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Processo nº 183/2004
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência,
na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls.53, foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. Por sentença de 7 de Abril de 2003 do Tribunal Judicial da Comarca de Penacova, de fls. 25, foram decretadas determinadas providências cautelares contra o Município de Vila Nova de Poiares e a Associação A., na sequência de requerimento de restituição provisória de posse apresentado contra estas entidades pela Junta de Freguesia de S. Miguel de Poiares. Inconformados, os requeridos recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra, sustentando, no que agora releva, a falta de personalidade judiciária da requerente e a sua falta de legitimidade, em síntese, porque “o facto de a Junta de Freguesia ter competência para instaurar pleitos e defender-se neles não pode deixar de fazê-lo como órgão representativo da Freguesia e em nome desta” e, portanto, “jamais se deveria ter julgado a Junta de Freguesia parte legítima nesta acção, dado que ela tem de se movimentar como órgão representativo da freguesia”. O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, pelo acórdão de de fls. 38. Apenas para o que agora interessa, o referido acórdão entendeu que “(...) de fácil rechaçamento é a questão introduzida quanto à falta de personalidade judiciária e de legitimidade da agravada, porquanto bem fácil de perceber é que a Junta de Freguesia – tal como invoca no seu articulado – veio pleitear em nome e no interesse da ‘comunidade local, que é o universo dos compartes’; em nome e no interesse ‘dos habitantes/moradores da Freguesia de São Miguel’. Veio pleitear – como também expressa nos artºs 7º a 10º da sua petição – como
órgão representativo dos moradores da freguesia e com poderes delegados pela respectiva assembleia de compartes, conforme deliberado na assembleia de 10 de Dezembro de 1994 (...). Assim, a legitimidade processual da agravada Junta de Freguesia reconhece-se pela alegada administração ou gestão que faz dos baldios em causa e pelo disposto legalmente na Lei n.º 63/93, de 4 de Setembro (artº 4º, n.º 3, 11º e
15º) e na Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro (artº 34º, n.º 1, alª c) e n.º 6, alª m).”
2. Vieram então os requeridos recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, nos seguintes termos:
“(...) tendo sido notificados do aliás Douto Acórdão que confirmou na plenitude a sentença de 1ª Instância, julgando, além do mais a Junta de Freguesia parte legítima, e não se podendo conformar com tal interpretação das normas aplicadas
(...) Na verdade os artigos 4º, n.º 3, 11º e 15º da Lei n.º 62/93, de 04/09 e os artigos 34º, n.º 1, al. c) e n.º 6, al. m) da Lei n.º 169/99 de 18/09 e os artigos 5º, 6º e 9º do Cód. Proc. Civil, não podem oferecer respaldo à interpretação efectuada por ofender, além do mais, os artigos 235º, 236º, 244º e
246º da Constituição da República. Estas inconstitucionalidades foram alegadas nos itens 9º, 10º, 11º, 22º e 23º das alegações e als. c), d) e e) das Conclusões das mesmas”. O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode, porém, conhecer do presente recurso. Note-se, antes do mais, que os recorrentes não cumpriram, como lhes competia, o
ónus de definir o objecto do recurso de constitucionalidade, ou seja, das normas que pretendem sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, é ao recorrente que incumbe a definição do objecto do recurso; não é suficiente, quando se questiona uma determinada interpretação normativa, a afirmação de que é aquela que a decisão recorrida adoptou, assim transferindo para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional – o ónus de delimitar o objecto do recurso. Como se escreveu, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º, 1118): “Tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. Não se procede, todavia, ao convite previsto nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para que procedam a essa definição, porque há obstáculos insanáveis ao conhecimento do recurso.
4. Assim, e em primeiro lugar, contrariamente ao que consta do requerimento de interposição de recurso, os recorrentes não suscitaram “durante o processo” (al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82), e nomeadamente nos locais das alegações apresentaram no tribunal recorrido que ali indicam, a inconstitucionalidade de quaisquer normas contidas nos preceitos legais enumerados no referido requerimento.
É pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Não é, manifestamente, o caso dos autos.
5. Em segundo lugar, as alegações apresentadas no tribunal recorrido assentam na ideia de que a Junta de Freguesia de S. Miguel de Poiares litiga em nome próprio, nomeadamente por não ter poderes de representação dos verdadeiros interessados; diferentemente, o acórdão recorrido considera que litiga em defesa dos interesses da comunidade local, dos habitantes ou dos compartes, como se lê na transcrição feita acima. Isto significa que, ainda que se pudesse ver nas citadas alegações a definição de uma questão de inconstitucionalidade normativa referente aos preceitos ali indicados, a interpretação que o acórdão recorrido atribuiu às normas de que extraiu a personalidade judiciária e a legitimidade da recorrida não coincidiria com a que eventualmente os recorrentes poderiam ter considerado inconstitucional, o que igualmente impediria o conhecimento do recurso (cfr., a título de exemplo, o Acórdão n.º 366/96, Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996).
6. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. »
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária. Consideram “ter oportunamente levantado, nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (...) as questões respeitantes à falta de personalidade judiciária e falta de legitimidade da recorrida, bem como enunciado as normas violadoras da Constituição da República”. Entendem ser “de lamentar o conteúdo do 1º parágrafo do item 5 da decisão sub judice”, que transcrevem, porque “na verdade, se assim fosse, também qualquer
órgão executivo de uma qualquer pessoa jurídica poderia receber ordens para instaurar a acção (...)”. E que “nem colhe, ressalvada melhor opinião, a tese de falta de delimitação do objecto do recurso, já que a pretensão dos recorrentes se encontrava já bastante delimitada nas alegações” do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra. E, se assim não fosse, “deveria ter sido feito o convite previsto no n.º 5 do art. 75-A da L. n.º 28/82, o que não se verificou”. A recorrida pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
3. Com efeito, a presente reclamação – que não tem em conta, nem o objecto possível de um recurso como o que interpôs, destinado à apreciação de questões de constitucionalidade normativa, nem os seus pressupostos – é manifestamente improcedente, pelas razões apontadas na decisão reclamada, e que agora se reiteram. Apenas se acrescentam algumas notas. Em primeiro lugar, os reclamantes afirmam ter “levantado, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (...), as questões respeitantes à falta de personalidade judiciária e falta de legitimidade da recorrida, bem como enunciado as normas violadoras da Constituição da República”. A primeira afirmação é exacta, mas nada tem a ver com o recurso de constitucionalidade; a segunda não é, como se pode verificar da leitura das alegações de fls.122, onde se citam alguns dos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional mas sem que, de modo nenhum, se suscite qualquer questão de inconstitucionalidade de normas neles contidas. Em segundo lugar, insistem os reclamantes, indicando os correspondentes preceitos legais, em que “jamais uma Junta de Freguesia, à luz da Constituição da República, poderia ser considerada pessoa jurídica, não possuindo consequentemente personalidade judiciária (...)”; e que nunca poderia ser julgada parte legítima na acção; assim, lamentam, como se disse, o que se escreveu no “1º parágrafo do item 5 da decisão sub iudice”, cujo conteúdo, manifestamente, não foi apreendido. Ora a verdade é que basta confrontar o que, quanto estes pontos, se diz na reclamação com as referidas alegações de recurso para verificar que, nestas
últimas, se não colocam as questões de constitucionalidade enunciadas na reclamação. Finalmente, afirmam que, a entender-se não estar definido o objecto do recurso de forma suficiente, deveriam ter sido convidados a fazê-lo, ao abrigo do regime de correcção do requerimento de interposição de recurso previsto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82. Esta afirmação já está respondida na decisão sumária, em termos que se reiteram.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso.
Lisboa, 21 de Maio de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida