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Processo n.º 324/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1.Em 8 de Março de 2003, A. requereu junto do Tribunal Central Administrativo a suspensão da eficácia, anexada ao pedido de recurso contencioso, do acto constituído pelo despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais datado de
13 de Dezembro de 1999, que, segundo afirmou o demandante, “ratificou actos processuais nulos e eivados de outros vícios, permitindo o prosseguimento indevido do processo disciplinar instaurado ao Requerente.” Nas suas alegações, o requerente defendeu a inconstitucionalidade da decisão recorrida por violação dos artigos 20º e 268º, n.ºs 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa, “quando entende que nos recursos em Processo Disciplinar só é aplicável o disposto no art. 74º do E.D.” (Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local), acrescentando ainda que essa decisão:
“É inconstitucional por violação do n.º 2 do art. 32º da C.R.P. porquanto ratifica a acusação de que o recorrente cometeu crimes sem que para tanto fossem instaurados autos, feita acusação e sem decisão condenatória.
É inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do art. 26º da C.R.P., quando imputa ao recorrente a prática de crimes, o que é ofensivo ao bom nome, reputação, imagem e reserva da intimidade da vida privada.
É inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do art. 221º da C.R.P., fazendo acusações de natureza criminal, quando tal matéria é da exclusiva competência do Ministério Público que só ele pode exercer a acção penal.
É inconstitucional por violação do disposto no n.º 3 do art. 268º da C.R.P., porquanto a decisão carece de fundamentos factuais ou invoca actos e factos inexistentes.” Em acórdão de 27 de Abril de 2003, o Tribunal Central Administrativo indeferiu o pedido de suspensão de eficácia por não se encontrar preenchido o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e negou provimento ao recurso, baseando-se nos seguintes fundamentos:
«No douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 9/95, publicado no DR, II Série, n.º 69, de 22-3-85 (citado e analisado por Manuel Leal-Henriques a propósito da impugnabilidade contenciosa das decisões proferidas em processos disciplinares in “Procedimento Disciplinar”, anotação ao art. 74° do ED), que constitui um precioso manancial sobre o debate de ideias e a evolução conceitual que veio a culminar na actual redacção do artigo 268°, n.º 4 da CRP, subsequente
à revisão constitucional de 1989 (LC n.º 1/89, de 8 de Julho), concluiu-se:
“O sentido da garantia constitucional de recurso contencioso contra actos administrativos ilegais é, portanto, este: ali onde haja um acto da Administração que defina a situação jurídica de terceiros, causando-lhe lesão efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, existe o direito de impugná-lo contenciosamente, com fundamento em ilegalidade. Tal direito de impugnação contenciosa já não existe, se o acto da Administração não produz efeitos externos ou produz uma lesão de direitos ou interesses apenas potencial”. Esta perspectiva, perfilhada por muitos autores e decisões judiciais, mormente do Supremo Tribunal Administrativo, fez escola e contribuiu para arredar da corrente dominante a esboçada “teoria maximalista” que aparentemente o Recorrente professa, e que preconizava a consagração no novo texto constitucional de uma verdadeira “revolução” tendente a alargar a possibilidade de recurso contencioso indistintamente a todos os actos administrativos. Botelho, Esteves e Pinho, no seu “CPA Anotado e Comentado”, 43ª edição, Almedina, pág. 499, apontam o rumo que hoje é praticamente consensual:
“O n.º 4 do artigo 268° pretendeu, assim, consagrar uma garantia efectiva de accionabilidade em relação aos actos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”
“Porém, o Legislador, ao referir-se a actos administrativos, desde logo tomou claro que ao contencioso administrativo não poderia aceder todo o tipo de recursos mas apenas aqueles que se dirijam contra um acto administrativo e desde que a lesão seja actual”.
É exactamente a falta desta característica – lesividade actual ou imediata – que determina que os actos de trâmite sejam em regra irrecorríveis. Ainda na lição dos Autores citados (obra citada, pág. 497) essa falta de imediata lesividade deriva de esses serem actos “meramente instrumentais”, ou
“simples pressupostos da decisão final”, que não encerram declarações de vontade constitutivas nem criam relações jurídicas.
É certo que a regra admite excepções: aí onde a actualidade da lesão se evidenciar, estaremos perante os chamados “actos destacáveis” desde logo contenciosamente impugnáveis. Note-se que esta construção teórica em nada prejudica o cerne dos interesses particulares em causa, uma vez que as ilegalidades cometidas no decurso do procedimento não deixarão de viciar a resolução final do procedimento e de ser invocáveis em recurso interposto desta resolução, agregando as vantagens de permitir a fluidez do procedimento e de expurgar o sistema judicial de muitos processos que, a final, se viriam a revelar inúteis (nos casos em que, não obstante alguma ilegalidade tramitacional, a resolução final acabasse por favorecer as pretensões do destinatário). A título de demonstração, as questões suscitadas neste processo perderão toda a consistência prática se, a final, não for aplicada ao Recorrente qualquer medida punitiva. Assim, a recorribilidade do acto em causa – que é sem dúvida um acto instrumental – estaria dependente da existência de qualquer lesão actual (e não meramente potencial) que o seguimento do processo disciplinar projectasse na esfera jurídica do Recorrente. Tal lesão não pode consistir na simples pendência do processo disciplinar e no desconforto que causa ao arguido. Se assim fosse, seria indiscutível a recorribilidade contenciosa do acto que manda instaurar o processo disciplinar, do acto que o manda reabrir, ou do que converte o inquérito em processo disciplinar, contrariando toda a jurisprudência que, em contrário, se firmou
(cfr., por exemplo, os Acórdãos do STA de 9-2-93, BMJ, 424, p. 441; de 22-4-93, BMJ 426, p. 325; e de 5-4-94, AP-DR de 31-12-96, p. 3491). Ora, o Recorrente não invoca nenhum dano que se projecte de imediato na sua esfera jurídica, concretamente na sua carreira ou actividade profissional, por força do prosseguimento do processo em consequência de terem sido desatendidas
(para já) as causas extintivas do procedimento disciplinar invocadas (prescrição ou amnistia), ou pelo facto de a Administração persistir em confirmar actos praticados no processo que o arguido considera inválidos. De resto, pelo menos na questão da amnistia, a decisão seria prematura, visto que são imputados ao Recorrente factos puníveis com penas que, nos próprios termos da Lei da Amnistia, fazem excluir a respectiva aplicação, não invalidando que o órgão decisor, numa mais ponderada apreciação do processo, venha eventualmente a rever a materialidade dos factos ou a qualificação das infracções, por forma a propiciar a aplicabilidade dessa causa de extinção da responsabilidade disciplinar. Quanto ao mais, a argumentação do Recorrente centra-se na invocação de vícios que, como se disse, podem hipoteticamente afectar a decisão final do processo disciplinar, mas nada relevam para o debate sobre a questão prévia que agora nos ocupa. Pelo exposto, nos termos dos artigos 54º da LPTA e 57º, § 4º, do RSTA considerando procedente a questão prévia suscitada pelo Mº Pº, acordam em rejeitar o recurso, por ilegalidade do respectivo objecto.»
2.Inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando em conclusões, no que ora importa:
“I – A decisão recorrida (acto de ratificação), enquadra-se nos pressupostos do art. 268º, n.º 4, da CRP, sendo um acto destacável e provada a lesão actual e imediata dos legítimos direitos e interesses do recorrente. II – A prescrição deve ser verificada e declarada, ao abrigo do art. 4º do E.D., conjugado com o art. 121º do Código Penal, por força do art. 9º do E.D., por ser do conhecimento a todo o tempo e oficioso. III – O prazo para a verificação da prescrição é de dois anos e segundo a data dos hipotéticos factos, ocorreu em 11/6/96. IV – O despacho que nomeou o Sr. Instrutor Dr. B., é nulo por força do disposto no art. 51º, n.º 1, do E.D. V – A autuação dos autos é nula por ser nulo o despacho de nomeação do Sr. Instrutor e este não ter competência em razão da hierarquia para o acto – art.
51º, n.º 1, do E.D. VI – A decisão recorrida devia ter conhecido da Amnistia consagrada na Lei n.º
29/99, de 12/5, em relação aos pseudo-factos constantes da acusação. VII – A decisão recorrida está viciada por violação de lei e incompetência, porque viola o disposto no art. 51º, n.º 1, do ED, quando nomeia instrutor pessoa que não reúne os requisitos legais essenciais, sendo tal norma de natureza imperativa, o que conduz à nulidade insuprível. VIII – A decisão recorrida viola o disposto nos art.s 55º e 59º, n.º 4, do ED, sendo por isso nula e essa nulidade insuprível. IX – A decisão recorrida sofre de ‘desvio de poder’, porquanto deveria revogar o acto de ratificação de actos nulos não só quanto à nomeação do instrutor Dr. B.; mas também de todo o processado – art. 133º, n.ºs 1 e 2, do C.P.A.. X – As acusações formuladas nos autos são nulas por inexistência de factos, vício de forma e incompetência do seu autor, em face do disposto no art. 59º, n.º 4, do E.D., que se encontra violado. XI – A decisão recorrida não pode ratificar os actos nulos e referidos nas alegações, por força do disposto no art. 137º, n.º 1, e art. 139º, n.º 1, alínea e), ambos do C. P. A. XII – A decisão não pode ratificar actos praticados por quem não tem competência e consubstanciam o vício de forma e usurpação de poderes, por fazerem afirmações para as quais o seu Autor não tem competência em razão da matéria e da hierarquia – art. 51º, n.º 1, do E.D. XIII – A decisão não pode ratificar actos que são manifesta violação de caso julgado, porquanto os tribunais já se pronunciaram definitivamente pela inexistência de factos de natureza criminal e são insusceptíveis de integrar ilícitos da competência da Ordem dos Advogados. XIV – O relatório final nos autos é nulo por ser feito por pessoa sem competência, violando o disposto no art. 51º, n.º 1, e art. 65º do E.D. e sem identificação dos factos. XV – A decisão não pode ratificar actos que são susceptíveis de enquadramento do crime de violação de segredo de justiça, praticados nos autos. XVI – A decisão não pode ratificar actos ainda que com vício que conduzisse à anulabilidade, porque: Não há lei que o permita, O acto de ratificação não foi praticado pela entidade competente –art. 137º do CPA. O momento para a prática do acto já se extinguiu, por força do disposto no art.
137º, n.º 2, e art. 141º, n.º 1, do CPA. XVII – A decisão recorrida é inconstitucional por violação do n.º 2 do art. 32º da CRP, porquanto ratifica a acusação de que o recorrente cometeu crimes sem que para tanto fossem instaurados autos, deduzida acusação e proferida decisão condenatória, nem tão-pouco estão comprovados os factos. XVIII – A decisão é inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do art.
26º da CRP, quando imputa ao recorrente a prática de crimes, o que é ofensivo do seu bom nome, reputação, imagem e reserva da intimidade da vida privada. XIX – A decisão é inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do art.
221º da CRP, fazendo acusações de natureza criminal, quando tal matéria é da exclusiva competência dos Tribunais, em especial do M.P. que só ele pode e deve exercer a acção penal. XX – A decisão é inconstitucional por violação do disposto no n.º 3 do art. 268º da CRP, porquanto a decisão carece de fundamentos factuais invocando indícios de factos inexistentes.” Por acórdão de 25 de Fevereiro de 2003, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu negar provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos:
“Ora, como é jurisprudência deste Tribunal, que se pode considerar uniforme, mesmo após a nova redacção dada ao n.º 4 do art. 268º da CRP pela Revisão de
1997, em processo disciplinar só é, em princípio, impugnável a decisão final condenatória, na qual se cristalizam os vícios de procedimento que eventualmente ocorram durante a instrução do processo. Assim se tem considerado, nomeadamente no que respeita ao acto que manda instaurar o processo disciplinar, ao acto que nomeia o instrutor, ao acto que indefere o incidente de suspeição do instrutor, ao acto que indefere o pedido de declaração de impedimento dos vogais do órgão decisório, ao acto que converte o inquérito em processo disciplinar e, enfim, à generalidade dos actos interlocutórios praticados em processo disciplinar, por se considerarem não destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa autónoma, sem prejuízo da sua impugnação graciosa, nos casos em que a lei a prevê (cfr., por ex., os Acs. do STA de 09-02-03, rec. n.º 30916, de 05-05-94, rec. n.º 32592, de 05-05-99, rec. n.º 44195, e de 20-02-02, rec. n.º 44194). Neste entendimento, não se vê incompatibilidade entre o art. 74º do E.D. e o citado n.º 4 do art. 268º da CRP, mesmo na actual redacção, na medida em que a decisão final do processo pode sempre ser atacada com fundamento na ilegalidade dos referidos actos interlocutórios, apenas os mesmos não são susceptíveis de recurso contencioso imediato, por não se considerarem objectivamente lesivos dos interesses do arguido, já que a sua situação disciplinar não fica com eles definitivamente resolvida, nem a sua culpabilização fica definida ou sequer presumida, pelo que tais actos, sendo preparatórios ou instrumentais, não são susceptíveis de atingir, irremediavelmente, a sua esfera jurídica ou de comprometer inelutavelmente o sentido da decisão final. Preside, aqui, a própria racionalidade do regime de impugnação contenciosa que obriga a escolher apenas os actos em cuja validade se possa reflectir a ilegalidade de outros actos a ele funcionalmente ligados no âmbito do mesmo procedimento administrativo. É nisto, afinal, que consiste o princípio da impugnação unitária, que não foi posto em causa pela actual redacção do n.º 4 do art. 268º da CRP. Com efeito e embora este preceito constitucional tenha vindo exigir a lesividade como pressuposto da recorribilidade do acto administrativo, a lesividade de que se fala é a lesividade objectiva, actual e não meramente potencial, ou seja, é a lesividade susceptível de provocar uma alteração na ordem jurídica, o que supõe um acto que defina, de modo definitivo, uma concreta relação jurídica administrativa.
‘Esta conclusão não provoca qualquer compressão intolerável dos direitos e interesses legalmente protegidos do requerente, nem traduz uma injustificada diminuição das garantias constitucionais de tutela jurisdicional do direito ao recurso. Na verdade, inserindo-se o procedimento em causa num processo sancionatório que há-de necessariamente culminar numa futura decisão, mantém-se plenamente em aberto a possibilidade legal de o requerente impugnar o acto lesivo que porventura vier a produzir-se, com total garantia de tutela jurisdicional dos interesses que defenda’ [Ac. do STA de 05-05-99, rec. n.º 44195]. Ora, face ao anteriormente exposto, a decisão do SEAF, proferida na pendência do processo disciplinar, que ratifica actos praticados nesse processo, pelo instrutor nomeado, que não declara prescrito o procedimento disciplinar e não se pronuncia sobre a aplicação ou não, ao caso, da Lei da Amnistia, ou seja, que se limita a determinar ao instrutor do processo disciplinar o prosseguimento dos ulteriores termos da instrução do mesmo, não definindo ainda a situação jurídica do recorrente, o que só acontecerá a final, no termo do processo disciplinar, não tem idoneidade para, de forma imediata e irreversível, determinar qualquer lesão dos interesses do recorrente. Na verdade, pode acontecer que, a final, o recorrente nem venha a ser condenado pelos factos que lhe são imputados no processo disciplinar. O acto impugnado é assim tão-só potencialmente lesivo, como bem o considerou o acórdão recorrido. Quanto ao facto, supervenientemente invocado, já em sede das alegações deste recurso jurisdicional, de que a existência do processo disciplinar já provocou ao recorrente uma lesão efectiva, visto que o impediu de ser promovido a Chefe de Divisão da Divisão de Gestão da Dívida Executiva da 1ª Direcção de Finanças de Lisboa, deve dizer-se, citando jurisprudência deste Tribunal, que ‘a lei não confere ao recorrente o direito a não ser incomodado com inquéritos ou processos disciplinares. Pelo contrário, o interesse público do regular funcionamento dos serviços impõe a instauração dos mesmos para apuramento de infracções disciplinares e da respectiva responsabilidade’. De resto e como bem observa a autoridade recorrida, nas suas contra-alegações, o despacho do recorrido que não permitiu a nomeação do recorrente para o referido cargo é um acto distinto e autónomo do procedimento disciplinar, o qual pode ser, ele sim, objecto de recurso contencioso de anulação, caso não seja aceite pelo recorrente.”
3.Inconformado com este acórdão, o autor interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, “na parte em que considerou não se encontrar revogada, por inconstitucionalidade superveniente, [a norma] constante do art. 74º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local”, por “terem sido violados os princípios e normas constitucionais seguintes:
- Princípio da tutela efectiva, arts. 20º, n.ºs 1 e 5, e art. 268º, n.º 4.
- Princípio do direito ao bom nome, art. 26º, n.º 1.
- Direito à integridade moral, art. 25º, n.º 1.
- Princípio da presunção de inocência, art. 32º, n.º 2.
- Direito à fundamentação, art. 268º, n.º 3.
- Direito de acção penal, art. 219º, n.º 1.” Notificado para produzir alegações, o recorrente concluiu assim:
“I – A decisão recorrida enquadra-se nos pressupostos do art. 268º, n.º 4, da CRP por ser lesiva aos direitos fundamentais subjectivos do recorrente, quando lhe imputa a prática de crimes. II – É também inconstitucional, por violação do n.º 3 do art. 268º da CRP, uma vez que a decisão recorrida carece de fundamentos factuais (falta de fundamentação). III – Foi violado o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 26º da Constituição e ainda o art. 25º, no seu n.º 1, porque se recusa a garantia dos direitos à dignidade pessoal, não reconhecendo o princípio da tutela jurisdicional efectiva. IV – O despacho viola o disposto no n.º 1 do art. 221º da Constituição porque faz acusações de natureza criminal, quando tal matéria é da exclusiva competência do poder judicial, em especial do M.P., que só ele pode exercer a acção penal (usurpação de funções, quando o poder administrativo interfere em matéria do poder judicial – art. 219º, n.º 1, da CRP). V – No despacho recorrido a interpretação do n.º 5 do art. 4º do ED é inconstitucional, face ao princípio da legalidade e à aplicação subsidiária do n.º 3 do art. 121º do CP. VI – A decisão, ao ratificar actos nulos – nulidade do despacho de nomeação do instrutor (art. 51º do E.D.); nulidade do acto de autuação; nulidade da segunda acusação que consta da decisão da ratificação ora recorrida; nulidade do relatório final, violam o princípio da legalidade [sic], uma vez que tal decisão não é legalmente permitida – art. 137º, n.º 1, e art. 139º, n.º 1, alínea e), do CPA. VII – A decisão recorrida viola o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do art. 266º, porque o erro é manifestamente grosseiro na fixação da pena até porque na 1ª acusação não se qualificavam factos como crimes fiscais e nas conclusões do primeiro relatório propõe-se o arquivamento. VIII – A decisão viola o princípio da legalidade e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20º e art. 268º, n.º 4, da Constituição, quando não conhece da prescrição, a qual é por demais evidente, nem conhece dos demais actos nulos, não susceptíveis de ratificação. IX – A decisão recorrida viola o princípio da separação de poderes consagrado no art. 219º, n.º 1, da CRP. Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis deve ser julgado inconstitucional as normas [sic] do art. 51º, n.º 1, art. 42º, art. 74º e art.
4º, n.º 5, do ED na interpretação que lhe foi dada na douta decisão recorrida, por violação dos seguintes princípios e normas constitucionais: Princípio da tutela jurisdicional efectiva – art. 20º e art. 268º, n.º 3, da CRP Direitos Fundamentais – art. 25º e art. 26º, n.ºs 1 e 3, da CRP Princípio da presunção de inocência – art. 32º, n.º 2, da CRP Princípio da Separação dos Poderes – art. 219º, n.º 1, e art. 221º, n.º 1, da CRP Princípio da Proporcionalidade – art. 266º, n.º 2, da CRP.” Por sua vez, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais rematou as suas contra-alegações escrevendo:
“(...)
11. Só numa visão deveras distorcida do procedimento disciplinar movido ao ora recorrente e uma vontade indómita de se conseguir uma pretensa inconstitucionalidade permite que se assaque, de forma tão ligeira, um sem número de violações de normas e princípios constitucionais a um só despacho e ao acórdão que não considerou verificados os pressupostos da sua recorribilidade autónoma!” Notificado pelo relator no Tribunal Constitucional para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia do não conhecimento do recurso, por a norma impugnada (o artigo 74º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local) não ter sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, veio o recorrente dizer:
«1. O recorrente apresentou em tempo as suas alegações e conclusões, onde invocou inconstitucionalidade na interpretação de normas, por acção e por omissão.
2. O douto Acórdão do S.T.A. decidiu não conhecer do pedido com o fundamento de que o acto impugnado não se enquadra no disposto no n.º 4 do art. 268° do C.R.P., quando, em nosso entender o “princípio da tutela efectiva dos seus direitos e interesses” - arts. 20º e 268º, n.º 4 do C.R.P. - impõe que o tribunal conheça das nulidades do mesmo acto, como por exemplo a violação do art. 51º, n.º 1, do E.D., a classificação de actos como crime em ofensa ao direito e acção penal de que o M.P. é titular e não declaração da prescrição por interpretação inconstitucional do art. 4º, n.º 5 do E.D..
3. Na verdade, o douto Acórdão recorrido não se repronuncia; mas conhece do art.
4° da E.D. considerando-se que o Acórdão deveria ter-se pronunciado sobre tal matéria por ser um facto extintivo do direito de punir.
4. Verifica-se não só uma inconstitucionalidade por omissão, mas também por acção tácita, mantendo a interpretação dada por S. Ex.ª S.E.A.F., quanto ao art.
4°, n.º 5, do E.D., ao entender não ser aplicável ao procedimento disciplinar o disposto no art. 121º, n.º 3, do Código Penal quanto ao período máximo da suspensão da prescrição.
5. Conforme Ac. do S.T.A., de 21.10.82, “são de aplicar subsidiariamente ao direito disciplinar os princípios e normas do direito penal”.
6. Conforme Ac. Doutrinal S.T.A., 264, 1449, “são subsidiariamente aplicáveis ao direito disciplinar os princípios e normas de direito penal sobre a prescrição do procedimento”.
7. Os factos extintivos do procedimento e as nulidades são de conhecimento oficioso, pelo que o douto Acórdão deles devia conhecer e, não o fazendo, viola os princípios constitucionais da tutela efectiva dos direitos e outros, sendo assim, inconstitucional.» Cumpre apreciar e decidir, começando por delimitar o objecto do recurso.
II. Fundamentos
4.Como se referiu, a única norma impugnada no requerimento de interposição de recurso foi a do artigo 74º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local – referindo-se aqui a decisão recorrida, “na parte em que considerou não se encontrar revogada, por inconstitucionalidade superveniente, [a norma] constante do artigo 74º” desse Estatuto Disciplinar. No pedido que encerra as suas alegações, porém, a solicitação de apreciação da conformidade constitucional estende-se, além de a este artigo 74º, “na interpretação que lhe foi dada na douta decisão recorrida”, às normas dos artigos 51º, n.º 1, 42º e 4º, n.º 5, do mesmo Estatuto. Isto muito embora quer nas alegações, quer nas suas conclusões – como, de resto, ao longo de todo processo –, as inconstitucionalidades tenham sido sempre imputadas apenas ao despacho ou à decisão recorrida, e não a norma ou dimensão normativa alguma (à excepção, na conclusão V das alegações de recurso, da norma do n.º 5 do artigo
4º do Estatuto Disciplinar, que, porém, não pode integrar o objecto do recurso, como se verá adiante). Não fosse, aliás, a circunstância de se encontrar na decisão recorrida uma pronúncia do tribunal recorrido sobre a conformidade constitucional da norma do artigo 74º do referido Estatuto Disciplinar, e o recurso interposto não poderia sequer ser recebido, já que, como se escreveu, designadamente, no Acórdão n.º
178/95 (publicado no Diário da República [DR], II Série, de 21 de Junho de
1995), sobre a questão da constitucionalidade das decisões judiciais, em si mesmas:
“(...) este Tribunal não pode conhecer dessas questões de constitucionalidade: o controlo de constitucionalidade, que a Constituição e a lei lhe cometem, é um controlo normativo – um controlo que apenas pode ter por objecto normas (ou seja, actos do poder normativo público), e não actos de poder público de outro tipo, como são as decisões judiciais. Entre nós, com efeito, o sistema de fiscalização de constitucionalidade não consagrou um recurso de amparo.” Ora, como também se escreveu no Acórdão n.º 20/97 (publicado no DR, II Série, de
1 de Março de 1997), citando o Acórdão n.º 379/96 (publicado, por sua vez, no DR, II Série, de 15 de Julho de 1996):
“o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. o artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo
75º-A, n.º 1, desta lei), sem prejuízo, obviamente, de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões da alegação (cfr. citado artigo
684º, n.º 3). O que, na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode fazer é ampliar o objecto do recurso antes definido. (No mesmo sentido, cfr. os Acórdãos n.ºs 71/92, 323/93, 10/95 e 35/96, publicados no DR, II Série, de 18 de Agosto de 1992, de 22 de Outubro de 1993, de 22 de Março de 1995 e de 2 de Maio de 1996, respectivamente).”
5.Conclui-se, pois, que o objecto do presente recurso de constitucionalidade só poderia circunscrever-se à apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 74º do referido Estatuto Disciplinar, por nenhuma das outras ter sido impugnada durante o processo, nem ter sido alvo de apreciação especificada na decisão recorrida, nem – o que, só por si, seria bastante – ter sido mencionada pelo recorrente no seu requerimento de interposição do recurso. Aquele preceito dispõe assim:
“Artigo 74º
(Recurso contencioso) Das decisões condenatórias dos ministros e demais entidades competentes cabe recurso contencioso nos termos gerais.” Apesar de se referir a uma interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, o recorrente não indica, porém, nem sequer nas alegações de recurso, um qualquer sentido para esta norma, que não seja o coincidente com o seu teor literal – e já se viu que esta norma só foi referida pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso e no pedido com que encerrou as suas alegações, referindo-se, no mais, sempre à decisão recorrida –, pelo que a presente indagação da conformidade constitucional tem de se ater ao sentido que resulta do seu enunciado verbal – de uma sua interpretação meramente enunciativa. De facto, de acordo com jurisprudência constitucional pacífica, de que pode servir de exemplo o Acórdão n.º 367/94 (publicado no DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994), citado também no já referido acórdão n.º 178/95:
“Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.
[...] esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, violar a Constituição.” Uma vez que tal circunscrição do sentido normativo relevante não foi efectuada, há que atender a todo o preceito legal. Ora, com o mero confronto entre este preceito e a decisão em causa, logo se conclui que, não sendo ele aplicável ao caso dos autos, não pode tomar-se conhecimento do objecto do recurso. Na verdade, não estamos, no caso sub iudice, perante qualquer “decisão condenatória” do recorrente, como a referida naquele artigo 74º, mas sim perante uma mera decisão interlocutória, sobre incidentes procedimentais (ratificação dos actos praticados pelo instrutor, declaração de não verificação de prescrição e não conhecimento dos factos abrangidos pela Lei da Amnistia – Lei n.º 29/99, de 12 de Maio). Tanto basta para concluir que a norma em causa não foi aplicada pela decisão recorrida como ratio decidendi, antes sendo referida como mero obiter dictum – pois que vinha invocada pelo recorrente –, e, portanto, que falta um dos pressupostos do recurso de constitucionalidade. De resto, mesmo a entender-se que a invocação da conformidade constitucional de tal norma era essencial à argumentação da decisão recorrida, o facto é que, não sendo as circunstâncias do caso subsumíveis ao teor da única norma impugnada, a decisão que viesse a ser proferida sobre a (in)constitucionalidade de tal norma não poderia repercutir-se na decisão recorrida – sendo certo que a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional tem de ser “susceptível de influir no julgamento do caso concreto” (para o dizer como no Acórdão n.º 12/83, publicado no DR, II Série, de 28 de Janeiro de 1984). Como se escreveu no Acórdão n.º
208/86, publicado no DR, II Série, de 3 de Novembro, e se tem repetido (cfr. também os Acórdãos n.ºs 250/86, 253/86 e 275/86, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 21 de Novembro de 1986, de 22 de Novembro de 1986, e de 17 de Dezembro de 1986):
“A decisão, em recurso, da questão de constitucionalidade é sempre
‘instrumental’ relativamente à decisão dessa outra questão [‘a questão principal, hoc sensu, substantiva ou processual, que ao tribunal a quo cumpre decidir’]” Deve entender-se, portanto, que a norma do artigo 74º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local não foi, no seu teor literal – único que pode estar em causa no presente processo, por nenhum outro ter sido identificado pelo recorrente – aplicada na decisão recorrida (por dizer respeito a decisões condenatórias, sendo que a dos autos não era), desempenhando o juízo de compatibilidade constitucional aí formulado em relação a ela, no contexto da decisão recorrida, apenas uma função adjuvante, de mero obiter dictum, e não de ratio decidendi. Assim, não estão preenchidos os requisitos do recurso de constitucionalidade tal como ele acabou definido pelas alegações produzidas neste Tribunal, pelo que não se pode dele tomar conhecimento.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso. Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Setembro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos