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Processo n.º 600/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso, supra identificados em que é recorrente A., com os sinais dos autos e recorrida a Santa Casa da Misericórdia de
---------, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão de fls. 562 e segs. do Supremo Tribunal de Justiça, dizendo no requerimento de interposição de recurso:
“O recorrente nas suas peças processuais invocou a inconstitucionalidade orgânica e material do Regulamento Geral das Apostas Mútuas, Portaria nº 1328/98, de 31 de Dezembro, mais concretamente do seu artº
12º na sua interpretação segundo a qual a microfilmagem dos boletins é única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas; na medida em que confrontou esta norma com o Decreto-Lei nº 84/85, de 28 de Março, mais concretamente, com o artigo 5º nº 4
“Do bilhete [...] ou tratando-se de totoloto, o concurso ou número de concurso por que é válido”.
A questão que se coloca é saber:
Uma norma regulamentar pode excluir todo e qualquer boletim de concurso só porque não foi microfilmada e, consequentemente, toda e qualquer responsabilidade da R. não obstante o boletim ser válido e autenticado (artigo
5º nº 4 do Decreto de Lei nº 84/85)?
Entende o recorrente que, tal como o Tribunal interpretou esta questão, aliás à qual não deu qualquer relevo por defender que não tinha interesse a questão da inconstitucionalidade orgânica e material, violou: Princípio da Hierarquização das Fontes de Direito (artº 120º da CRP); Princípio do Estado de Direito (artº 2º da CRP) e Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva (artº 20º da CRP).
Deste modo deverá ser apreciada a inconstitucionalidade orgânica e material do Regulamento Geral das Apostas Mútuas que foi invocada em todas as peças processuais da ora recorrente.”.
O recurso foi admitido no STJ, o que não vincula este Tribunal nos termos do artigo 76º nº 3 da LTC, e os autos remetidos ao Tribunal Constitucional.
Cumpre decidir.
2 – Não obstante o que se refere nas últimas três linhas do requerimento de interposição de recurso – pretensão de apreciação da inconstitucionalidade do Regulamento Geral das Apostas Mútuas – a verdade é que, nos termos em que o recorrente coloca a questão de constitucionalidade, apenas o artigo 12º do citado Regulamento estará em causa, na interpretação que diz ter sido acolhida segundo a qual “a microfilmagem é única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas”.
Sobre esta questão, efectivamente suscitada pelo recorrente nas suas alegações de recurso para o STJ, o acórdão ora impugnado diz, no seu trecho final, o seguinte:
“Tudo isto retira interesse à questão da inconstitucionalidade orgânica e material do artº 12º do Regulamento Geral das Apostas Mútuas, Portaria 1328/98, de 31/12, na interpretação segundo a qual a micro-filmagem dos boletins é a única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas.
Mas sempre se dirá (...)”
Não captou o recorrente o sentido desta 'falta de interesse' na apreciação da referida questão de constitucionalidade, ainda que não deixe de a assinalar no requerimento de interposição de recurso.
O 'desinteresse' da resolução da questão tinha no acórdão recorrido uma justificação óbvia: quando ele é afirmado já o insucesso do recurso estava decidido com outros fundamentos que não passavam pela aplicação do citado artigo
12º do dito Regulamento. E, por isso, a resolução da questão de constitucionalidade não assumia qualquer relevância.
Mas isto faz-nos situar no quadro dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, em particular no que concerne à aplicação da norma cuja constitucionalidade se questiona como ratio decidendi da decisão judicial impugnada.
Ora, no caso, impõe-se reconhecer que a norma em causa não foi aplicada como fundamento da negação da revista.
Vejamos por quê.
O recorrente intentou contra a Santa Casa da Misericórdia de
--------- acção para condenação da Ré no pagamento do prémio que lhe corresponderia no concurso nº 42/96 do Totoloto, acrescido de juros, e que lhe não foi pago porque a matriz com o prognóstico certo não foi presente, devendo sê-lo, a escrutínio.
A acção foi julgada improcedente, tendo o Autor interposto recurso de apelação que, por acórdão da Relação de Coimbra, o julgou improcedente.
De novo inconformado, o Autor interpôs recurso de revista para o STJ de que resultou o acórdão ora impugnado.
Neste aresto, começou por se sintetizar os fundamentos do recurso:
- Constituir prova plena de que o Autor concorreu validamente ao concurso nº 42/96 a autenticação do bilhete (matriz e recibo) realizada na máquina registadora do agente autorizado:
- Não poder basear-se o erro de marcação do número do concurso na inalterabilidade do número dos boletins, por se ter demonstrado em relatório técnico junto aos autos que não é inalterável esse número:
- Ser, por isso responsável, nos termos do artigo 800º do Código Civil a Santa Casa da Misericórdia de ---------, perante o recorrente, pelo pagamento do correspondente prémio;
- Ser orgânica e materialmente inconstitucional o artigo 12º do Regulamento Geral das Apostas Mútuas, na interpretação segundo a qual a microfilmagem é a única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas.
Elencou, depois, o acórdão os factos dados como provados e definiu o regime jurídico do concurso de Totoloto, de acordo com o disposto no Decreto-Lei nº 84/85 e Portaria 1328/93, bem como o dos agentes, “mandatários dos concorrentes” e que, “nessa qualidade, asseguram as ligações com o Departamento de Jogos da Ré, actuando com autonomia e responsabilidade, sem que haja qualquer relação de serviço entre eles e aquele departamento”, acentuando, ainda, que, nos termos do artigo 3º da citada Portaria, as irregularidades por eles cometidas no exercício das suas funções e quaisquer danos daí resultantes, nomeadamente a não participação nos concursos de matrizes dos bilhetes por eles realizados, não podem ser imputados ao mesmo departamento.
Afrontando, depois, o primeiro fundamento do recurso que se traduzia na alegação de que a autenticação do bilhete, feita pelo agente (autenticação que consistia na inscrição no bilhete do número da agência, de um número sequencial de registo, de um dígito referenciando a máquina e do número da semana do concurso) era prova irrefutável – salvo arguição e prova de falsidade, que não fora feita - de ter concorrido ao concurso nº 42/96, coincidindo uma das apostas feitas pelo Autor com a chave premiada nesse concurso, escreveu-se no aresto:
'Só que, está provado, o agente que recebeu a aposta e a autenticou, nos termos do dito Regulamento, não a fez seguir no conjunto das apostas referentes ao concurso nº 42/96, aquele que ficou registado no boletim em causa e isso porque, também está provado, o registo (registo mecanográfico), na parte referente ao número do concurso, saiu errado, por avaria da máquina registadora, visto que, por qualquer motivo não justificado, a máquina fez saltar o registo do número do concurso, e não só no boletim entregue pelo recorrente, mas também no de alguns dos concorrentes que se lhe seguiram e o antecederam na semana de participação no concurso n.º 43/96.'
E logo a seguir salienta o acórdão:
'No dia em que a aposta foi entregue nesta agência, já tinha terminado o concurso n.º 42/96, até já tinham sido publicados os respectivos resultados, estando a correr o prazo para a entrega das apostas relativas ao concurso n.º 43/96.' (sublinhado nosso).
Para o aresto, tal como se decidira na Relação, a autenticação não tem valor de documento autêntico - ela visa apenas o controlo, segurança e transparência do concurso - o que leva, nomeadamente, à inalterabilidade da matriz depois de autenticada.
Esta também a razão por que o acórdão entende que, no caso (o agente havia rectificado manualmente o número do concurso quando se apercebeu da avaria da máquina, alterando o n.º do concurso de 42/96 para 43/96), nem sequer a matriz poderia valer para este último concurso.
Evidencia-se, depois, o facto de o boletim só ter sido enviado à Santa Casa com a guia de registos relativa ao concurso n.º 43/96, o que não poderia deixar de acontecer uma vez que o bilhete só fora registado em data posterior à realização do concurso n.º 42/96.
Não deixa, ainda, de se dizer que, mesmo havendo, por hipótese, culpa do agente na remessa tardia da matriz, tal não responsabilizaria a Santa Casa, no ponto em que os agentes funcionam apenas como mandatários dos concorrentes.
E nem se mostraria viável a responsabilização do agente por a aposta ter sido apresentada para o concurso n.º 43 e não para o n.º 42.
Em suma, desta análise do acórdão recorrido resulta, sem margem para dúvidas, que a solução de direito assentou fundamentalmente, por um lado, no valor atribuído à autenticação dos boletins e, por outro, decisivamente, na prova de que o boletim fora entregue na agência num momento em que já tinha terminado o concurso n.º 42/96 e publicados até os respectivos resultados, não tendo o agente feito seguir o mesmo boletim no conjunto das apostas referentes
àquele concurso e de que a indicação feita na matriz se devera a avaria da máquina registadora.
Do que inevitavelmente se segue que a norma do artigo 12º do Regulamento, na interpretação segundo a qual a microfilmagem é a única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas, não foi aplicada como ratio decidendi, razão, afinal, por que se diz, no acórdão recorrido que 'tudo isto retira interesse á questão de inconstitucionalidade (...)'.
Falece, assim, um pressuposto essencial do recurso.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não se conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 Ucs, devendo tomar-se em conta que o recorrente litiga com apoio judiciário.'
Vem agora o recorrente reclamar para a conferência desta decisão sumária, sustentando que a norma do artigo 12º do Regulamento Geral de Apostas Mútuas, aprovado pela Portaria n.º 1328/93, de 31 de Dezembro, foi aplicada como ratio decidendi e, com maior desenvolvimento, que tal norma, interpretada no sentido de que a microfilmagem dos boletins é a única condição de validade de participação no concurso e elemento essencial para o apuramento das apostas certas.
Na sua resposta, a recorrida defende que a reclamação deve ser indeferida.
Cumpre decidir.
2 - A decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso teve como fundamento o facto de o acórdão recorrido não ter aplicado a norma em causa como razão de decidir. E comprovou-o com vários excertos daquele acórdão, onde, sem margem para quaisquer dúvidas, se revela que a decisão assentou nos factos dados como provados, a latere do valor que, nos termos daquela norma regulamentar, deveria ser dado à microfilmagem, razão até por que o aresto considerou inútil conhecer das questão de ilegalidade/inconstitucionalidade suscitada, apesar de a ter apreciado.
Não logra o reclamante demonstrar que assim não foi, insistindo em que não se conferiu valor de documento autêntico ao boletim autenticado de acordo com o artigo 5º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 84/85.
Ora, se é certo que no acórdão recorrido se entendeu que a autenticação do boletim não conferia a este valor de documento autêntico, - mas acrescentando-se que a prova plena que, nos termos do artigo 368º do Código Civil, o boletim poderia representar de candidatura ao concurso n.º 42/96, fora contrariada com, êxito, pois o interessado não só não conseguira demonstrar a exactidão do documento, como vira prevalecer a tese de que o documento saíra errado por falha da máquina registadora e, ainda, que, de todo o modo, mesmo com essa prova plena, não se fundamentaria pretensão indemnizatória contra a Santa Casa - isto só tem a ver com a aplicação da citada norma do Decreto-Lei n.º
84/84 (e não com a norma regulamentar) e não contradiz a afirmação de que a norma regulamentar não foi aplicada como razão de decidir.
E, nesta sede, considerando o fundamento da decisão sumária, é inútil todo o arrazoado em que o recorrente, expende, mais largamente, a tese da inconstitucionalidade/ilegalidade do artigo 12º do Regulamento.
É, pois, de indeferir, sem necessidade de outras considerações, a reclamação.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs, tendo-se em conta que o reclamante litiga com apoio judiciário.
Lisboa, 13 de Julho de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida