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Processo n.º 502/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 17 de Maio de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não julgar inconstitucional, na sequência dos Acórdãos n.ºs 497/97 e 237/2000, a norma do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e, consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso do acórdão da 2.ª Secção
(Contencioso Tributário) do Tribunal Central Administrativo, de 18 de Novembro de 2003, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro), que dispõe: «3 – Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente: (...) h) As gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal; (...)».
Segundo o recorrente (empregado de banca no casino de ------------, que auferiu, no ano de 2000, de «gratificações esportuladas pelos frequentadores da sala de jogo, como é prática corrente», o montante global de 3 733 200$00, sobre o qual foi liquidado imposto no valor de 559 980$00), tal norma viola «a extensão da lei de autorização, excedidos que foram os limites impostos no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, à luz da interpretação do artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, por violação dos artigos 115.º, n.º 2 (hoje, artigo 112.º, n.º 2), e 168.º, n.º 2 (hoje, artigo
165.º, n.º 2), da Constituição da República Portuguesa; o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa».
2. Como o próprio recorrente reconhece, a questão da conformidade constitucional da norma impugnada já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 497/97 (Diário da República, II Série, n.º 235, de 10 de Outubro de 1997, pág. 12 485; e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
37.º volume, pág. 73), que concluiu pela sua não inconstitucionalidade, quer orgânica, quer material, por não desrespeitar a extensão e o sentido da autorização legislativa ao abrigo da qual foi emitida e por não afrontar o princípio do Estado de direito democrático e o princípio tributário da igualdade. Essa orientação foi reiterada no Acórdão n.º 237/2000.
Tratando-se de questão já anteriormente decidida pelo Tribunal Constitucional, a mesma é de qualificar como «simples», o que possibilita a prolação de decisão sumária, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, sendo certo que não vêm invocados pelo recorrente argumentos suficientes para determinar a reponderação da anterior orientação, fixada em plenário do Tribunal Constitucional. Na verdade, o único argumento «novo», estribado na Lei Geral Tributária, surge como claramente improcedente: nunca uma pretensa alteração do direito ordinário seria idónea a gerar inconstitucionalidades supervenientes, como parece ser sustentado pelo recorrente.
3. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC:
a) Não julgar inconstitucional, na sequência dos Acórdãos n.ºs
497/97 e 237/2000, a norma do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-A/88, de 30 de Novembro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.”
1.2. A reclamação deduzida desenvolve a seguinte argumentação:
“1 – O recorrente, efectivamente, pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, por considerar que a mesma viola a extensão da lei de autorização, excedidos que foram os limites impostos no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro,
à luz da interpretação do artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, por violação dos artigos 115.º, n.º 2 (hoje, artigo 112.º, n.º 2), e 168.°, n.º 2
(hoje, artigo 165.°, n.º 2), da Constituição da República Portuguesa; o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa e o princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
2 – Salvo o devido respeito, entende-se não dever qualificar-se a questão em apreço como simples, não obstante a anterior apreciação constitucional.
3 – A anterior apreciação da constitucionalidade da norma, no que tange à eventual violação da extensão da lei de autorização, estribou-se na interpretação (consentida) de que as gorjetas podem ser consideradas rendimentos do trabalho, por o conceito de rendimento do trabalho, para efeitos fiscais, poder ser mais amplo que para quaisquer outros.
4 – Ou seja, a opção, nessa matéria, pela não inconstitucionalidade da norma tinha subjacente um sentido preciso dado à interpretação de um conceito, concretamente, o conceito de rendimento do trabalho. A norma não era inconstitucional na exacta medida em que era possível preencher tal conceito segundo determinado sentido.
5 – O que dizer se tal interpretação não for, hoje, consentida!
6 – Não se trata de uma alteração, muito menos pretensa, do direito ordinário geradora de uma inconstitucionalidade superveniente! Do que se trata
é de saber se se mantém válida a apreciação da não inconstitucionalidade de uma norma estribada numa argumentação toda ela assente numa interpretação dada a um conceito hoje não consentida.
7 – Não é, seguramente, simples tal matéria!
8 – Por sua vez, a anterior apreciação da constitucionalidade da norma, em sede de fiscalização abstracta, e decidida por voto de qualidade, não apreciou um argumento ora aduzido, consubstanciado na violação do princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação, consagrado no artigo
2.º da Constituição da República Portuguesa.
9 – A consideração das gorjetas, pela norma em apreço, por ficção, para efeitos tributários e a concomitante não consideração (não ficção) para os efeitos que os rendimentos do trabalho propiciam noutras sedes: fontes de cálculo para a reforma, indemnização por despedimento, etc., diferentemente do que ocorre com os demais trabalhadores – justificam a apreciação em concreto da norma impugnada.
10 – Na nossa modesta opinião, está-se perante matéria nova, questão anteriormente não decidida, que carece de aprofundada ponderação e análise.
11 – Mesmo a apreciação em concreto da eventual violação do princípio da igualdade não é despicienda face à anterior apreciação constitucional, atentas as vertentes da aplicabilidade prática e dos resultados a que tende a norma em questão.
12 – Entende-se, assim, não se acharem preenchidos os pressupostos necessários à prolação de uma decisão sumária, como a doutamente proferida.”
A entidade recorrida (Fazenda Pública), notificada desta reclamação, nada disse.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A reclamação do recorrente assenta em dois fundamentos: primeiro, o de que as anteriores decisões do Tribunal Constitucional tinham-se estribado numa interpretação da lei ordinária que então era consentida, mas que entretanto se tornou insustentável; e, em segundo lugar, que tais decisões não haviam apreciado um argumento agora inovatoriamente esgrimido: a violação do
“princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”.
Para apreciação da pertinência destas críticas, interessará começar por recordar a fundamentação expendida, a propósito da norma em causa, no Acórdão n.º 497/97 (infra, 2.1), para depois reproduzir os termos em que o recorrente colocou a questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido (infra, 2.2) e o modo como este lhe respondeu (infra, 2.3), para, por fim, apreciar a procedência desta reclamação (infra, 2.4).
2.1. O Acórdão n.º 497/97 alicerçou a sua decisão de não declarar a inconstitucionalidade da norma da alínea h) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS na seguinte argumentação:
“2 – A norma da alínea h) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS.
2.1. – O Provedor de Justiça entende, como se consignou no ponto III, que esta norma, respeitante à matéria colectável dos rendimentos da categoria A, ao considerar rendimentos do trabalho dependente as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal, terá:
a) ultrapassado os limites da lei de autorização legislativa – a Lei n.º 106/88 –, desse modo violando o n.º 2 do artigo 168.º da CRP;
b) ofendido, do mesmo passo, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, na medida em que a tributação dos rendimentos de semelhantes liberalidades «escapa a qualquer tipo de controle e de consequente incidência fiscal», apenas atingindo, «na prática», as gorjetas recebidas pelos empregados de banca dos casinos, tendo em conta o sistema vigente que as disciplina e controla.
Importa, por conseguinte, abordar cada um dos invocados fundamentos de per si.
2.2. – A dimensão inconstitucional por alegada inobservância da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 106/88 no tocante à extensão – CRP, n.º 2 do artigo 168.º.
Entende-se não ser de declarar a inconstitucionalidade da norma.
2.2.1. – As leis de autorização legislativa são constitucionalmente configuradas como actos-parâmetro, no sentido de que elas estabelecem os limites a que está vinculado o órgão delegado no exercício dos poderes legislativos concedidos por via da autorização. Como se ponderou no Acórdão n.º
806/93, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Janeiro de 1994, neste contexto, as referidas leis «compreendem quer uma vertente interna, no sentido de que contêm regulação sobre o procedimento legislativo a que vai proceder o Governo e à qual o Governo se encontra adstrito, quer uma vertente externa, pois que por imperativo constitucional a lei de autorização deve, ela própria, conter a extensão, sentido e alcance da legislação delegada. Nesta
última vertente, a lei de autorização contém, portanto, os elementos essenciais das alterações do ordenamento jurídico a que o Governo virá a proceder quando
(e se) usar os poderes nele assim delegados».
2.2.2. – A Lei n.º 106/88, nos termos da alínea a) do n.º 2 do seu artigo 4.º, autorizou o Governo a legislar, no âmbito da incidência objectiva do IRS, de modo a serem consideradas como rendimentos de trabalho dependente
«todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele equiparado».
Sendo a norma em sindicância emitida à luz dessa credencial, entende o Provedor de Justiça ter sido desrespeitada a extensão da autorização, por não ter sido intuito do legislador tributar rendimentos que não decorrem directamente de contrato de trabalho, ou outro a ele legalmente equiparado, sendo certo que as liberalidades atribuídas por terceiros não têm directamente em vista o pagamento de certo trabalho.
Já para o Primeiro-Ministro – e para além da questão de qualificação das gorjetas como liberalidades – nada impede que o legislador fiscal as considere como rendimentos de trabalho para efeitos de tributação, já que o conceito fiscal de rendimento do trabalho não tem que coincidir com o da legislação laboral, nem tal decorre do preceito que apenas admite subjazer à actividade dependente um título jurídico contratual ou um vínculo funcional relevante.
2.2.3. – A questão não é nova, uma vez que já no domínio do imposto profissional fora equacionada, tornando-se necessário fazer-lhe referência, ainda que brevemente.
Com efeito, na vigência do CIP, a alínea e) do § 2.º do artigo 1.º desse diploma foi aditada pelo Decreto-Lei n.º 138/78, de 12 de Junho, na sequência da autorização dada pela Lei n.º 20/78, de 26 de Abril [artigo 9.º, alíneas h) e k)].
Na altura, a Comissão Constitucional emitiu parecer no sentido da inconstitucionalidade da norma, «na parte em que, com violação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 106.º e alínea o) do artigo 167.º da Constituição, considera como rendimentos de trabalho, sujeitos a imposto profissional, as importâncias recebidas, a título de gratificação, ou gorjeta, pelos empregados por conta de outrem no exercício da sua actividade, quando atribuídos por entidade diversa da patronal»: cf. o Parecer n.º 3/79, de 1 de Dezembro de 1979
(publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, págs. 203 e seguintes), na origem da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, contida na Resolução n.º 62/79 do Conselho da Revolução, datada de 3 de Março (loc. cit., pág. 232).
Perante uma nova alínea e), próxima da anterior, aditada pelo Decreto-Lei n.º 297/79, de 17 de Agosto, a Comissão Constitucional voltou a pronunciar-se desfavoravelmente, mas agora por fundamentação diversa: não chegando a pronunciar-se sobre a questão de fundo, entendeu que o diploma de
1979 não tinha sido devidamente referendado, implicando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de todas as suas normas, o que mereceu acolhimento pelo Conselho da Revolução (cf. Parecer n.º 5/80, de 26 de Fevereiro, e Resolução n.º 116/80, de 25 de Março, in Pareceres cits., vol.
11.º, págs. 129 e seguintes).
Logo depois, no entanto, o Decreto-Lei n.º 183-D/80, de 9 de Junho, repôs em vigor a anterior alínea e), tendo em conta o disposto na alínea j) do artigo 17.º da Lei n.º 8-A/80, de 26 de Maio.
Agora, a Comissão Constitucional viria a tomar conhecimento da questão de fundo e a concluir, por unanimidade, pela conformidade constitucional da norma (cf. Parecer n.º 5/81, de 19 de Março, sancionado pela Resolução do aludido Conselho n.º 72/81, de 25 de Março, publicado nos Pareceres cits., vol. 14.º, págs. 309 e seguintes).
Partindo da análise dessa alínea j), que, relativamente ao imposto profissional, autorizou o Governo a «rever as regras de incidência do imposto por forma a abranger todos os rendimentos do trabalho ou com ele relacionados» e considerando que, ao aditar a alínea e) ao § 2.º do artigo 1.º do CIP, o Governo não excedeu a autorização legislativa que lhe foi concedida, a Comissão considerou estarem as gorjetas ou gratificações em causa sujeitas ao imposto profissional, sendo consideradas como rendimentos do trabalho por conta de outrem. Não obstante, reconheceu a inoperância da tributação do imposto sobre essas importâncias, seja por se entender que não se situam nos parâmetros conceituais do trabalho por conta de outrem, seja, porventura, pela impossibilidade prática de exequibilidade da sua tributação.
No entanto – mais se entendeu – não se mostram violados os n.ºs 2 e
3 do artigo 106.º e alínea o) do artigo 167.º da CRP (na versão à época vigente).
E ponderou-se a este propósito, na parte que interessa:
«Só assim não seria [ou seja, haveria então inconstitucionalidade] se se defendesse que as gorjetas em causa não podem ser consideradas rendimentos do trabalho ou com este relacionados.
Mas julgamos que uma tal posição não corresponde à verdade, sobretudo se tivermos em conta que o conceito de rendimentos do trabalho, para efeitos fiscais, é mais amplo que para quaisquer outros.
E parece que nada obsta a que as gorjetas sejam consideradas como rendimentos dessa natureza.
Quem as dá, dá-as por sua livre vontade, podendo os motivos para isso serem os mais variados possível. No caso concreto do jogo nos casinos, por exemplo, podemos admitir que as esportule aquele que foi feliz e em regozijo por isso; mas também as pode dar, ao invés, aquele que, perseguido pela pouca sorte, promete ali mesmo desistir e não voltar ao jogo.
Mas o que parece inegável é que há, aqui, sempre um carácter de contrapartida a qualquer coisa que veio da parte daquele que foi contemplado com a gorjeta, muito embora os serviços que a originam, e no que se refere
àquele que as dá, não constituam para ele fonte de quaisquer obrigações.»
2.2.4. – A lógica então desenvolvida partia de um quadro legal de tributação cedularmente concebido – enfatiza-se o que já se deixou aludido – em que cada categoria de rendimentos, ou cédula, se determina em função da sua origem ou natureza e é submetida a imposto próprio, com específicas regras de determinação da matéria colectável, orientando-se a respectiva técnica tributária, no imposto profissional, no sentido de sujeitar a imposto todos os ganhos ou proveitos dos contribuintes, mesmo os excepcionais ou que representem vantagens em espécie, incluindo os rendimentos acessórios (cf. Carlos Pamplona Corte-Real, «Curso de Direito Fiscal», in Ciência e Técnica Fiscal, n.º
268/270, págs. 198 e seguintes e 204 e seguintes, e «Imposto Único. Tipo de Imposto a Adoptar», in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 126, págs. 10 e seguintes; José Carlos Gomes dos Santos, «Alguns Efeitos Económicos da Tributação e da Inflação sobre os Rendimentos de Trabalho», in Cadernos cits., n.º 135, págs. 74 e seguintes e 91 e seguintes).
Ora, manteve-se com o IRS esta mesma orientação, no propósito de uma inclusão esgotante, na incidência do imposto, de todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho.
Este enquadramento desvaloriza o interesse em discutir se a gorjeta reveste ou não a natureza de doação, mormente remuneratória (de resto, o Código Civil diz-nos claramente, no n.º 2 do seu artigo 940.º, não haver doação nos donativos conformes aos usos sociais, como é o caso das gorjetas em questão). Na verdade, o sistema legal permitia, e continua a permitir, a determinação dos rendimentos auferidos e harmoniza-se com a teleologia do sistema fiscal, onde, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado, se contribui, do mesmo passo, para uma repartição igualitária dos rendimentos e da riqueza, prosseguida constitucionalmente, nos termos do n.º 1 do artigo 106.º da CRP.
Não subsiste, assim, a argumentação deduzida pelo Provedor de Justiça que, não obstante reconhecer no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares um «imposto geral sobre o rendimento», sustenta não serem as gorjetas subsumíveis aos rendimentos tipificados no artigo 1.º do respectivo Código.
Ou seja, não se considera que a tributação desses rendimentos seja susceptível de afectar os limites da extensão da autorização legislativa.
Os contornos da delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização têm sido objecto da jurisprudência deste Tribunal, que os vem definindo numa linha discursiva segundo a qual o objecto da autorização constitui o elemento enunciador da matéria sobre que a autorização versa, a extensão especifica a amplitude das leis autorizadas e pelo sentido se fixam os princípios bases que hão-de orientar o Governo na elaboração destas últimas
(cf., v. g., os Acórdãos n.ºs 70/92, 358/92 e 213/95).
Cabendo, assim, à extensão da autorização especificar os aspectos da disciplina jurídica da matéria objecto do exercício dos poderes delegados, não se tem esta por desrespeitada pela iniciativa do Governo, nomeadamente por exorbitar o programa e o conjunto de directrizes proposto pela autorização legislativa.
2.3. – A alegada inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
Entende-se não ser de declarar a inconstitucionalidade da norma.
2.3.1. – Para o Provedor da Justiça, como oportunamente se consignou, a tributação das gorjetas gera uma situação discriminatória susceptível de ofender o princípio da igualdade.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido o sentido constitucional da igualdade a partir da exigência de que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente. Ou seja, a diferenciação de tratamento, por si, não implica necessariamente violação do princípio, pois a igualdade relevante não é a meramente formal, mas também a material, impedindo-se, assim, a discriminação arbitrária e irrazoável, sem justificação e fundamento material bastante.
Na esteira de vasta e impressiva linha jurisprudencial, ponderou-se recentemente, no Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 1996), que, para haver violação do princípio constitucional da igualdade, torna-se necessário verificar, preliminarmente, se existe uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação. A esta luz, proíbem-se diferenciações de tratamento fundadas em razões meramente subjectivas – como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º da CRP – ou as que criem um tratamento desigual materialmente infundamentado ou sem justificação objectiva e racional.
Na sua projecção fiscal – constitucionalmente consubstanciada no artigo 106.º, n.º 1, da CRP –, as coordenadas do princípio não são diferentes. Como se observou no Acórdão n.º 57/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Abril de 1995), o princípio da igualdade fiscal apresenta uma tríplice dimensão, surgindo as duas primeiras dimensões como uma emanação do princípio geral da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da CRP:
«Em primeiro lugar [escreveu-se então], aquele princípio significa que todos os cidadãos são iguais perante a lei fiscal, de tal modo que todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação definida pela lei fiscal devem estar sujeitos a um mesmo regime fiscal (cf. Louis Trotabas/Jean-Marie Cottoret, Droit Fiscal, 6.ª ed., Paris, Dalloz, 1990, p. 108, e Guy Gest/Gilbert Tixier, Manuel de Droit Fiscal, 4.ª ed., Paris, L.G.D.J., 1986, p. 36). É este um sentido meramente formal do princípio da igualdade fiscal, o qual se traduz numa genérica e imparcial aplicação da lei fiscal, de que resulta apenas uma igualdade ante a lei. Em segundo lugar, o princípio da igualdade fiscal tem também um sentido material ou substancial, cujo significado é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos devem suportar idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos. Com este sentido, a igualdade é, como realça A. Castanheira Neves, “uma intenção normativa que a própria lei será chamada a cumprir, uma igualdade imposta como exigência axiológica à própria lei, no seu conteúdo e na sua realização jurídico-normativa, uma igualdade da lei já em si”, isto é, uma “igualdade na lei, ou afinal, [...] uma igualdade perante o direito”
(cf. O Instituto dos “Assentos” e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, p. 120). O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adopção de desigualdades de tratamento, no âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela Constituição ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos
[cf., sobre este ponto, J. Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões Acerca da sua Admissibilidade), Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 265-269].
Para além do princípio da igualdade fiscal, no sentido de igualdade dos cidadãos perante a lei fiscal e de igualdade da própria lei fiscal, consagra a Constituição, em terceiro lugar, aquilo que se poderá designar por princípio da igualdade através do sistema fiscal, determinando que este visa, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (artigo 106.º, n.º 1), e, bem assim, que o imposto sobre o rendimento pessoal tem como objectivo “a diminuição das desigualdades” entre os cidadãos (artigo 107.º, n.º
1).»
2.3.2. – Assim, o conteúdo material do Estado de direito democrático implica a consagração do princípio tributário da igualdade, desdobrável, no dizer do último autor citado, no aspecto da generalidade dos impostos e no aspecto da uniformidade dos impostos, o primeiro significando a adstrição de todos os cidadãos ao pagamento de impostos – o que caracteriza a sua universalidade –, o segundo implicando uma identidade de critérios para a sua repartição pelos cidadãos (cf. Casalta Nabais, ob. cit., págs. 268/269). Critério que, quase unanimemente, se entende significar «que os contribuintes com a mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)» (ibidem).
Ora, se é incontroverso existirem, no comum dos casos, dificuldades práticas no controlo de quem recebe gorjetas e dos respectivos montantes, ao invés do que é suposto acontecer com os trabalhadores ora em causa, nem por isso se justifica não tributar uma situação em que é possível, mercê do mecanismo legal existente, controlar os rendimentos auferidos por esta via, com projecção na capacidade contributiva dos respectivos destinatários. Dir-se-á, nesta perspectiva, que na medida em que é possível tributar essas fontes de rendimento, estar-se-á a reduzir a margem de desigualdade que a ausência de tributação implicaria em relação ao universo de todos os contribuintes.
A esta luz, a obrigatoriedade que impende sobre o contribuinte de declarar os seus rendimentos sujeitos a imposto não tem a virtualidade de impedir, de modo absoluto, a ocultação, deliberada ou negligente, desses rendimentos (mais notoriamente ainda ultrapassado que está o sistema das cédulas). Não pode falar-se de uma desigualdade constitucionalmente censurável se uns contribuintes se encontram circunstancialmente mais apertadamente controlados do que outros.
Assim, não se interpreta o princípio da igualdade em termos que se projectam na não tributação de alguém porque outrem, em situação de igual incidência, não é tributado por dificuldades técnicas de aplicação da lei.”
A orientação assim traçada pelo Acórdão n.º 497/97, votado em Plenário, foi posteriormente seguida pelo Acórdão n.º 237/2000, desta
2.ª Secção.
2.2. Nas alegações apresentadas perante o Tribunal Central Administrativo o recorrente, para sustentar a inconstitucionalidade da referida norma, desenvolveu a seguinte argumentação:
“A Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, autorizou o Governo a legislar no âmbito da incidência do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, de forma a considerar rendimentos do trabalho dependente: todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado.
Tendo por base tal autorização, o Governo preencheu (fiscalmente) o conceito de rendimentos do trabalho dependente, considerando, também, como tal, nos termos do artigo 2.°, n.º 3, alínea h), do Código do IRS, as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação de trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal.
Ora, uma gratificação é uma esportulação livre, decorrente da vontade de quem a dá, assumindo a natureza de mera liberalidade, sendo apenas, portanto, de natureza unilateral.
Caracteriza-se como uma liberalidade resultante da livre transmissão do património, conforme aos usos sociais.
São insusceptíveis, por isso, de integrar o conceito de retribuição
(proveniente do trabalho por conta de outrem) decorrente de uma relação de trabalho, a despeito de ser dada por causa dela.
E, como tal, também não podem enquadrar-se no conceito de contrato equiparado a contrato de trabalho, visto faltar-lhe a natureza bilateral e a dependência do trabalhador face à entidade esportulante.
As gratificações atribuídas por entidades que não a entidade patronal, em suma, não são remunerações, mas doações conformes aos usos sociais, não provêm de trabalho prestado por conta de outrem e não resultam, sequer, de qualquer contrato, pois são unilaterais.
Uma gratificação não atribuída pela entidade patronal não pode, pois, enquadrar-se numa remuneração prestada em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado.
Sendo assim manifesto que o legislador do Código do IRS excedeu o
âmbito da autorização que lhe fora concedida, no que tange à tributação de gratificações não atribuídas pela entidade patronal.
Ou seja, o legislador ordinário, ao tributar as gratificações não oriundas da entidade patronal, mais não fez do que criar um imposto não previsto na Lei de autorização, subsumindo a rendimento do trabalho dependente algo que não está nela directamente tipificado.
De todo o modo, acresce que, hoje, tal matéria não pode ser desligada do sentido informador vertido pelo artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, evidenciando, decisivamente, o desacerto da decisão sob recurso.
A lógica argumentativa em que assentou o douto entendimento da decisão parte da consideração de que os conceitos em direito fiscal podem ser mais amplos que nos outros ramos de direito.
Concretamente, entende ser defensável que as gratificações em causa podem ser consideradas rendimentos do trabalho, por o conceito de rendimento do trabalho, para efeitos fiscais, poder ser mais amplo que em quaisquer outros ramos do Direito, nomeadamente do que no ramo de onde emana.
Tal concepção, hoje, contudo, não é defensável, sendo mesmo repudiada pela lei. Os conceitos de direito, no âmbito fiscal, devem ser interpretados segundo o seu sentido de origem.
Quanto à interpretação das normas tributárias, plasma o n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária:
«2 – Sempre que, nas normas fiscais, se empregarem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.» (sublinhado nosso)
Concretamente, o conceito de «remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem» deve ser interpretado segundo o sentido, conteúdo e significado que lhe é dado pelo ramo do Direito do Trabalho.
Assim, a questão que hoje se coloca é saber se, à face da alínea a) do n.º 2 do artigo 4.° da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, são de considerar como rendimentos do trabalho dependente importâncias não atribuídas pelas respectivas entidades patronais, por tais conceitos, e, nomeadamente o conceito de gratificação, deverem ser interpretados segundo o sentido que lhes é dado pelo ramo do Direito do Trabalho, visto não decorrer outro (sentido) directamente da lei.
Ou seja, segundo o sentido que é dado pelo Direito do Trabalho, podem, hoje, incluir-se entre os rendimentos do trabalho os rendimentos provenientes de gratificações não atribuídas pelas respectivas entidades patronais?
Não temos quaisquer dúvidas que as gratificações desta natureza não se consubstanciam, sequer implicitamente, como remuneração do trabalho
(remuneração proveniente do trabalho por conta de outrem, ou seja, em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado), à face do sentido que lhe é dado pelo ramo próprio de que é originário – Direito do trabalho.
A douta decisão alinha o argumento, neste âmbito, que o n.º 2 do artigo 11.° da LGT não afecta os entendimentos já sufragados uma vez que, se outro argumento não houvesse, aquela norma é posterior à Lei n.º 106/88, lei de autorização legislativa com base na qual foi feito o CIRS ...
Ou seja, para o M.mo Juiz, as leis podem mudar ... mas as interpretações são as velhas ...
Importa ter presente, antes de mais, que o falado artigo 11.º, n.º
2, da LGT é uma norma interpretativa, como tal de aplicação retroactiva.
Depois, é hoje que temos de interpretar a lei, com um sentido actual, e, hoje, não se pode fazer de conta que não existe o artigo 11.° da LGT!
Assim, à luz da interpretação a que obriga a Lei Geral Tributária – artigo 11.º, n.º 2 – uma gratificação atribuída por uma entidade diferente da entidade patronal não está abrangida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 4.° da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro.
As regras obrigatórias contidas na Lei Geral Tributária quanto à hermenêutica jurídica fiscal permitem considerar, com segurança, que, hoje, senão já antes, estão extravasados os limites da referida Lei de autorização, tendo perdido actualidade a decisão de fiscalização abstracta, que, com voto de qualidade, fez vencimento no Tribunal Constitucional, visto ser resultado de uma interpretação hoje não consentida.
Do que se deve concluir que o artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do IRS é organicamente inconstitucional, e, paralelamente, materialmente inconstitucional por ter sido desrespeitada a extensão da Lei de autorização, excedendo os limites materiais impostos no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, por violação dos artigos 115.º, n.º 2 (hoje
112.°, n.º 2), e 168.°, n.º 2 (hoje 165.°, n.º 2), da Constituição da República Portuguesa, ao tempo em vigor, normas que, igualmente, se acham violadas pela decisão em recurso.
Por sua vez, ampliada a matéria de facto, no sentido precedentemente exposto, tem-se por seguro ser de considerar inconstitucional a tributação contida no artigo 2.°, n.º 3, alínea h), do Código do IRS, por violação do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa.
A tributalidade das gratificações não atribuídas pelas entidades patronais visou unicamente os empregados dos casinos!
Os quais têm as gratificações de tal natureza administrativamente controladas.
Incontroverso é, também, que se atinge na prática apenas tal classe de trabalhadores.
Ora, nos termos do artigo 13.° da Constituição, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
Significa tal princípio que a lei, para além da exigência de generalidade a abstracção, deve ter ínsita uma verdadeira realidade de facto nos resultados a que conduz.
O princípio da igualdade impõe, portanto, que a lei seja aplicável a todos os que se encontram na sua previsão, mas também que ela seja aplicada de forma igual, e, ab initio, seja passível dessa aplicação.
Por isso, não se tem por preenchido o princípio da igualdade unicamente com o cumprimento formal da sua generalidade e abstracção.
Ora, o legislador, ao criar tal tipo de incidência real, sabia de antemão que tais rendimentos não eram susceptíveis de conhecimento, nem passíveis de conhecimento, senão a uma única classe de trabalhadores: os de banca dos casinos, que têm gratificações administrativamente controladas!
Assim sendo, é inquestionável que os teóricos potenciais destinatários de tal norma de incidência real são iguais perante a realidade, mas desiguais perante a lei.
Tal norma é, assim, na prática, individual e concreta.
Não passa de uma lei individual camuflada... sob a capa da generalidade e abstracção.
E não se argumente com o enunciado linguístico geral e abstracto que a lei reveste, regulando um número indeterminado de casos, decorrendo a aplicação prática da mesma a uma única classe de trabalhadores por dificuldades de controlo e fiscalização da administração!
Tal entendimento integra-se numa concepção positivista, para quem o direito é, apenas, a norma jurídica!
O jurista, ao aplicar a lei, limitar-se-ia ao silogismo jurídico, com total indiferença pelas conclusões ou resultados daí advindos.
Esta atitude perante a lei em que só seria admissível na sua aplicação a interpretação gramatical ou literal do seu texto é característica das sociedades primitivas, mas é hoje absolutamente indefensável.
O Código Civil, que, quanto à interpretação da lei, contém normas aplicáveis a todos os ramos de direito, repele semelhante entendimento.
Por outro lado, é evidente que existe uma diferenciação que se estriba não em qualquer diferente capacidade contributiva mas por haver alguns que têm gratificações controladas e, portanto, passíveis de serem conhecidas.
A verdade é que é por haver alguns com gratificações controladas, que, obviamente, terão diferente capacidade contributiva dos que não recebem gratificações, mas a mesma, que são todos os demais, dos que não as tem controladas e, por isso, não são tributados, que a norma encontra a sua razão de ser e de existência!
Ninguém tem dúvidas que se não houvesse gratificações controladas, e, portanto, fossem insusceptíveis de conhecimento para todos os cidadãos, a norma nunca teria existido!
Ora, tal situação – controlo de gratificações por uma única classe de trabalhadores – constitui uma gritante diferença de tratamento real e jurídico.
Estribando-se numa diferenciação absolutamente arbitrária, assente num critério subjectivo e discriminatório.
Subjectivo e discriminatório porque, por um lado, não se elegeu como ratio para a emanação da norma obrigar a um tratamento igual todos os que se encontram em situação de facto iguais (recebimento de gratificações), já que se sabia tal ser impossível para todos os que não tinham gratificações controladas, por outro lado, ao invés, já que se sabia, desde o momento da génese da norma, que tal só tinha guarida numa classe de trabalhadores.
E não se argumente com o princípio da capacidade contributiva, já que este não pode contender com outros valores e princípios relativos à igualdade, como a discriminação quanto aos resultados de um grupo de cidadãos.
Andou, pois, mal a douta decisão sob recurso ao não considerar o artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do IRS materialmente inconstitucional por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.° da CRP, o qual se aplica directamente por força da Constituição.
A norma vinda de referir é ainda inconstitucional por violar o princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação, o qual é um dos pilares essenciais do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.° da CRP, sendo matéria sobre a qual, diga-se, o Tribunal Constitucional nunca foi chamado a pronunciar-se!
Tal princípio impõe que a legislação no seu conjunto deva ser recondutível a uma ideia de justiça.
As gratificações vindas de referir são consideradas pela norma em questão, por ficção, para efeitos tributários, rendimentos do trabalho.
Mas são absolutamente irrelevantes para efeitos de segurança social, de indemnização por acidente de trabalho e fonte directa de indemnização por despedimento. Ou seja, para esse efeito, não são remuneração do trabalho!
Em suma, para concretização de direitos fundamentais.
Para o M.mo Juiz, a inconstitucionalidade ocorreria se o IRS apenas incidisse sobre rendimentos do trabalho!
Ou seja, como uma gratificação é considerada rendimento do trabalho para pagar IRS, mas já não para efeitos de cálculo de reforma, não é inconstitucional a norma que o prevê porque o IRS também tributa os rendimentos do capital!
Depois não se percebe como é que a gratificação em causa, nesta matéria, não é remuneração do trabalho, na inconstitucionalidade orgânica, era rendimento do trabalho!
Depois, argumenta-se que, a demonstrá-lo está o facto de o legislador fiscal considerar outro género de rendimentos, tais como subsídios de refeição, ajudas de custo, importâncias auferidas pela utilização de automóvel, quando excedam os limites legais, entre outros, como rendimentos do trabalho dependente para efeitos de tributação, e esquece-se que a questão é mesmo essa!
A inconstitucionalidade, gritante, reside nisso!
Os subsídios de refeição, as ajudas de custo, as importâncias auferidas pela utilização de automóvel, quando excedam os limites legais, são passíveis de IRS e são passíveis de efeitos relativos à segurança social, concretamente, são fonte de cálculo para efeitos de reforma!
Quando não excedem os limites, não são nem para uma coisa nem outra!
E não se chegue ao absurdo de o negar com o argumento de poderem ser passíveis de efeitos sociais. Aliás, a circunstância de serem passíveis e não o serem de facto, ainda mais acentua a violação a tal princípio.
Ou seja, o Estado desinteressou-se e desinteressa-se das gratificações para efeitos que poderiam ser favoráveis aos trabalhadores, interessando-se por elas no caso de desfavorecimento. Considera remuneração para pagar imposto, mas deixa de ser remuneração para o cálculo da reforma paga pelo mesmo Estado; para receber subsídio de desemprego; para o cálculo da indemnização devida por despedimento ilícito, etc., etc.
Aliás, os trabalhadores aceitam que se tribute se, paralelamente, as suas prestações pelas baixas e as suas reformas reflectirem o valor de tal remuneração!
Agora o que se não entende é que um tribunal esteja colocado na posição de defender a injustiça que dimana da discrepância do Estado!
Ora, impunha-se, para salvaguarda do princípio da justiça do sistema, que o legislador (Estado) se interessasse pelas gratificações ou gorjetas para todos os efeitos ou se desinteressasse delas mas também para todos os efeitos.
Contudo, nenhuma destas posturas foi adoptada.
E a contradição é tanto mais evidente quando, no caso dos trabalhadores de banca dos casinos, os únicos visados na prática pela tributação das gorjetas, por decisão ministerial podem ser (mas nunca foram) consideradas para efeitos de segurança social.
E não se diga que a violação de tal princípio ocorre com a omissão de legislação sobre a consideração dos aspectos favoráveis aos trabalhadores, porque ao legislador impunha-se, se não queria ver violado tal princípio, legislar desde logo em ambos os sentidos.
Ora, a verdade é que a situação de injustiça, e, portanto, de violação do princípio da justiça, só aparece com a criação da tributação, sendo que, portanto, é a norma que a faz nascer que deve ser tida como causa da injustiça e, por isso, como materialmente inconstitucional.
Daí que a alínea h) do n.º 3 do artigo 2.° do CIRS seja materialmente inconstitucional, por violar o princípio da justiça do sistema, consagrado no artigo 2.° da CRP, pelo que também andou mal nessa parte a decisão ora em crise.
A douta sentença recorrida, considerando como boa a liquidação oportunamente impugnada e julgando improcedente a impugnação, violou, assim, os artigos 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, artigo
11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, artigos 115.º, n.º 2, e 168.º, n.º 2, ao tempo em vigor, e artigos 13.° e 2.°, todos da Constituição da República Portuguesa.”
2.3. O acórdão recorrido, entendendo que “o discurso jurídico da sentença analisou e refutou convincentemente os argumentos aduzidos pelo recorrente na petição inicial da impugnação, sendo que as alegações de recurso reproduzem estes argumentos e não aduzem outros que infirmem o decidido” e porque “se concorda com tudo o que decidiu a sentença recorrida, bem como com a respectiva fundamentação”, confirmou “inteiramente a decisão, limitando-se este TCA, nos termos dos artigos 713.º, n.º 5, 749.º e 762.º, n.º 1, do CPC, a negar provimento ao recurso e a remeter para os fundamentos da decisão impugnada”.
Há, pois, que buscar na sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, de 6 de Março de 2003, os fundamentos da rejeição da tese da inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente. Aí se expendeu, a esse propósito, o seguinte:
“Em suma, invoca o impugnante a inconstitucionalidade da alínea h) do n.° 3 do artigo 2.° do CIRS porquanto enferma de inconstitucionalidade orgânica, por falta de lei de autorização legislativa, dado que face à redacção do n.° 2 do artigo 11.° da LGT, as gratificações auferidas pelos funcionários dos casinos não se enquadram dentro do conceito de retribuição do trabalho por conta de outrem referido na alínea a) do n.° 2 do artigo 4.° do CIRS.
Mais alega que a tributação daquelas gratificações enferma de inconstitucionalidade material, por violação do princípio de igualdade, consagrado no artigo 13.° da CRP, e violação do princípio de justiça do sistema, por não serem considerados rendimentos do trabalho para efeitos de segurança social, indemnização por acidente de trabalho ou por despedimento.
No que concerne à inconstitucionalidade orgânica, já foi a questão suficientemente debatida na Jurisprudência, pelo que é inútil estarmos aqui a discorrer mais sobre o assunto.
Veja-se Acórdão do Tribunal Constitucional, de 9 de Julho de 1997, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de 1997, pág. 12
485 e seguintes.
A redacção do n.° 2 do artigo 11.º da LGT não afecta os entendimentos já sufragados, uma vez que, se outro argumento não houvesse, aquela norma é posterior à Lei n.º 106/88, lei de autorização legislativa com base na qual foi feito o CIRS, pelo que, de modo algum, poderiam os conceitos insertos na mesma quanto à interpretação das normas vir influenciar a interpretação de uma lei bastante anterior e que se esgotou com a realização do CIRS.
Pelo que é argumento insuficiente para alterar o entendimento que tem vindo a ser sufragado pela Jurisprudência.
Sobre a questão da inconstitucionalidade orgânica, cita-se o Acórdão do STA, de 3 de Fevereiro de 1999, publicado na Colectânea de Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Central Administrativo, ano II, n.°
2, pág. 205:
«A matéria foi já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, em consequência do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, feito pelo Provedor de Justiça nos processos acima identificados, tendo-se aí concluído, após abundante e sólida fundamentação, que a norma em causa não havia extravasado o sentido da lei de autorização.
Esta é a conclusão a que, também, essencialmente pelas mesmas razões, chega este Supremo.
O artigo 4.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.º 106/88 autorizou o Governo a legislar, no âmbito da incidência objectiva do IRS, de modo a serem consideradas como rendimentos de trabalho dependente “todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado, quer por servidores do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele equiparado”.
No uso desta autorização, emitiu o legislador do CIRS, entre outras, a norma da alínea h) do n.° 3 do artigo 2.° do CIRS, nos termos da qual se consideram rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de “gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal”.
A indagação da questão de saber se este preceito extravasou ou não a autorização legislativa concedida passa, antes de mais, pela análise da natureza deste tipo de leis, tal qual é revelada pelos elementos que a caracterizam.
Ora, a este respeito pode afirmar-se, usando as palavras do Tribunal Constitucional, que “as leis de autorização são constitucionalmente configuradas como actos-parâmetro, no sentido de que elas estabelecem os limites a que está vinculado o órgão delegado no exercício dos poderes legislativos concedidos por via da autorização”.
(...) Tem-se, pois, por seguro que a normação estabelecida pelo citado preceito do CIRS se contém dentro das balizas de conformação que lhe foram estabelecidas pelo citado artigo 4.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.°
106/88.»
Quanto á questão da inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade, tal como com a anterior, existe também bastante jurisprudência sobre a matéria, entendendo-se que não enferma a alínea h) do n.° 3 do artigo 2.° do CIRS desta.
Sobre esta matéria veja o que a respeito se diz no citado Acórdão do STA:
«Finalmente, existe ainda outra significação do princípio da igualdade fiscal que corresponde a uma exigência axiológica própria do Estado de direito – a da prossecução da igualdade através do sistema fiscal: o que este princípio obriga aqui é que o sistema fiscal, no seu todo, seja estruturado de modo a cumprirem-se os objectivos da Constituição fiscal do Estado de Direito de propiciar a “justa repartição dos rendimentos e da riqueza” (n.º 1 do artigo
106.º – redacção ao tempo) e a “diminuição das desigualdades dos cidadãos” (n.°
1 do artigo 107.º).
Ora, entendido o princípio da igualdade nos termos atrás enunciados, constata-se que a tributação de tais fontes de rendimento não só se explica porquanto esta espécie de rendimentos não tem menos potencialidade de satisfação das necessidades individuais ou colectivas do que a de outros provindos de outra origem, como até se impõe por reduzir “a margem de desigualdade que a ausência dessa tributação implicaria em relação ao universo de todos os contribuintes”.»
Finalmente resta-nos a alegada inconstitucionalidade material por violação do princípio da justiça do sistema.
A este respeito, sustenta o impugnante que, se para efeitos de indemnizações por acidente de trabalho, indemnização por despedimento, segurança social e outras, as gratificações recebidas pelos funcionários dos casinos não são consideradas rendimento do trabalho, também não o podem ser para efeitos de tributação.
Desenvolvendo toda uma argumentação sobre esta matéria como se o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares incidisse apenas sobre os rendimentos do trabalho.
Toda a argumentação do impugnante faria sentido se assim fosse.
Caso o IRS incidisse apenas sobre rendimentos do trabalho dependente, então, estaríamos manifestamente a violar aquele princípio se se considerassem as gratificações como rendimento do trabalho apenas para tributação e já não para outros efeitos.
Contudo, assim não é.
O IRS incide sobre vários rendimentos oriundos uns e outros não do rendimento do trabalho.
O facto de o legislador ter englobado «as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal» nos rendimentos da categoria A, considerando-o rendimento do trabalho dependente, não o transforma numa remuneração de trabalho dependente nem tão-pouco o elenco do artigo 2.° do CIRS se limita à remuneração do trabalho dependente.
A demonstrá-lo está o facto de o legislador fiscal considerar outro género de rendimentos, tais como subsídios de refeição, ajudas de custo, importâncias auferidas pela utilização de automóvel, quando excedam os limites legais, entre outros, como rendimentos do trabalho dependente para efeitos de tributação.
Não há assim qualquer violação do «princípio da justiça do sistema» em tributar estas situações, englobando-a na categoria dos rendimentos do trabalho, sem que lhe seja dado o tratamento de rendimento do trabalho para outros efeitos.
Aliás, se esse fosse o caso, o legislador poderia sempre incluir este género de rendimentos noutra categoria de rendimentos sem que por isso ficasse impossibilitado de os incluir nas normas de incidência.
Finalmente, a pretexto do elemento literal, o artigo 2.°, n.° 3, do CIRS diz «consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente», não diz que são rendimentos do trabalho dependente, pelo que sempre poderíamos concluir que o legislador tentou incluir naquela categoria aqueles rendimentos que têm alguma afinidade com o trabalho por conta de outrem, independentemente de serem ou não remuneração por esse trabalho e abrangendo um universo superior ao conceito estrito de remuneração do trabalho por conta de outrem.
Pelo que, também, com base na violação do princípio da justiça do sistema invocado pelo impugnante não se pode concluir que a alínea h) do n.° 3 do artigo 2.° do CIRS é inconstitucional.
No sentido de que o preceito em questão – alínea h) do n.º 3 do artigo 2.° do CIRS – não enferma de inconstitucionalidade material ou orgânica, vejam-se ainda os Acórdãos do STA, de 21 de Abril de 1999, proc. n.º 23 118, de
19 de Maio de 1999, proc. n.º 23 195, de 19 de Maio de 1999, proc. n.º 23 204, de 9 de Fevereiro de 2000, proc. n.º 23 489, e de 22 de Março de 2000, proc. n.º
24 529, todos consultados em www.dgsi.pt.”
2.4. Recordadas a fundamentação do Acórdão n.º 497/97, as objecções suscitadas pelo recorrente nas alegações do recurso para o Tribunal Central Administrativo e a resposta por este dada, é tempo de apreciar as críticas dirigidas à decisão sumária ora reclamada. Como inicialmente se referiu, estas críticas assentam em dois argumentos: (i) o de que as anteriores decisões do Tribunal Constitucional tinham-se estribado numa interpretação da lei ordinária que então era consentida, mas que entretanto se tornou insustentável; e (ii) o de que tais decisões não haviam apreciado um argumento agora inovatoriamente esgrimido: a violação do “princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”.
O primeiro argumento é claramente improcedente: a questão da inconstitucionalidade de norma contida em decreto-lei autorizado por extravasamento da extensão definida na correspondente autorização legislativa há-de ser apreciada e decidida atendendo às opções e concepções jurídicas, constitucionais e legais, dominantes à data da emissão do decreto-lei autorizado. Se então se entendia – entendimento que o próprio recorrente reconhece ser “consentido” no contexto jurídico da época – que “o conceito de rendimentos do trabalho, para efeitos fiscais, é mais amplo que para quaisquer outros”, nada obstando que “as gorjetas sejam consideradas como rendimentos desta natureza”, como se explicitou no Acórdão n.º 497/97 – e que, portanto, a norma do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do CIRC, ao considerar “rendimento do trabalho dependente”, integrante dos rendimentos da categoria A sujeitos a IRS,
“as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal”, não desbordou a extensão da autorização legislativa, que credenciara o Governo para o regular o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, incidindo, designadamente, sobre “rendimentos do trabalho dependente”, como tal se considerando “todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado” –, não se pode sustentar a ocorrência de uma inconstitucionalidade orgânica superveniente com base em ulterior alteração do direito ordinário (a saber: a publicação da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, cujo artigo 11.º, n.º 2, veio dispor que “Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”), de que derivaria, na tese do recorrente, ter deixado de ser possível atribuir, para efeitos fiscais, um sentido ao conceito de “rendimentos do trabalho dependente” diverso do que é adoptado em direito laboral.
Também o segundo argumento invocado pelo recorrente surge como improcedente. Mesmo que se pudesse extrair do artigo 2.º da CRP o
“princípio da justiça do sistema ou justiça sistemática da legislação” e conferir-lhe a extensão que o recorrente lhe assinala, sempre seria discutível saber se o modo de restabelecer a “justiça do sistema” passa necessariamente pela desconsideração das gorjetas como rendimento de trabalho para efeitos fiscais, ou antes pela imposição da relevância desses abonos para os efeitos indemnizatórios e previdenciais referidos pelo recorrente. De qualquer forma – e decisivamente –, a noção de remuneração de trabalho é consabidamente de estrutura complexa, nela se incluindo prestações de variada natureza: pecuniárias e em espécie, retribuição-base (ordenado ou salário), diuturnidades, diversas gratificações e prémios (subsídios de férias e de Natal, prémio ou gratificação de assiduidade), aditivos (subsídios por trabalho extraordinário, complementar, nocturno, por turnos, em dias de descanso ou em feriados, por isenção de horário de trabalho, subsídios de risco e de isolamento), comissões, abonos para falhas, subsídios de refeição, direitos a uso de cartões de crédito e de automóveis, créditos de combustíveis, etc.. Ora, nenhuma violação ao invocado princípio da justiça do sistema resulta de nem todos estes elementos terem a mesma relevância jurídica para todos os efeitos. Por exemplo, para o cálculo das indemnizações devidas por despedimento ilícito ou por rescisão com justa causa pelo trabalhador apenas relevam a retribuição base e diuturnidades (artigos 439.º, n.º 1, e 443.º, n.º 1 do Código do Trabalho), para a determinação das indemnizações por acidentes de trabalho só relevam as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios
(artigo 300.º, n.º 1, do Código do Trabalho), etc.. Assim, nada impede, na perspectiva da constitucionalidade material, que se considere justificada a opção do legislador de, ao delimitar os rendimentos das pessoas singulares sujeitos a imposto, neles inserir as gorjetas – que são obviamente rendimentos – e que as considere conexionadas com a prestação de trabalho, embora não se trate de prestações obrigatórias directamente a cargo da entidade empregadora, sem que daí derive a imposição de o legislador, por força do invocado princípio da justiça do sistema, ter de tratar sempre, para todos e quaisquer efeitos, tais prestações como remuneração de trabalho subordinado.
Assim sendo, e não se mostrando abalados os fundamentos da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta questão, improcede a pretensão do recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 3, alínea h), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro; e, consequentemente,
b) Indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2004
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos