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Processo n.º 504/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 336 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por sociedade A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
1. [...] O recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, «por entender que as normas dos artigos 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, e 484º, n.º 1, do CPC, na redacção em vigor em
2001, na sua aplicação conjunta, tal como foram aplicadas nos presentes autos, sem, pelo menos, o recurso a qualquer advertência suplementar como a prevista no artigo 241º do mesmo código, quando a carta para citação de uma sociedade não seja entregue a um elemento do órgão da respectiva administração, viola os princípios do Estado de Direito, do Acesso à Justiça e da Tutela Jurisdicional Efectiva e do Direito de Propriedade Privada» (requerimento de fls. 331). O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 333, que, nos termos do artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, não vincula este Tribunal.
2. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo». Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa certa interpretação) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, nessa interpretação) seja aplicada no julgamento da causa, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida (cfr. ainda artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
3. Ora, no caso dos autos, não foi suscitada pela recorrente, durante o processo, de forma clara e perceptível, uma questão de inconstitucionalidade normativa relativamente às normas identificadas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Com efeito, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu não anular (por não existir falta de citação) a sentença do Tribunal da Comarca de Braga que, julgando procedente a acção contra si proposta por B., a condenara a pagar à Autora a importância de 33.798.684$00, acrescida de juros de mora, a ora recorrente sustentou «a inconstitucionalidade da aplicação conjunta das disposições dos art.ºs 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, e 484º, n.º 1, do Código de Processo Civil», e afirmou ser «incorrecta e inexacta a parte do acórdão em que se diz que a Ré só não deduziu contestação por culpa própria», por o Tribunal ter dado «por assente que a carta de citação, apesar da sua relevante importância de importar numa condenação de pagamento de mais de trinta mil contos, foi entregue a um empregado da recorrente que se limitou a colocá-la na mesa do seu administrador delegado, que [...] esteve alguns dias sem ir ao escritório [...], de modo que a carta de citação só foi encontrada depois de recebida a sentença» (fls. 291). E concluiu assim essas alegações (fls. 295):
«[...] a) Declarando anulados a sentença e o acórdão recorridos e todo o processado posterior à PI, sem aplicação da cominação do art.º 484º do CPC por ser violadora da Constituição a aplicação conjunta das disposições dos art.ºs 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, e 484º, n.º 1, do CPC [...];
[...] Vossas Excelências farão a acostumada justiça.
[...].» Nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação em termos processualmente adequados de uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada às normas que a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. A recorrente limitou-se então a manifestar a sua discordância relativamente à sentença da 1ª Instância e ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que, na falta de contestação da acção que contra si fora instaurada, consideraram confessados os factos articulados pelo Autor e a condenaram no pedido. Tal significa, nas circunstâncias do processo, que a ora recorrente impugna a aplicação ao caso das normas do Código de Processo Civil que definem os efeitos da revelia. A recorrente dirige a censura de inconstitucionalidade, não a uma ou mais normas aplicadas na decisão recorrida, mas à própria decisão recorrida, como aliás resulta claramente dos termos usados no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, onde de modo expresso se afirma que «as normas dos artigos 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, e 484º, n.º 1, do CPC, [...] na sua aplicação conjunta, tal como foram aplicadas nos presentes autos», violam determinados princípios constitucionais [...]. Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade. As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
[...].”.
2. Notificada desta decisão, veio a A. reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 347 e seguintes), invocando, em síntese, para o que agora releva:
“[...]
2. A questão da inconstitucionalidade das referidas normas vem, pelo menos, das alegações da apelação, nos seus itens 31 a 54, além do mais se escreveu:
[...]
54 - Em conclusão, a aplicação conjugada das presunções legais de citação e de confissão dos arts. 233°, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236°, n.º 1, e 484°, n.º 1, do CPC, sem recurso a qualquer advertência suplementar como a prevista no artigo 241º do mesmo código, quando a carta de citação de uma sociedade não seja entregue a um elemento do órgão de administração da sociedade ré, viola os princípios do Estado de Direito, do Acesso à Justiça e da Tutela Jurisdicional Efectiva e do Direito de Propriedade Privada.
3. E, nas alegações da revista, sob os itens 50 a 53, além do mais, a recorrente escreveu:
50 - A recorrente mantém o pedido de declaração de inconstitucionalidade das disposições conjugadas das normas dos arts. 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, e 484°, n.º 1, do CPC, sem recurso a qualquer advertência suplementar, como a prevista no artigo 241º do mesmo código, quando a carta de citação de uma sociedade não seja entregue a um elemento do órgão de administração da sociedade ré, (porque) viola os princípios do Estado de Direito, do Acesso à Justiça e da Tutela Jurisdicional Efectiva e do Direito de Propriedade Privada.
[...]
4. Resulta do acima extractado que, a propósito da aplicação das normas dos arts. 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º n.º 1, e 484°, n.º 1, do CPC a recorrente dirige a sua censura contra os normativos legais – chegando a dizer «mantém o pedido de declaração de inconstitucionalidade das disposições conjugadas das normas dos arts. 233°, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236º, n.º 1, 484º, n.º 1 do CPC» (supra
3-50º) – que o legislador ordinário pretende que os Tribunais apliquem,
5. só reflexamente levando essa censura às decisões judiciais recorridas, mas mesmo aí, por terem aplicado aquelas concretas normas que se consideram inconstitucionais.
6. Diferente seria se a recorrente censurasse as decisões recorridas por as considerar violadoras dos princípios constitucionais, mas sem se preocupar com identificar as normas legais ordinárias cuja interpretação e aplicação é que determinou a inconstitucionalidade da decisão.
7. É, pois, naquele sentido, levado ao item 50 das alegações da REVISTA, de que se pretende pedir a declaração de inconstitucionalidade das disposições conjugadas das normas dos anos dos arts. 233°, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236°, n.º 1, e
484°, n.º 1, do CPC, que deverá interpretar-se o sentido – ainda que imperfeitamente expresso – da conclusão 1ª daquelas mesmas alegações da REVISTA, quando aí se escreveu que a aplicação conjunta das disposições dos arts. 233°, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236°, n.º 1, e 484°, n.º 1, do CPC, viola os princípios constitucionais da Proporcionalidade e da Justiça, do Estado de Direito, do Acesso à Justiça, da Tutela Jurisdicional Efectiva e do Direito de Propriedade Privada.
8. Alguma condescendência na impropriedade dos termos usados na referida conclusão deverá ser tolerada, pelo facto de, afinal, as conclusões, mais que o relatório das alegações pretenderem resumir de um modo incisivo o sentido da decisão pretendida, que, no caso, seria no sentido da recusa do efeito cominatório – mas que, obviamente, apenas logicamente possível após o pressuposto juízo sobre a inconstitucionalidade das normas do direito ordinário determinantes daquele efeito cominatório.
9. Para a falta de clareza também concorre o facto de, na fiscalização sucessiva da constitucionalidade, o recurso para o TC haver de ser justificado pela impugnação de uma decisão judicial – impugnada pelo conteúdo anti-constitucional das normas que aplicou.
10. De resto, tendo em conta a clareza do pedido de declaração de inconstitucionalidade das referidas normas levada ao referido item 50 da REVISTA, mostra-se preenchido o requisito da alínea b) do n° 1 do art. 70º da Lei do TConstitucional, pois que este não obriga que a questão da inconstitucionalidade seja suscitada nas conclusões das alegações, admitindo (a contrario) que a questão tenha sido seja suscitada no relatório das alegações.
[...].”
3. Notificada para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, a recorrida B. não respondeu (cota de fls. 350):
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso, invocou como fundamento o não preenchimento dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto: o Tribunal Constitucional entendeu que “não foi suscitada pela recorrente, durante o processo, de forma clara e perceptível, uma questão de inconstitucionalidade normativa relativamente às normas identificadas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional” e que “a recorrente dirigiu a censura de inconstitucionalidade, não a uma ou mais normas aplicadas na decisão recorrida, mas à própria decisão recorrida, como aliás resulta claramente dos termos usados no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional”.
Na reclamação agora deduzida, a reclamante pretende demonstrar que, contrariamente ao que se decidiu nessa decisão sumária, suscitou durante o processo a inconstitucionalidade das normas que vem submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional.
5. Reafirma-se que a ora reclamante não suscitou, durante o processo, de modo adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de constituir objecto do recurso de fiscalização concreta interposto; designadamente, não suscitou perante o tribunal recorrido uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos artigos 233º, n.ºs 1, 2-a) e 4,
236º, n.º 1, e 484º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Basta, de resto, atentar no texto da reclamação agora apresentada e nas passagens das peças processuais aí transcritas para concluir que a ora reclamante imputou a inconstitucionalidade às decisões proferidas no processo pelo Tribunal da Comarca de Braga, pelo Tribunal da Relação de Guimarães e pelo Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiram os pedidos ou negaram provimento aos recursos da ora reclamante.
O que verdadeiramente se impugna é – e utilizam-se as palavras da ora reclamante – “a aplicação conjugada das presunções legais de citação e de confissão dos arts. 233°, n.ºs 1, 2-a) e 4, 236°, n.º 1, e 484°, n.º 1, do CPC, sem recurso a qualquer advertência suplementar como a prevista no artigo 241º do mesmo código, quando a carta de citação de uma sociedade não seja entregue a um elemento do órgão de administração da sociedade ré”, por se entender que essa aplicação conjugada “viola os princípios constitucionais da Proporcionalidade e da Justiça, do Estado de Direito, do Acesso à Justiça, da Tutela Jurisdicional Efectiva e do Direito de Propriedade Privada”.
Por outras palavras, pretende a ora recorrente que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a regularidade da sua citação.
A apreciação de tal pretensão excede obviamente o âmbito de competência do Tribunal Constitucional, sendo certo que o poder de fiscalização de constitucionalidade atribuído a este Tribunal apenas incide sobre normas e não sobre outros actos, nomeadamente sobre as próprias decisões judiciais.
6. De todo o modo, sublinhe-se que, questionando a ora reclamante a regularidade da sua citação, a verdade é que as normas dos artigos 233º, n.ºs 1,
2-a) e 4, e 236º, n.º 1, do Código de Processo Civil não foram aplicadas na decisão aqui sob recurso – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Dezembro de 2003.
Lê-se, a este propósito, no acórdão:
“[...] Desde já, diremos que os recursos são meios destinados a obter a reforma das decisões judiciais dos tribunais inferiores – visam a reapreciação e, eventualmente, a modificação dessas decisões – e não vias jurisdicionais para criar decisões sobre matéria nova, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 676°, n.º 1, 680º, n.º 1, e 690°, n.º 1, do CPC. Dizemos isto porque a recorrente aproveita as suas alegações, e respectivas conclusões, da presente revista para suscitar questões relacionadas com a sua citação, questões essas que se encontram completamente ultrapassadas, face à posição assumida pela própria recorrente. Na verdade, por requerimento de fls. 101 e 102, a Ré arguiu a «nulidade processual por falta ou nulidade de citação». Por despacho de fls. 143 a 145, foi decidido que a Ré foi válida e regularmente citada, pelo que foi julgada improcedente a invocada nulidade. Interposto pela Ré o competente recurso de agravo, veio o mesmo a ser julgado deserto, por falta de alegações – cfr. fls. 181 –, pelo que aquela decisão transitou em julgado. Não pode, pois, este Tribunal reapreciar a questão da validade da citação, sem embargo de se ter de reconhecer ser por demais evidente a falta de razão da Ré.
[...].”
Com efeito, tendo sido interposto recurso de agravo do despacho que, no Tribunal da Comarca de Braga, julgou válida a citação da ora recorrente, tal recurso foi julgado deserto, por falta de alegações (cfr. despacho de fls. 181). Tal decisão transitou em julgado e não foi por isso apreciada, no âmbito do recurso de revista, pelo Supremo Tribunal de Justiça. Nessas circunstâncias, não foram aplicadas no acórdão recorrido as normas impugnadas pela reclamante relativas às modalidades e aos requisitos da citação.
7. Em conclusão, não estando verificados no caso dos autos os pressupostos processuais do recurso interposto, o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos