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Processo n.º 161/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal de Trabalho de Lisboa, A. intentou, em Agosto de 2000, contra banco B., acção emergente de contrato individual de trabalho, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe uma pensão de reforma, conforme o estabelecido no Contrato Constitutivo do Fundo de Pensões da Sucursal do Banco do B. em Portugal e na Cláusula 137ª do Acordo Colectivo de Trabalho para o Sector Bancário, invocando que o Réu incluiu, no acordo de cessação do contrato de trabalho e passagem da Autora à situação de reforma antecipada, como referência para o cálculo da pensão, um valor da retribuição que é inferior ao legal.
Na petição inicial, lê-se, entre o mais:
“[...]
5º. [...] no dia 6 de Setembro de 1999 A. e R. celebraram [um] acordo de cessação de contrato de trabalho e passagem da A. à situação de reforma nos termos do doc. que se junta – Doc. 2.
6º. tendo, por isso, o contrato de trabalho que ligava a A. ao R. cessado em
10.09.99 como se vê da cláusula terceira.
7º. Na cláusula segunda n.º 5 alínea b) ficou estipulado:
«Será atribuída à segunda outorgante, a A., uma pensão calculada de acordo com o estabelecido no Contrato Constitutivo do Fundo de Pensões da Sucursal do Banco B.».
[...]
17º. O R. diz à A. que a sua pensão é calculada nos termos do mencionado Contrato Constitutivo do Fundo de Pensões e quando procede à forma de cálculo distorce deliberadamente o que acordara. Na verdade,
18º. A sua pensão passou a ser de Esc. 300.280$00 = 297.500$00 x 86,9% +
41.750$00 em vez de 297.500$00 x 100% + 41.750$00.
19º. E após o 28º mês, essa pensão seria de 233.060$00 = 297.500$00 x 86,9% x
74% + 41.750$00.
20º. Esta atitude do R. mereceu do C. Pensões a tomada de posição crítica conforme doc. que se junta – Doc. n.º 5.
21º. A interpretação que o C. Pensões fez no doc. 5 era a que a A. havia reconhecido e aceite.
22º. E, por isso, havia assinado, em boa fé, o doc. n.º 2.
23º. Já que o mesmo remetia para a forma de cálculo da pensão de reforma prevista no Plano Constitutivo.
[...].”
Por sentença de 8 de Março de 2002 (fls. 126 e seguintes), foi a acção julgada procedente e a Ré condenada a pagar à Autora uma pensão de reforma no valor de 100% da retribuição do nível 12 do pessoal no activo no Banco Réu, acrescida do valor correspondente a diuturnidades, em determinados termos, estabelecidos pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa, sendo as prestações vencidas e vincendas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde o respectivo vencimento até integral pagamento.
Desta sentença foi interposto recurso pelo B..
2. Por acórdão de 7 de Maio de 2003, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso (fls. 195 e seguintes).
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...] Não nos merece, pois, censura a apreciação efectuada pela Srª Juíza quando conclui que a A. assinou o Acordo em erro, determinado e mantido pelo R., ao não a informar da alteração do critério de cálculo ocorrido entre o início da negociação e a apresentação do acordo para assinatura, não devendo ignorar como a forma de cálculo da pensão era essencial para a aceitação da passagem à reforma pela trabalhadora. Não foram, pois, violados os arts. 247°, 253° e 254° do CC. Também não procede o invocado abuso de direito da A. ao vir invocar o erro e a consequente anulabilidade do acordo. Já vimos que a A. não tinha razão quando invocou a nulidade do acordo por alegada violação da cl.ª 137ª do ACTV, visto esta cl.ª, conjugada com o anexo VI, não ter o conteúdo que a A. lhe atribuía. Mas tinha razão quando invocou a anulabilidade do acordo por erro, visto tê-lo assinado convencida de que a fórmula de cálculo nele contida era a que tinha sido adoptada na passagem à reforma dos trabalhadores do R. até então reformados e que lhe tinha sido proposta no início da negociação. Embora possa ter havido da parte da A. alguma leviandade e falta de cuidado na conferência do documento antes de o assinar, isso não basta para que se considere abuso de direito a invocação da anulabilidade, pois as regras da boa fé exigiam que o R., mudando o critério de cálculo no decurso da negociação, esclarecesse a outra parte dessa alteração, sem tibiezas. Ao não o fazer, alimentou o erro da A. quanto ao conteúdo do acordo [itálico aditado agora]. Por fim o R. imputa à sentença violação do art. 292° do CC, mas também sem razão. Não era à A, mas à R. que competia demonstrar que não teria concluído o acordo sem a cláusula 2. 5 b) nos moldes que dele consta (com a aplicação da percentagem 86,9% à retribuição do nível 12 vigente no Banco). Tampouco se pode deduzir do próprio título que, prevendo a anulabilidade o Banco quisesse o acordo mas sem o conteúdo da cl.ª 2. 5 f), tanto mais que não se provou que esta cláusula tivesse qualquer conexão com a mudança da forma de cálculo de 100% para
86,9% da retribuição do nível. Improcedem, assim, na totalidade, os fundamentos do recurso.
[...].”
Inconformado com este acórdão, o B. dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 208). Nas alegações que apresentou
(fls. 216 e seguintes), não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade.
3. Por acórdão de 20 de Janeiro de 2004 (fls. 265 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista ao recorrente, invocando, para o que agora importa, os seguintes fundamentos:
“[...]
[...] a responsabilidade por culpa na formação dos contrato pode considerar-se genericamente abrangida pelo artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, que impõe às partes o dever de agir segundo as regras da boa fé quando negoceia os preliminares e o conteúdo do contrato (SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, 1989, pág. 376). De entre os grupos de casos de responsabilidade por culpa na formação dos contratos, conta-se o da celebração de um contrato não correspondente às expectativas devido ao fornecimento pelo parceiro negocial de informações erradas ou à omissão do esclarecimento devido (idem, pág. 355).
É, à partida, o princípio da boa fé, na sua aplicação à fase pré-negocial, que impõe os deveres de esclarecimento, de revelação ou comunicação. A exigibilidade da prestação espontânea da informação, por efeito da aplicação desse princípio,
é, por outro lado, aferida em função de diversos factores: o grau de necessidade de protecção social e individual; o carácter duradouro da relação contratual e o nível de confiança que normalmente deverá existir entre as partes; a relevância de que a informação poderá revestir-se para o declarante para concretizar ou frustrar o negócio projectado; o desnível de informação existente entre as partes (idem, págs. 358 e segs). Não poderá deixar de reconhecer-se que todos estes critérios têm aplicação no
âmbito de uma relação laboral, e, sobretudo, quando o que está em causa é o interesse da entidade patronal, por conveniência própria em reduzir os respectivos quadros de pessoal, em obter um acordo de cessação do contrato de trabalho e a passagem do trabalhador à situação de reforma de um seu trabalhador. A entidade patronal estava vinculada, segundo os princípios do comércio jurídico, e, em particular, as exigências da boa fé na preparação do contrato, a esclarecer a trabalhadora sobre os novos critérios do cálculo da pensão da reforma, mormente quando estes envolvem uma redução do montante a auferir, o que, normalmente, constituirá um elemento da maior relevância para o interessado formar conscientemente a sua vontade de aceitar a extinção do contrato de trabalho. E, face às regras de experiência comum, poderá também facilmente compreender-se que a falta de completo esclarecimento acerca das condições do acordo poderá induzir em erro o parceiro negocial, quando se constate que o acordo prevê critérios de cálculo da pensão que contrariam a prática anteriormente estabelecida pela instituição bancária. Neste contexto, é indiferente, como bem se entende, que o acordo se encontre redigido em termos claros e não suscite quaisquer dúvidas de interpretação para um declaratário normal, porquanto a conduta ilícita que é imputada à parte releva na fase pré-negocial e, portanto, em momento anterior a própria formalização do negócio. Desde que se reconheça que, segundo os enunciados princípios do comércio jurídico, e mormente com base no disposto no citado artigo 227°, n.º 1, do Código Civil, existe uma obrigação autónoma de prestação de informações, a violação desse dever tanto poderá justificar a reparação do dano no quadro da responsabilidade civil, como consubstanciar a prática de uma conduta dolosa, segundo a concepção do dolo omissivo, para efeito de determinar a anulação do negócio (idem, pág. 377-378, em especial, nota 122). Conforme escreveu MOTA PINTO, a propósito das condições de relevância do dolo como motivo de anulação, «o principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (art. 254º, n.º 1), ao qual acresce a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do negócio (art. 227º). Ao contrário do que é possível acontecer nos casos de erro, quando este for culposo, não há, no dolo, responsabilidade do declarante (deceptus), pois este é vítima e não autor de um comportamento contrário às regras da boa fé». E, como logo acrescenta, «a responsabilidade do autor do dolo é uma responsabilidade pelo dano da confiança ou interesse contratual negativo. Em suma: o deceptus tem o direito de repristinação da situação anterior ao negócio e à cobertura dos danos que sofreu por ter confiado no negócio e não teria sofrido sem essa confiança» (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra, 1996, pág. 521). Na sugestiva expressão de SINDE MONTEIRO, a teoria [d]a responsabilidade pré-contratual, baseada na violação do princípio da boa fé, «constitui uma espécie de prevenção contra os vícios de consentimento» (idem, pág. 376), pelo que a constatação da violação de um dever de informação, quando exigível segundo aquelas regras, é por si determinante da existência do dolo.
É, neste plano, inteiramente irrelevante que o acordo celebrado entre as partes, no caso em apreço, tivesse previsto uma compensação patrimonial para o trabalhador mediante o pagamento de uma reforma adicional que se destinava a repor, em parte, a perda resultante da diminuição do valor da pensão a pagar pelo Fundo de Pensões. O que está em causa é o dano de confiança, e não uma qualquer pretensão indemnizatória por responsabilidade pré-contratual, e é esse dano de confiança que justifica a anulação do contrato.
6. Concluindo-se como se conclui, não tem qualquer relevo discutir a possível existência de um erro na declaração nos termos e para os efeitos previstos no artigo 247° do Código Civil. A sentença de primeira instância, confirmada pela Relação, considerou «estarem verificados os requisitos da anulabilidade, por erro da autora determinado e mantido por dolo da ré». Ou seja, o fundamento da anulação do contrato, e que justificou a procedência da acção, é o erro do autor da declaração induzido pela conduta dolosa praticada pela ré, e não o erro na declaração enquanto vício de consentimento. É certo que o erro na declaração poderia constituir uma fonte autónoma da anulabilidade do negócio, desde que se verificassem os requisitos previstos na mencionada disposição do artigo 247°; todavia, não foi esse o motivo determinante da decisão recorrida, e, por conseguinte, não pode considerar-se verificada a pretensa violação desse dispositivo, nem essa averiguação tem qualquer utilidade em instância de recurso.
[...].”
4. O B. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 278 e seguintes), ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Setembro, para apreciação da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, no sentido de que dele “emerge, no caso em apreço nos autos, uma «obrigação autónoma de prestar informações», cuja violação, no entender do mesmo Tribunal, consubstancia «a prática de uma conduta dolosa, segundo a concepção do dolo omissivo, para efeito de determinar a anulação do negócio», nos termos dos art.ºs 253º e 254º do Código Civil”, por entender que tal interpretação “é contrária à CRP, designadamente ao direito de iniciativa económica privada e aos princípios da liberdade contratual ou da liberdade negocial incluídos no art.º 61º, n.º 1, e 86º da CRP, ao direito de propriedade privada previsto no art.º 62º, n.º 1, da CRP, e ao princípio da igualdade previsto no art.º 13º da CRP”.
No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o recorrente justificou assim a não invocação da questão de inconstitucionalidade durante o processo:
“[...]
7. Quer na decisão proferida em 1ª Instância, quer no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nunca o art.º 227°, n.° 1, do Código Civil foi utilizado, directa ou indirectamente explícita ou implicitamente, para fundamentar de Direito as decisões. Efectivamente,
8. O dever legal de informação ou de esclarecimento, requisito fundamental para fazer operar a anulação do negócio por erro induzido por dolo negativo ou omissivo, foi justificado na decisão proferida em 1ª instância com base nos art.°s 18° e 19°, al. a), do Decreto-Lei n.° 49.408, de 24 de Novembro de 1969, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho. Ora,
9. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão recorrido, é que, de forma inequívoca, vem admitir que nenhum dever de informação resultava directamente da lei, pondo em causa e afastando o pretenso dever de informação emergente dos art.°s 18° e 19°, al. a), do Decreto-Lei n.° 49.408, de 24 de Novembro de 1969.
10. O Supremo Tribunal de Justiça, com total novidade e sem que tal fosse razoavelmente esperado ou previsível, porquanto nunca tal normativo havia sido referenciado nos autos, nem sequer nos articulados das partes, é que pela primeira vez vem fundamentar o dever de informação a cargo do Recorrente no art°
227°, n.° 1, do Código Civil.
11. O Recorrente apenas teve conhecimento da aludida fundamentação de Direito baseada no art° 227°, n° 1, do Código Civil ao ser notificado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o que contrariou frontalmente as suas expectativas e a sua estratégia processual.
12. Saliente-se que nem sequer os princípios jurídicos previstos no art° 227°, n.° 1, do Código Civil, designadamente o princípio da boa fé na sua aplicação pré-negocial, foram alguma vez previamente utilizados nos autos.
13. Em síntese a estatuição do art° 227°, n.° 1, do Código Civil, cuja constitucionalidade, na interpretação dada pelo Tribunal a quo, o Recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, apenas foi dada a conhecer ao Recorrente com a notificação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
[...].”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 294.
5. Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o recorrente formulou as seguintes conclusões (fls. 300 e seguintes):
“[...]
1. O presente recurso vai interposto do douto Acórdão do STJ, de 20 de Janeiro de 2004, nos termos do qual o tribunal a quo considerou que o artigo 227º, n.º
1, do Código Civil, impunha ao ora Recorrente um especial dever de informação.
2. O Acórdão Recorrido considerou – e bem (!) – que no caso em análise não existia, para o ora Recorrente, uma qualquer obrigação de informar que resultasse directamente da lei, do contrato de trabalho ou das concepções dominantes do comércio, à luz do preceituado pelo artigo 253º, n.º 2, do Código Civil.
3. Contudo, o Acórdão Recorrido veio a julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida, considerando que, numa fase pré-contratual, pendia sob o ora Recorrente uma obrigação autónoma e acrescida de prestação de informações, nos termos do disposto pelo artigo 227º, n.º 1, do Código Civil.
4. Nestes termos, o Acórdão Recorrido veio sustentar que a conduta do Recorrente consubstancia uma actuação dolosa, segundo a concepção do dolo omissivo, passível de determinar a anulação do negócio, nos termos do disposto pelo artigo
227º, n.º 1, do Código Civil.
5. O ora Recorrente considera que a interpretação efectuada pelo Acórdão Recorrido, no que concerne ao artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, é contrária à Constituição da República Portuguesa, designadamente ao direito de iniciativa económica privada e aos princípios da liberdade contratual ou da liberdade negocial incluídos no artigo 61º, n.º 1, e 86º, e ao princípio da igualdade previsto no artigo 13º, todos da Constituição da República Portuguesa.
6. O Acórdão Recorrido efectua, de facto, uma restrição ao direito do Recorrente
à iniciativa privada, na sua vertente de liberdade contratual, em prol de interesses subjectivos e com o intuito de aplacar um trabalhador, a Recorrente, que, ao celebrar o acordo de cessação de contrato de trabalho, claramente não actuou com a diligência requerida.
7. Sustenta o Recorrente que as únicas restrições aos direitos fundamentais, constitucionalmente permitidas, são aquelas que resultam da própria Lei Fundamental ou de lei ordinária que expressamente limite ou condicione o exercício de tais direitos.
8. Fora do âmbito destas situações, e em caso de conflito de direitos fundamentais, apenas a ponderação dos bens jurídicos constitucionalmente protegidos, dentro de parâmetros de proporcionalidade, igualdade e necessidade e sempre considerando o núcleo essencial dos direitos em conflito, poderá determinar a restrição de um direito fundamental.
9. O ora Recorrente entende que, por aplicação destes critérios, deverá o Acórdão Recorrido ser declarado inconstitucional, na parte que interpreta o artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, assim considerando que, numa fase pré-contratual, sob o Recorrente impende um especial dever de informação. Efectivamente,
10. A restrição assim efectuada ao direito fundamental do Recorrente não é proporcional, porquanto o Acórdão Recorrido excedeu largamente a protecção constitucional e legalmente conferida à Recorrida/trabalhador, fazendo-o à custa do ilegítimo sacrifício do direito fundamental que assiste ao Recorrente. De facto (i) a Recorrida foi devida e atempadamente elucidada dos termos de cálculo da sua pensão, por escrito em documento por esta, a final, assinado, sem qualquer reserva ou ressalva, e ainda (ii) o leque de direitos fundamentais dos trabalhadores não confere à Recorrida o estatuto de parte incapaz de negociar e concluir negócios ou compreender o conteúdo dessa negociação ou negócio.
11. Tal restrição também viola o núcleo essencial dos direitos fundamentais, comprimindo de forma insensata o direito de iniciativa privada do Recorrente, no que respeita à liberdade de conformar e dirigir as negociações tendentes à celebração de contratos com terceiros, expandindo ilegitimamente o núcleo dos direitos atribuídos aos trabalhadores.
12. Viola, igualmente, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando uma decisão arbitrária e discriminatória, porquanto (i) efectua uma diferenciação injustificável, à luz dos preceitos constitucionais, e inadmissível de tratamento entre as partes contraentes, Recorrente e Recorrida; e ainda (ii) efectua um juízo de valor baseado unicamente no estatuto social das partes. Termos em que [...] deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser declarada a inconstitucionalidade do Douto Acórdão Recorrido, fundada na interpretação que o mesmo faz do artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, nos termos dos artigos 69º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional [...]. Em consequência, deverá ainda ser ordenada a baixa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça a fim de que este reforme o Douto Acórdão Recorrido em conformidade, expurgando-o da inconstitucionalidade de que padece, nos termos do disposto pelo n.º 2 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional, e, a final, julgue improcedente a acção intentada, absolvendo o Recorrente do pedido”.
[...].”
Por sua vez, a recorrida A. concluiu assim as alegações respectivas
(fls. 333 e seguintes):
“[...]
1. Não deve ser conhecido do recurso, porquanto: a) O princípio da boa fé nos contratos a que se refere o art. 227º do Código Civil na sua componente do dever de informar, ainda que com outro enquadramento normativo, já vinha sendo discutido desde a 1ª instância, não constituindo, pois, questão nova; b) Não pode, pois, o banco alegar que desconhecia a questão; c) Por isso, não pode o recurso ser sequer admitido.
2. Quando assim se não entenda, deve o recurso ser julgado improcedente pois: a) A matéria de facto dada como provada e definitivamente assente – e de que se não pode fazer tábua rasa – não pode dar lugar à absolvição do Recorrente julgando-se a acção improcedente como se pretende; b) Por outro lado, nenhuma norma constitucional o acórdão do STJ violou designadamente o princípio da liberdade económica privada, o princípio da proporcionalidade e o princípio da igualdade; c) A vingar a tese do Recorrente, estaríamos numa situação de claro abuso de direito, o que é inadmissível.”
6. Tendo em conta a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pela recorrida, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar, querendo (despacho de fls. 343).
O recorrente respondeu através do requerimento de fls. 345 e seguintes, concluindo que “deverá a questão prévia suscitada pela recorrida ser considerada improcedente, por ilegal, nos termos do disposto pelo artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional [...] e, em consequência, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, logo, ser declarada a inconstitucionalidade do Douto Acórdão Recorrido, fundada na interpretação que o mesmo faz do artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, nos termos dos artigos 69º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional. Em consequência, deverá ainda ser ordenada a baixa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça a fim de que este reforme o Douto Acórdão Recorrido em conformidade, expurgando-o da inconstitucionalidade de que padece, nos termos do disposto pelo n.º 2 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional, e, a final, julgue improcedente a acção intentada, absolvendo o Recorrente do pedido”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
7. Pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 227º, n.º 1, do Código Civil, no sentido de que dele “emerge, no caso em apreço nos autos, uma «obrigação autónoma de prestar informações», cuja violação, no entender do mesmo Tribunal, consubstancia «a prática de uma conduta dolosa, segundo a concepção do dolo omissivo, para efeito de determinar a anulação do negócio», nos termos dos art.ºs 253º e 254º do Código Civil”
(supra, 4.).
O Tribunal Constitucional pacificamente tem entendido que, no âmbito do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente –, tanto podem ser apreciadas normas, em si mesmas consideradas, como normas, numa determinada vertente interpretativa. Assim sendo, quando o recorrente pretende a apreciação de uma norma, numa certa interpretação, aparentemente nenhum obstáculo existiria ao conhecimento de tal objecto do recurso.
Sucede porém, que, no presente caso, o recorrente efectivamente não pretende a apreciação da conformidade constitucional de uma norma, em certa dimensão interpretativa. Pretende, sim, a apreciação da conformidade constitucional de uma decisão judicial: concretamente, daquela que, confirmando as decisões proferidas pelas instâncias, condenou o Réu, ora recorrente, por violação do princípio da boa fé na celebração do acordo de cessação do contrato de trabalho, a pagar à Autora uma pensão de reforma no valor de 100% da retribuição do nível 12 do pessoal no activo no Banco Réu, acrescida do valor correspondente a diuturnidades e a juros, nos termos estabelecidos pela sentença do Tribunal de Trabalho de Lisboa.
Na verdade – ao pretender a apreciação da norma do artigo 227º, n.º
1, do Código Civil, interpretada no sentido de que dele “emerge, no caso em apreço nos autos, uma «obrigação autónoma de prestar informações», cuja violação, no entender do mesmo Tribunal, consubstancia «a prática de uma conduta dolosa, segundo a concepção do dolo omissivo, para efeito de determinar a anulação do negócio», nos termos dos art.ºs 253º e 254º do Código Civil” –, o recorrente mais não faz do que solicitar ao Tribunal Constitucional que se pronuncie sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em que se decidiu que
“a entidade patronal estava vinculada, segundo os princípios do comércio jurídico, e, em particular, as exigências da boa fé na preparação do contrato, a esclarecer a trabalhadora sobre os novos critérios do cálculo da pensão da reforma, mormente quando estes envolvem uma redução do montante a auferir, o que, normalmente, constituirá um elemento da maior relevância para o interessado formar conscientemente a sua vontade de aceitar a extinção do contrato de trabalho”.
Não é, em suma, uma interpretação normativa que o recorrente questiona, mas o modo de preenchimento de uma cláusula geral – a cláusula de boa fé – pelo tribunal recorrido.
Sobre problema semelhante, colocado a propósito da cláusula geral de abuso do direito, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 655/99
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 64, de 16 de Março de 2000, p.
5099 e seguintes):
“Trata-se, pois, de uma cláusula geral a que apenas se recorre, numa clara atitude valorativa e constitutiva, em face da hipótese concreta, recebendo, de acordo com o padrão valorativo a seguir, concretizações diversas no caso, mediante a decisão do juiz [...].
[...]
[...] o que se defende na melhor doutrina é que esse juízo sobre a existência de abuso do direito nem sequer se coloca no plano da legalidade – veja-se Castanheira Neves, Questão-de-facto/Questão-de-Direito ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) I- A Crise, Coimbra, 1967, pág. 528: «sendo deste modo o problema do ‘abuso do direito’ um problema metodológico-normativo de realização (ou de ‘aplicação’) concreta do direito, e não um problema dogmático da determinação do conteúdo jurídico positum (na lei)», chegando a afirmar a «necessária independência do problema (e da solução) do ‘abuso do direito’ relativamente às determinações legais que o visem» (págs. 528-529), uma vez que um tal problema se põe da mesma forma quer existam, quer não existam normas como as do artigo 334º do nosso Código Civil.
[...] Em suma: «o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto [...] entre a norma e a solução concreta: como tal não depende da lei», para o dizer como Menezes Cordeiro (ob. cit. [Da boa fé no direito civil, vol. I, Coimbra,
1984], pág. 872) o diz da concepção de Castanheira Neves – sobre o abuso do direito, veja-se ainda Adriano Vaz Serra, «Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)», Boletim do Ministério da Justiça, nº 85. Ou, como prefere aquele civilista de Lisboa, o abuso do direito é o produto de uma
«aspiração cultural de integração sistemática», «quando ela actue no espaço não-funcional interno dos direitos subjectivos» (A. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 885). E mesmo defendendo-se uma concepção do abuso de direito segundo a qual o que está nele em causa é – não o controlo de uma actuação contra legem
(contra o direito objectivo, portanto), ainda que por um critério valorativo, mas antes – a relação entre as imagens estrutural e funcional do direito subjectivo (no sentido em que a actuação do direito subjectivo não corresponde ao poder de autodeterminação que lhe serve de fundamento – assim, Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil – Sumários, cit., págs. 54-77; cfr. também as referências de António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, pág. 733-4, n. 1648), não deixará o juízo sobre tal relação de remeter para a singular decisão do caso concreto. Seja como for, é certo que o juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito, concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e, para a concepção dominante, segundo um determinado critério valorativo), é destituído do sentido normativo, com independência da sua decisão concretizadora, necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal – confinado que está este, em sede de recurso de constitucionalidade, às funções de controlo de constitucionalidade normativa. Acrescendo a isso ser manifesto, no caso, que o que os recorrentes questionavam era realmente a forma como as instâncias aplicaram o direito infra-constitucional, sendo certo que também isso não cabe a este Tribunal aferir (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 21/87, 339/87 e 279/92, publicados no Diário da República, II série, de 31 de Março de 1987, de 19 de Setembro de 1987 e de 23 de Novembro de 1992, respectivamente). Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso, [...] no que diz respeito à aplicação do artigo 334º do Código Civil na decisão recorrida.
[...].”.
Também no caso destes autos se conclui, pelas razões apontadas, que o recorrente questiona, não uma norma, mas o modo como as instâncias aplicaram o direito infra-constitucional e, assim, a decisão proferida no processo, que lhe foi desfavorável.
Isto mesmo decorre, aliás, claramente do teor das alegações apresentadas neste Tribunal (cfr. supra, 5.), em que o recorrente conclui a pedir que seja “declarada a inconstitucionalidade do Douto Acórdão Recorrido” e que seja ordenada a reforma “do Douto Acórdão Recorrido, expurgando-o da inconstitucionalidade de que padece” (cfr. igualmente o requerimento em que o recorrente responde à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pela recorrida, fls. 345 e seguintes, supra, 6.).
Ora, não tendo o Tribunal Constitucional poderes para apreciar a conformidade constitucional das decisões judiciais em si mesmas consideradas
(cfr. as várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), não pode conhecer-se do objecto do presente recurso.
8. A isto acresce que, ainda que se considerasse ser idóneo o objecto do presente recurso, outra razão haveria para dele não se conhecer.
É que o recorrente não suscitou, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada por este Tribunal, sendo certo que, contrariamente ao que pretende demonstrar (supra, 4. e 5.), não poderia considerar-se o recorrente dispensado do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, tendo em conta as circunstâncias do processo e considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Com efeito – e para além de poder dizer-se, com a recorrida, que “o princípio da boa fé, na sua componente do dever de informar, já vinha sendo discutido desde a 1ª instância, não constituindo, pois, questão nova” –, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 7 de Maio de 2003, através do qual negou provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente da sentença da 1ª instância (fls. 195 e seguintes, supra, 2.), inequivocamente afirmou que “as regras da boa fé exigiam que o R., mudando o critério de cálculo no decurso da negociação, esclarecesse a outra parte dessa alteração, sem tibiezas”.
A disposição geral do direito privado português que impõe deveres de informação (de esclarecimento, segundo a terminologia do acórdão) no decurso das negociações é indubitavelmente o artigo 227º do Código Civil. Embora sem ter sido mencionada na passagem do acórdão agora transcrita, essa norma foi implicitamente tida em conta na fundamentação da decisão.
Por isso, se pretendia impugnar, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, tal fundamentação, o recorrente teve oportunidade de o fazer nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Não o tendo feito, não pode dar-se por cumprido o ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Assim sendo, e ainda que pudesse considerar-se que o recorrente pretende a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa, não poderia este Tribunal conhecer de tal questão, por não estar preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso: a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade que vem submeter ao julgamento deste Tribunal.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa,15 de Julho de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida