recursos interpostos de decisões dos outros tribunais, que recusem a aplicação de normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que as apliquem não obstante a sua inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo pelo recorrente, sendo que a questão de constitucionalidade a apreciar há-de ser uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, respeitante a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação)» – Acórdão n.º 643/99, de 24 de Novembro de 1999, processo n.º 51/99, 2.ª Secção;
– «quando se pretende impugnar, do ponto de vista da sua compatibilidade com a Lei Fundamental, uma determinada interpretação normativa, mister é que seja concretamente indicada a dimensão normativa que se reputa inconstitucional; assim, tem aquela jurisprudência seguido desde sempre o entendimento de que não constitui modo adequado de suscitação dessa questão de inconstitucionalidade referir-se, tão-somente e sem mais, que certas normas, na interpretação e aplicação que lhes foi dada na decisão que se pretende impugnar, são contrárias ao Diploma Básico» – Acórdão n.º 362/99, de 16 de Junho de 1999, processo n.º 236/99, 2.ª Secção. 5.3. No caso dos autos o agravante, considerando que o acórdão recorrido decidiu que ao autor faltava o interesse em agir, imputou-lhe, nomeadamente, uma interpretação inconstitucional dos artigos 26.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da CRP, 70.º do CC e
4.º, n.º 2, alínea a), do CPC. Mais considerou que tal decisão se fundou numa interpretação violadora de preceitos (que indica) da DUDH, do PIDCP e da CRP.
Sem mais. Mas sendo assim, pode concluir-se que o agravante não apontou uma qualquer norma que, em concreto, tenha infringido o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 277.º). Em bom rigor, o que ele fez foi esgrimir contra a interpretação que o acórdão (tal como a sentença) deu a várias normas infraconstitucionais, essencialmente a do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC – interpretação que conduziu a concluir pela inexistência de interesse em agir por parte do autor. Ou seja, a questão que o agravante, afinal, suscitou circunscreve-se e respeita à inconstitucionalidade de decisões das instâncias, e não a inconstitucionalidade de normas que elas tenham aplicado. Aliás, o próprio recorrente afirma, reconhecendo, que «não alegou a inconstitucionalidade de qualquer norma»! E remata a sua peça pedindo, além do mais, seja declarada inconstitucional «a decisão recorrida» (fls. 2196). Face a todo o exposto, entendemos que o recorrente não suscitou de modo adequado, como lhe cumpria, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Mas ainda que assim não fosse, o que não se concede, sempre seria de concluir, de qualquer modo, que o acórdão (como a sentença) não fez aplicação/interpretação de preceitos contrária às normas ou aos princípios da Lei Fundamental. 5.4. Segundo o recorrente, «o douto Acórdão ao não apreciar a inconstitucionalidade ou não das interpretações das normas que o recorrente alegou serem (as interpretações, frise-se) inconstitucionais, fez uma interpretação inconstitucional do artigo
204.º da CRP, violando essa disposição» (conclusão CLX). Temos para nós que as considerações expendidas no ponto precedente – que consentiram e avalizaram o entendimento de que o agravante não suscitou, de modo adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (mesmo na sua dimensão parcelar ou interpretação) – permitem-nos concluir, sem mais, que é manifesta a não violação do citado artigo 204.º da CRP. Face a todo o exposto, não procedem as conclusões do recorrente, não se verificando, do mesmo passo, violação dos normativos nelas indicados.”
2.2. Face à primitiva delimitação do objecto do recurso e ao teor da única parte do acórdão recorrido em causa no presente recurso, o actual relator suscitou a questão do seu não conhecimento, quer por falta de identificação clara e precisa, por parte do recorrente, perante as instâncias, da interpretação normativa que reputava inconstitucional, quer por se poder entender que a violação da Constituição era imputada directamente às decisões judiciais sucessivamente impugnadas, em si mesmas consideradas, e não a quaisquer normas ou interpretações normativas.
Na resposta apresentada, apesar da sua extensão, o autor, em rigor, não tenta refutar os dois fundamentos invocados como susceptíveis de conduzir ao não conhecimento do objecto do recurso, optando por reproduzir os argumentos, repetidamente enunciados ao longo dos autos, no sentido da inconstitucionalidade das decisões recorridas. Como é sabido, no sistema português de fiscalização da constitucionalidade (que não contempla figuras como o “recurso de amparo” espanhol ou a “queixa constitucional” alemã), ao Tribunal Constitucional não compete apreciar a ocorrência de violações da Constituição directamente imputadas a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, mas apenas a conformidade constitucional de normas jurídicas (quer na sua directa estatuição, quer na interpretação delas feita – interpretação normativa). A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, constitui jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que, quando os recorrentes questionam a conformidade constitucional de uma determinada interpretação normativa, devem explicitar o sentido atribuído às normas em causa que consideram inconstitucional e que pretendem ver apreciado no âmbito do recurso de constitucionalidade. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 367/94 (Diário da República, II Série, n.º
207, de 7 de Setembro de 1994, pág. 9341 e seguintes), «ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição».
Ora, no presente caso, em momento algum do processo, designadamente nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa ou para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente explicitou, de forma clara e precisa, qual a interpretação normativa do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC
(preceito que se limita a dispor: “2. As acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. Têm por fim: a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto; (...)”) que reputava inconstitucional e que pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, não constitui modo idóneo de identificação da interpretação normativa questionada a referência à “interpretação acolhida na decisão recorrida” ou expressão similar. Por um lado, o Tribunal Constitucional não pode substituir-se aos recorrentes na identificação do objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade; e, por outro lado, só pode considerar-se “suscitada durante o processo” a questão que haja sido colocada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este ficar obrigado a conhecer de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), tal como atrás definida – o que, repete-se, no caso nunca ocorreu.
Na outra perspectiva assinalada, as sistemáticas referências a que impugna a interpretação dada pelas decisões recorridas à apontada norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC, “no sentido de negar interesse em agir ao recorrente”, isto é, tendo em conta a situação individual do autor desta concreta acção, com as específicas particularidades que a caracterizam, demonstram bem que a questão colocada não se reveste de natureza normativa, já que, como atrás se disse, não se reporta à adopção, pelo tribunal recorrido, de um critério normativo, com carácter de generalidade e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, mas antes a mera aplicação, pelas decisões judiciais questionadas, dos critérios normativos tidos por relevantes
às particularidades do caso concreto, particularidades das quais se mostram incindíveis.
Assim, não tendo o recorrente identificado, de modo claro e preciso, a interpretação normativa arguida de inconstitucional e imputando directamente às decisões judiciais recorridas, em si mesmas consideradas, a violação das normas e princípios constitucionais invocados, falece o apontado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que impossibilita o conhecimento do seu objecto.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Maio de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos