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Proc. n.º 446/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. recorreu para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), do acórdão proferido na Relação de Guimarães em 16 de Fevereiro de 2004 que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal de Vila Nova de Cerveira pelo qual fora confirmada a decisão proferida, em processo de contra-ordenação, pelo Chefe de Divisão da Delegação de Viação de Viana de Castelo, que aplicou à interessada a coima de 270 euros por infracção ao disposto no artigo 131º n. 1 do Código da Estrada.
A recorrente pretende, neste recurso, impugnar “a norma do artigo 134º n. 3 do Código de Estrada aprovado pelo Decreto-Lei 114/94 de 3 de Maio”, norma que, em seu entender, viola “o princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º ns. 2 e 10 da Constituição”.
Por decisão tomada nos termos do artigo 78-A n. 1 da LTC, o Tribunal entendeu, porém, não conhecer do objecto do recurso. Ponderou-se, para este efeito, o seguinte:
“(...) Acontece que o recurso interposto com fundamento na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC cabe das decisões que apliquem, como ratio decidendi, norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Impõe-se, na verdade, que a norma acusada de inconstitucional se mostre essencial na lógica decisória do aresto impugnado, pois, de outro modo, a eventual procedência do recurso nenhuma repercussão teria no processo. Ora, a propósito da norma acusada de inconstitucional, afirma-se no acórdão da Relação de Guimarães que não resulta da decisão recorrida que através desta norma “se tenha dirimido qualquer non liquet probatório; na verdade, não se decidiu contra alguém que tivesse omitido diligência de prova, pelo que se não vê onde poderia ancorar um juízo de inconstitucionalidade da norma em apreço.” Na verdade, considerou-se neste aresto que da prova recolhida nos autos resultava, isso sim, que a interessada, proprietária do veículo, o havia emprestado ao filho (condutor) bem sabendo que não dispunha de “seguro” que cobrisse os riscos da circulação desse veículo na via pública. A norma impugnada prevê tão somente que se o proprietário do veículo “provar” que o condutor o utilizou abusivamente, cessa a sua responsabilidade pelas infracções relativas às disposições que condicionam a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas. Ora é patente que esta norma não teve interferência na decisão da Relação de Guimarães.
Com efeito, a condenação da recorrente fundamentou-se na norma do n. 2 do mesmo preceito que determina que o proprietário do veículo, mesmo que não seja o seu condutor, é responsável pelas infracções relativas às disposições que condicionam a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas. Por esta razão, é indiferente ao resultado decisório consagrado no acórdão recorrido um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma aqui acusada de inconstitucional.”
É contra esta decisão que reclama a recorrente, nos seguintes termos:
“ Nos presentes autos, vem assente a seguinte matéria de facto:
1. No dia 26/10/2002, cerca das 03:00 horas, na E.M. s/n -------------, B. conduzia o ciclomotor de matrícula ----------------------, não tendo sido efectuado seguro de responsabilidade civil obrigatório.
2. Tal veículo é propriedade da arguida que o emprestou, na altura, ao seu filho
- o referido B. - para este «ir dar umas voltas no monte».
3. A arguida sabia que o veículo em causa não dispunha de seguro válido mas, não obstante, não cuidou de evitar que o mesmo circulasse na via pública. Assim, o que apenas ficou provado nos autos foi que, o ciclomotor é propriedade da recorrente, que o emprestou a seu filho para este 'ir dar umas voltas no monte'. Logo, como igualmente ficou provado nos autos, se o filho da recorrente conduzia o mencionado ciclomotor na 'via pública' - Estrada Municipal S/N
----------------------- - e não 'no monte', desde logo está efectivamente provado que os termos da autorização concedida por ela recorrente foram manifestamente infringidos. Isso porque, 'o monte' (ou qualquer local semelhante) nunca poderá ser qualificado de 'via pública', tal como esta é definida pelo artigo 1°, al. a), do Código da Estrada, ou seja, 'via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público'. Assim, desde logo: No entender da recorrente, afigura-se claro, no caso dos autos, que terá sido efectuada a prova exigida pelo n.º 3 do art. 134º do Código da Estrada: 'se as pessoas referidas no número anterior provarem que o condutor do veículo o utilizou abusivamente ou infringiu as ordens, as instruções ou os termos da autorização concedida, cessa a sua responsabilidade, sendo responsável, neste caso, o condutor.' - Cfr. AC. REL. COIMBRA de 28-4-99, in C.J., T. II, pág. 57. Porém, o acórdão da Relação de Guimarães não entendeu assim, ou seja, resulta deste acórdão: que aquele Tribunal recorrido, expressamente, considerou no acórdão proferido que, “no caso, todavia não ficou comprovado que o condutor, ao andar com o motociclo na via pública, estivesse a contrariar a autorização recebida para
“ir dar umas voltas no monte” . Tal não resulta da matéria tida por assente. O que resulta provado é mais exactamente que (2) O veículo é propriedade da arguida que o emprestou, na altura, ao seu filho, o referido Oscar, para este
'ir dar umas voltas no monte ' , e que (3) A arguida sabia que o veículo em causa não dispunha de seguro válido mas, não obstante, não cuidou de evitar que o mesmo circulasse na via pública. Não resultou por conseguinte provado que o condutor ao circular naquele local, o fizesse em contrário da autorização recebida de “ ir dar umas voltas no monte”. Assim: pelo teor do acórdão da Relação, acima transcrito, logo resulta inequívoco que a norma ora acusada de inconstitucional (a norma do artigo 134°, n° 3, do Código da Estrada) foi, na verdade, essencial na lógica decisória do aresto impugnado, contrariamente ao afirmado na decisão sumária objecto da presente reclamação. Isso porque, o aresto impugnado considerou, na verdade, que:
- “no caso, todavia não ficou comprovado que o condutor, ao andar com o motociclo na via pública, estivesse a contrariar autorização recebida para “ir dar umas voltas no monte”.”
- “ Não resultou por conseguinte provado que o condutor, ao circular naquele local, o fizesse em contrário da autorização recebida de “ir dar umas voltas no monte”.” Sendo, pois, claro que o aresto impugnado, aplicando a mencionada norma do Código da Estrada, valorou e decidiu a prova efectuada contra a recorrente, considerando que esta não logrou provar que o condutor, ao andar com o motociclo na via pública, estivesse a contrariar a autorização recebida para 'ir dar umas voltas no monte '. Posto o que, também claro resulta, salvo melhor opinião, que a norma em causa teve interferência na decisão da Relação de Guimarães. Sendo que, essa norma do artigo 134°, n° 3, do Código da Estrada está nitidamente interligada e conexionada com a do n° 2 desse artigo, igualmente aplicada nos autos. Nestes termos: No entender da recorrente, a norma constante do citado artigo 134º, n.º 3, do Código da Estrada é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da presunção da inocência do arguido consagrado no artigo 32°, n° 2 e n° 10
(aplicável aos processos de contra-ordenação) da Constituição da República Portuguesa.
Como referido de forma exemplar no douto AC.TC n.º 89/2000, de 10-02-2000 (Proc. n° 350/99 – 1ª Secção ), in BMJ 494 (2000), págs. 35-36, que parcialmente se transcreve:
'O princípio da presunção de inocência - todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação – cuja violação constituiu
motivo da recusa de aplicação da norma pelo tribunal a quo, aparece identificado, em matéria de prova, com o princípio in dubio pro reo (cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. 2º, pág. 47; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, págs. 40 a 42), que impõe que o julgador valore sempre em beneficio do arguido um non liquet (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1º, págs. 211 a 219; Rui Pinheiro e Artur Maurício, A Constituição e o Processo Penal, 2.ª ed., pág. 133). Assinala-se como conteúdo adequado do princípio presunção de inocência: a) Proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; b) Preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; c) Exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; d) Não incidência de custas sobre arguido não condenado; e) Proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; f) Proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pág. 203).(...) De acordo com este princípio, a dúvida sobre a existência de factos incriminatórios, cuja prova caiba ao Ministério Público, resolve-se a favor do réu, encontrando-se vedada ao legislador ordinário a possibilidade de legislar no sentido de inverter o ónus da prova em desfavor do réu, em última instância, este princípio identifica-se com (ou engloba) aqueloutro do in dubio pro reo, que impõe ao juiz a valoração sempre a favor do arguido de um non liquet em matéria de prova.” Sucedendo, precisamente, que: a norma do artigo 134°, n° 3, do Código da Estrada estabelece uma verdadeira inversão do ónus da prova ou, pelo menos, “indirectamente acaba por fazer recair sobre o arguido a prova da inexistência da culpa - a omissão de qualquer prova sobre este pressuposto essencial do juízo de censura penal volve-se contra arguido.” O que significa, por consequência, que, tal como sucede, aliás, no caso relatado no mencionado AC. TC n° 89/2000, de 10-02-2000, aquela norma estabelece uma verdadeira presunção de culpa, a qual, obviamente, contraria o princípio da presunção da inocência do arguido estabelecido no artigo 32.º n.ºs 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa. Cumprindo, assim, declarar a inconstitucionalidade de tal norma, com consequente reforma do douto aresto proferido pela Relação, em conformidade precisamente com tal julgamento de inconstitucionalidade . Pelo que, com a finalidade de apreciação efectiva da suscitada inconstitucionalidade, caberá ordenar o prosseguimento do presente recurso, decidindo conhecer-se do objecto deste recurso que expressamente se requer a V. Ex.as. Termos em que: Requer-se a este Venerando Tribunal Constitucional, em conferência, como previsto no artigo 78°-A, n° 3, da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, se digne admitir o presente recurso, conhecendo-se do seu objecto e prosseguindo-se os ulteriores.” O representante do Ministério Público neste Tribunal é de opinião de que a reclamação é manifestamente improcedente.
Vejamos: entendeu-se na decisão reclamada que o recurso não poderia prosseguir em virtude de a norma impugnada não ter sido aplicada na decisão sob recurso como sua ratio decidendi, conforme se impõe nos artigos 70º n. 1 alínea b) e
72º n. 2 da LTC. Através da presente reclamação, visa a recorrente demonstrar que a norma impugnada, ou seja, a do artigo 134º n. 3 do Código da Estrada, foi afinal aplicada na decisão recorrida, ou, pelo menos, conforme se diz na reclamação, “que terá sido efectuada a prova exigida pelo n.º 3 do art. 134º do Código da Estrada”.
Diz-se, por isso, que o aresto impugnado deu por certo que:
- “No caso, todavia, não ficou comprovado que o condutor, ao andar com o motociclo na via pública, estivesse a contrariar autorização recebida para ir dar umas voltas no monte.
- Não resultou por conseguinte provado que o condutor, ao circular naquele local, o fizesse em contrário da autorização recebida de ir dar umas voltas no monte.”
Conclui assim a reclamante ser bem claro que “o aresto impugnado, aplicando a mencionada norma do Código da Estrada, valorou e decidiu a prova efectuada contra a recorrente, considerando que esta não logrou provar que o condutor, ao andar com o motociclo na via pública, estivesse a contrariar a autorização recebida para ir dar umas voltas no monte.”
Ora bem, haverá que esclarecer o seguinte: a actividade de apreciação e valoração da prova feita no processo constitui tipicamente função jurisdicional que se concretiza na prolação de um veredicto; esta decisão, esta determinação jurídica, não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, pois que, nos casos previstos da citada alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, apenas lhe cumpre exercer uma fiscalização normativa. Devemos, portanto, arredar como objecto possível do presente recurso a decisão que, apreciando e valorando a prova produzida, deu como verificados determinados factos. E a verdade é que nessa decisão, isto é, na formação dessa decisão, não teve qualquer influência a norma impugnada: o Tribunal recorrido orientou-se por puros critérios de verosimilhança para determinar essa aquisição, sem que uma qualquer injunção normativa tivesse tido influência no resultado alcançado.
O que a recorrente pretende contestar é algo diverso, pois pretende impugnar a decisão que, sopesando estes factos e tendo em conta o regime jurídico aplicável, julgou a recorrente responsável pelo cometimento de uma determinada contra-ordenação (a prevista no artigo 131º n. 1 do Código da Estrada) e a condenou na coima que teve por adequada (270 euros). É certo que nessa decisão se ponderou a circunstância de a recorrente não haver provado um determinado facto; mas a norma que determinou a condenação da recorrente não foi, manifestamente, a que lhe permite fazer prova do facto que a desresponsabilizaria, mas sim a que impõe a condenação do proprietário do veículo pela prática da contra-ordenação.
Isto é: a ratio decidendi da decisão condenatória não radica na norma impugnada, mas na norma constante do n. 2 do mesmo preceito que determina que o proprietário do veículo, mesmo que não seja o seu condutor, é responsável pelas infracções relativas às disposições que condicionam a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas.
Foi este o julgamento que se deixou expresso na decisão reclamada, cuja bondade, aliás, a reclamação formulada sublinhou.
Quer isto dizer que, efectivamente, a norma impugnada não constituiu a razão de decidir da decisão recorrida e que, por essa razão, não pode conhecer-se do recurso, tal como se concluiu na decisão reclamada.
Nestes termos, o Tribunal decide manter essa decisão de não conhecimento do recurso.
Custas pela reclamante. Taxa de justiça: 20UC.
Lisboa,15 de Junho de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos