Imprimir acórdão
Proc. 476/04
1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam em conferência na 1ª secção do Tribunal Constitucional
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira recorre para o Tribunal Constitucional do despacho que, desaplicando por inconstitucional o n. 1 do artigo 336º do Código de Processo Penal (ou, na redacção dada pela Lei 59/98 de 25 de Agosto, o n. 3 do artigo 335º do mesmo diploma), decretou, com fundamento em prescrição, a extinção do procedimento criminal contra o arguido, anteriormente declarado contumaz.
Porém, ainda no Tribunal de Albufeira, o recurso não foi admitido por despacho do seguinte teor:
Dispõe o artigo 70°, n° 5, da Lei do Tribunal Constitucional que não é admissível “recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual”. Ora, no presente caso, a verdade é que, nos termos do artigo 446°, do Código de Processo Penal, caberá ao Ministério Público recorrer obrigatoriamente da decisão proferida nos autos, por ter sido proferida contra o Acórdão do STJ n°
10/2000. Apesar de o artigo 446° do Código de Processo Penal estar inserido no título II do livro IX do Código de Processo Penal (referente aos recursos extraordinários), a verdade é que, como tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência Constitucional (v.g. Acórdãos 323/01, de 4/07/2001, da 1ª Secção do Tribunal Constitucional; Ac. 93/02, de 26/02/2002, da 2ª Secção do Tribunal Constitucional; e 281/01, de 26/06/2001 e 282/01 de 26/06/2001 da 3ª Secção do Tribunal Constitucional), haverá que, previamente, recorrer dentro da ordem dos Tribunais Judiciais, nos termos do citado artigo 446°. Assim, pelo exposto, não se admite o recurso interposto a fls. 359.
É contra este despacho que reclama o Magistrado recorrente, invocando o disposto nos artigos 70º n. 1 alínea a) e 76º n. 4 da Lei do Tribunal Constitucional.
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional sustenta, no entanto, a improcedência da reclamação, pois tem prevalecido o entendimento de que o recurso ordinário obrigatório previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal goza de prioridade sobre o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Cumpre decidir.
Na parte que interessa agora reter, a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira afirma o seguinte:
[...] É certo que o arguido foi declarado contumaz. No entanto, em face da redacção dos artigos 119º e 120º do Código Penal de 1982, vigente à data da prática do crime, tal acto não tinha qualquer valor interruptivo ou suspensivo do prazo prescricional. Como se depreende pelo exposto, não se perfilha o entendimento expresso no Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, n.º 10/2000, que fixou jurisprudência no sentido de que “no domínio da vigência do Código Penal de
1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal” (DR, I Série-A, de 10/11/2000). [...]
É, assim patente que o despacho em causa afastou a aplicação do n. 1 do artigo
336º do Código de Processo Penal (ou, na redacção dada pela Lei 59/98 de 25 de Agosto, o n. 3 do artigo 335º do mesmo diploma) – norma de que decorre a suspensão do prazo prescricional no entendimento expresso no Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, n.º 10/2000 – que fixou jurisprudência no sentido de que “no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal” (DR, I Série-A, de 10/11/2000).
Caberia, pois, ao Ministério Público intentar o recurso (obrigatório) previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal.
Mas a questão a que, aqui, urge dar resposta consiste em saber se o recurso relativo à inconstitucionalidade tem ou não precedência sobre aquele outro; e, nessa matéria, este Tribunal tem mantido o entendimento que perfilhou no Acórdão
281/01 de 26JUN2001. Ali se diz o seguinte:
[...] 4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70º citado, “não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual”. Ora no presente recurso a decisão recorrida, afastando a aplicação do assento n.º 10/00 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 446º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público. Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (no sentido de que é interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70º da Lei n.º 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas als. b) e f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente. Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário. Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito. A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto. Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 80º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal. [...]
Perfilhando totalmente a doutrina deste acórdão, cumpre concluir que o despacho reclamado não merece censura.
Lisboa, 5 de Maio de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos