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Processo n.º 841/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro ( LTC ), do despacho de 4 de Agosto de 2004, do Conselheiro-Relator do Supremo Tribunal Militar (fls. 6163, do P. 11/C/8/M/04, do STM ) que não admitiu o recurso por si interposto do acórdão de 15 de Julho de 2004, de que resultou condenado, pelo concurso dos crimes de peculato e de deserção, na pena única de 8 anos de prisão.
O despacho reclamado é do seguinte teor:
“A., identificado nos autos, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 6111 e seguintes. Pretende, com tal recurso, a apreciação da inconstitucionalidade que atribui às normas constantes do n.º 2 do art.º 431º e do n.º 1 do art.º 432º, ambos do Código de Justiça Militar, ‘quando interpretadas no sentido de não ser considerado motivado o recurso em que as alegações sejam ditadas para a acta de audiência de julgamento, considerando-se o recurso assim apresentado deserto por falta de alegações’. Igualmente deseja que seja declarada a inconstitucionalidade da alínea c) do n.º
4 do art.º 340ºdo Código de Processo Penal ‘quando interpretado no sentido de que o requerimento de perícia à personalidade nos termos do art.º 160º do Código de Processo Penal tem finalidade meramente dilatória quando apresentado a 10 dias da audiência de julgamento’. O recurso foi apresentado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a qual prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos outros tribunais que ‘apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo’. Resulta do teor da lei e tem sido pacificamente afirmado pelo Tribunal Constitucional que o recurso interposto ao abrigo da citada alínea b) tem de recair sobre norma (ou certa interpretação de norma) aplicada pelo tribunal recorrido. Ora, o acórdão de que se pretende recorrer não aplicou as normas invocadas nas interpretações atribuídas pelo recorrente. Escreveu-se nesse acórdão: ‘Contrariamente ao que parece entender o réu recorrente, não constitui alegação de recurso o arrazoado oral, algo ininteligível e desprovido de conclusões feito aquando da declaração de interposição de recurso e irregularmente transcrito na acta de julgamento...Entende-se, pois, que não foram apresentadas alegações relativamente a qualquer dos dois recursos de que nos estamos ocupando’. Assim o mencionado recurso não foi considerado deserto por ‘não ser considerado motivado o recurso em que as alegações seja ditadas para a acta da audiência de julgamento’, mas por não terem sido apresentadas alegações, já que o Tribunal decidiu que o arrazoado constante da acta não constituía alegação de qualquer tipo. Por outro lado, também o aresto de que se pretende recorrer não considerou dilatório o requerimento de perícia à personalidade por este ter sido apresentado apenas 10 dias antes da audiência de julgamento. Conforme se vê do mesmo acórdão (fls. 6132 v. e 6133) o aludido requerimento foi tido por notoriamente dilatório por a perícia não ter sido requerida durante a longa instrução do processo, quando foi dada a vista ao defensor, na sequência da entrega da nota de culpa ou sequer na própria audiência de julgamento. Apresentado o pedido 10 dias antes do julgamento quando podia ter sido antes ou depois, é manifesto que o seu objectivo não era obter a perícia, mas evitar a realização do julgamento, o que traduz expediente dilatório. Não se negou o direito de se requerer a perícia em qualquer altura até ao julgamento mas in casu torna-se patente que o objecto do pedido foi meramente dilatório. Não tendo sido dada a interpretação invocada pelo recorrente a qualquer das normas aplicadas pelo aresto recorrido, é patente que essas interpretações não foram aplicadas pelo que o recurso ora interposto é inviável. Nestes termos, não admito o recurso interposto pelo requerimento de fls. 6146 a
6148, Notifique.”
São os seguintes os fundamentos da reclamação [transcrição das conclusões do respectivo requerimento] :
“1. Os fundamentos para a decisão de indeferimento de admissibilidade do recurso interposto são: a. que o recurso deve ser considerado deserto, dada a ininteligibilidade do arrazoado irregularmente transcrito em acta sem conclusões, não constituindo por isso alegações de recurso. b. Que a interposição do requerimento de perícia à personalidade do arguido e ora reclamante a dez dias do início da audiência de discussão e julgamento é objectivamente dilatório.
2. Que quanto ao primeiro fundamento e da forma como foi invocado o mesmo suscitada três questões em ordem a confirmar-se a justeza e legalidade da decisão proferida de indeferimento de admissibilidade do recurso interposto, ou de se confirmar a sua completa falta de sentido jurídico para fundamentar tal decisão, a saber: a. A interposição de recurso ditado para a acta com alegações sem conclusões? b. Pela alegada falta de inteligibilidade do que consta escrito na acta de julgamento ser considerado um ‘arrazoado oral, algo ininteligível’ e por isso não constituir alegação. c. A consideração de tal assim considerado ter sido irregularmente transcrito.
3. O alegado não foi considerado pelo Magno Tribunal um arrazoado ininteligível em si mesmo, ou seja, por estar confuso ou deficiente gramaticalmente.
4. A que sempre caberia despacho a convidar o recorrente ao seu aperfeiçoamento, que não houve.
5. Mas pelos fundamentos invocados pelo Magno Supremo Tribunal de Justiça Militar vertidos a fls. 40 e 41 do seu acórdão.
6. Onde clara e inequivocamente expressa o seu sentido interpretativo das normas contidas no n.º 2 do artigo 432º e do n.º 1 do artigo 431º, ambos do Código de Justiça Militar.
7. E de cujo sentido interpretativo assim vertido na aplicação destas normas se funda o dito recurso, inferida a sua admissibilidade no presente despacho de que se reclama.
8. E que por seu lado leva à resposta à segunda e terceira questão suscitada por tal fundamento de indeferimento.
9. E que obtém a mesma em ordem ao ensinamento colhido pela disciplina imposta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 319/99 de 26 de Maio, onde declarou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 412º do Código Processo Penal, interpretada no sentido de considerar deserto o recurso por falta de conclusões sem que tenha havido convite ao seu aperfeiçoamento.
10. Pelo que pretende o Magno Supremo Tribunal de Justiça Militar, fazer crer que a falta de fundamento do requerido recurso que indeferiu, assenta em algo ininteligível que não constitui por isso alegações, quando na verdade assim considera porque considera que só há recurso devidamente alegado quando o mesmo
é apresentado por escrito e não ditado em acta de julgamento.
11. O que efectivamente fundamenta o requerimento de interposição de recurso para o tribunal constitucional.
12. Quando ao segundo fundamento de indeferimento de admissibilidade do dito recurso, vem ora dizer o Magno Supremo Tribunal de Justiça Militar, no douto despacho, que ora se reclama, que não impõe um limite temporal para o requerido de perícia à personalidade do arguido, dado que também considera que o podia fazer antes ou depois do início do julgamento.
13. Mas tendo feito a 10 dias do início deste é objectivamente dilatório,
14. Ou seja, pretende fazer crer que não impõe um limite temporal, mas ao reafirmar tal, está manifestamente a estatuir um limite temporal.
15. O que manifestamente anula o prescrito nos termos do artigo 160º do Código Processo Penal, que no seu texto não prescreve qualquer limite temporal para que seja o mesmo deduzido, seja este, antes próximo ou durante o julgamento.
16. Acresce por fim que e por analogia nos os termos do n.º 1 alínea a) artigo
668º do Código de Processo Civil tem a decisão proferida no douto despacho que indefere a admissibilidade do requerido recurso de conter a assinatura do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Conselheiro que proferiu tal decisão, e não constando esta verifica-se a nulidade formal de tal decisão.
17. Razão pela qual e conforme cópia do dito despacho que se junta como documento 1, se constata que não contem a assinatura do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Conselheiro que proferiu esta decisão, que ora se reclama, pelo que
é a mesma nula e consequentemente deve o recurso ser devidamente admitido.”
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação, pelas razões do despacho reclamado.
2. Para a decisão da reclamação interessam os factos e ocorrências processuais seguintes: a) O reclamante foi acusado, pelo Promotor de Justiça, no Tribunal Militar da Marinha, como autor, em concurso real, de um crime de peculato p. e p. pelo artigo 193º, n.º 1 alínea a) e de um crime de deserção p. e p. pelos artigos
142º, n.º 1, alínea a) e 152º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Justiça Militar; b) Alguns dias antes da audiência de julgamento, o reclamante requereu a realização de uma perícia sobre a sua personalidade, o que lhe foi indeferido por despacho do juiz do Tribunal Militar da Marinha, sem prejuízo da ponderação naquela audiência da necessidade do requerido exame (fls. 5652 do processo principal – vid. certidão do acórdão do STM a fls.31 v.); c) O reclamante interpôs recurso desse despacho, para o Supremo Tribunal Militar, que foi admitido para subir com o recurso da decisão final. d) Na sessão de 12 de Fevereiro de 2004 da audiência de julgamento, foi indeferido um requerimento do reclamante no qual este formulou o pedido de que
“nos termos do artigo 363º do Código de Processo Penal, sejam doravante as audiências gravadas”. e) O reclamante interpôs recurso deste despacho para o Supremo Tribunal Militar, mediante declaração transcrita na acta de julgamento nos seguintes termos:
“Acto contínuo foi dada a palavra ao Ilustre Patrono do Arguido que no uso dela disse: Atento ao douto despacho proferido por este Tribunal no que concede ao indeferimento do pedido feito pela Defesa nos termos do art.º 363º do Código de Processo Penal por aplicação subsidiária ao CJM, não se conformando o Arguido com a douta decisão, vem apresentar recurso com subida imediata e com efeitos suspensivos. Desde logo e face ao escopo da norma do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa em consideração à norma nos termos do art.º 408º do CJM. Em razão de que se restringe o direito de Defesa, consideração inconstitucional e nela previsto constitucionalmente, no acórdão do Supremo Tribunal Judicial VIII no Tomo II a não aceitação da gravação da audiência com os fundamentos que aduziu, tendo em atenção as páginas 5 e 7 que quando a audiência do julgamento decorre num Tribunal com as declarações nela prestadas nunca pode ser prescindida, no mesmo sentido e no âmbito do processo 40058 3º, proferido em 20 de Julho de 1990. Acresce ainda que é bem visível em plena audiência de julgamento a existência física dos meios de captação de som para registo da prova, pelo que com o devido respeito pelo Tribunal, a decisão tomada constitui a inibição e a proibição de meios de prova, razão pela qual se impõe que seja a decisão revogada. Assim se fazendo justiça.”
f) Na sessão de 1 de Abril de 2004 da audiência de julgamento, o Tribunal Militar da Marinha proferiu o seguinte despacho, indeferindo requerimento do reclamante:
“Esclarecendo as subtilezas do Ilustre Patrono, que põe na deliberação deste Tribunal o sentido que ela não tem, diremos, no seguimento de despacho da folha
5652 dos autos, antes das alegações, o Tribunal ponderou sobre a necessidade da submissão do Arguido a qualquer tipo de perícia. Nessa ponderação este Tribunal colectivo, não vislumbrou que durante o período a que respeita a matéria de acusação e nesta data, o Arguido tenha sofrido quaisquer perturbações que exijam ou aconselhe a realização de quaisquer perícias de índole psíquica, psicológica, ou outras. O Tribunal não exclui, porque não pode excluir que alguma vez o Arguido tenha sofrido qualquer perturbação psicológica. Esclarece ainda que pelos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, não existe quaisquer indícios, que relativamente à matéria destes autos exijam ou aconselhe a realização de qualquer perícia. Assim, com este esclarecimento, o Tribunal indefere mais uma vez a requerida perícia à personalidade do Arguido. Notifique.”
g) O reclamante interpôs recurso deste despacho para o Supremo Tribunal Militar. h) A acusação foi julgada procedente, sendo o reclamante condenado, além do mais, na pena única de 8 anos e 6 meses de presídio militar, por acórdão do Tribunal Militar da Marinha, de que interpôs recurso. i) Por acórdão de 15 de Julho de 2004, o Supremo Tribunal Militar, além do mais:
- negou provimento ao recurso referido em c) [despacho sobre o requerimento de realização de perícia de personalidade formulado antes da audiência];
- não tomou conhecimento do objecto do recurso referido em e) [despacho sobre o requerimento de documentação da produção de prova em audiência], que julgou deserto por falta de alegações;
- não tomou conhecimento do objecto do recurso referido em g) [despacho proferido em audiência relativamente à realização de perícia de personalidade ao arguido], por falta de alegações e desistência. j) O reclamante interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal Militar para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento do seguinte teor:
“1. O recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 85/89 de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro.
2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do n.º 2 do art.º 431º e do n.º 1 do art.º 432º, ambos do Código de Justiça Militar, quando interpretadas no sentido de não ser considerado motivado o recurso em que as alegações sejam ditadas para a acta de audiência de julgamento, considerando o recurso assim apresentado deserto por falta de alegações.
3. Esta consideração é feita atenta a disciplina imposta pelo n.º 2 do art.º
412º do Código de Processo Penal, e a declaração de inconstitucionalidade desta norma quando interpretada no sentido de que a falta de conclusões importa a deserção do recurso, sem que haja convite ao aperfeiçoamento (Ac. n.º 319/99 de
26 de Maio de 1999).
4. As normas constantes do n.º 2 do art.º 431º e do n.º 1 do art.º 432º do Código de Justiça Militar são violadoras dos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade e garantias de defesa, consagrados, respectivamente nos artigos 13º e n.º 2 e 18º da Constituição da República Portuguesa e do n.º 1 do art.º 32º do mesmo diploma constitucional, porquanto estabelecem um regime injustificadamente diferente do constante do art.º 412ºdo Código de processo Penal.
5. Muito embora não tenha o requerente suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma antes de proferida decisão que tenha posto fim à discussão e julgamento da questão de mérito, tal deve-se tão só a que esta surge pela decisão tomada no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça Militar que decidiu o recurso apresentado, pelo ora recorrente do acórdão proferido na primeira instância e só neste momento e pela interpretação que é dada à norma que fundamenta a decisão de considerar o recurso então apresentado deserto é que se coloca a questão da sua constitucionalidade pelo que se requer a aceitação do presente requerimento de recurso nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro.
6. Também se suscita a inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 4 do art.º 340º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido, de que o requerimento de perícia à personalidade, nos termos do art.º 160º do Código de Processo Penal, tem finalidade meramente dilatória quando apresentado a 10 dias da audiência de julgamento, estatuindo assim um limite temporal, que anula o vertido no aludido artigo 160º do Código de Processo Penal e viola por isso o princípio constitucional insíto no n.º 1 do art.º 32º da Constituição da Republica Portuguesa.
7. Esta inconstitucionalidade foi suscitada na interpretação de recurso do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Militar da Marinha, ao ter invocado a violação da norma constitucional, nos artigos 64º e 65º.”
k) Este recurso não foi admitido, nos termos do despacho sob reclamação, já transcrito.
3. Além do mais, o reclamante argumenta com a nulidade do despacho reclamado, por falta de assinatura do juiz que o proferiu, nos termos da alínea a) do n.º
1 do artigo 668º do CPC, parecendo querer extrair daí a consequência de que isso basta para que o recurso seja admitido (vid. conclusões 16 e 17).
É manifesta a inviabilidade deste fundamento, porquanto:
1º - Na reclamação a que se referem o n.º 4 do artigo 76º e o artigo 77º da LTC
– como, de resto, na reclamação contra o indeferimento ou retenção do recurso, em geral (artigos 668º e 669º do CPC) – não cabe ao órgão ad quem apreciar vícios formais ou de estrutura do despacho que não admita ou retenha o recurso, mas decidir sobre a admissibilidade ou a subida do recurso, revogando ou mantendo o despacho impugnado. É conclusão que se extrai, quer da função deste meio processual e da previsão legal quanto à pronúncia do órgão ad quem, quer do
regime de arguição das nulidades (n.º 3 do artigo 668º do CPC a contrario).
2º - Ainda que a apreciação de eventuais nulidades do despacho de não admissão pudesse ter lugar na reclamação para o Tribunal Constitucional, da eventual procedência dessa arguição não resultaria a admissão do recurso. A admissão do recurso não é consequência da nulidade do despacho que o indeferiu, mas de um juízo positivo quanto à verificação dos respectivos pressupostos por parte do
órgão competente para decidi-la.
3º - De todo o modo, como se afirma no despacho de sustentação de fls. 16, a arguição do recorrente é desconforme à realidade revelada pelo processo, mostrando-se o despacho reclamado assinado pelo juiz que o proferiu. Esta arguição é um excesso só explicável pela circunstância não ter sido precedida do exame dos autos (cfr. conclusão 17 do requerimento inicial).
4. Objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC é a questão de inconstitucionalidade de norma de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação. E constitui ónus do recorrente identificar essa norma no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (n.º 1, do artigo 75º-A da LTC).
Ao proceder à indicação da norma cuja constitucionalidade quer ver apreciada, o recorrente disse pretender “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do n.º 2 do artigo 431º e do n.º 1 do artigo 432º, ambos do Código de Justiça Militar, quando interpretadas no sentido de não ser considerado motivado o recurso em que as alegações sejam ditadas para a acta de audiência de julgamento, considerando o recurso assim apresentado deserto por falta de alegações”.
Entendeu o despacho reclamado que não foi esse o sentido com que tal bloco legal foi aplicado. Segundo este despacho, o acórdão recorrido não julgou o recurso deserto por considerar que alegações ditadas para a acta não seriam atendíveis como motivação do recurso mas, mais radicalmente, por considerar que não chegou a haver alegações, por não poder atribuir-se tal natureza ao arrazoado que acompanhou a interposição de recurso por declaração ditada para a acta. Na reclamação, o recorrente insiste em que a ratio decidendi do não conhecimento do recurso foi aquela que propôs ao juízo de constitucionalidade. Importa, pois, interpretar a passagem do acórdão recorrido em que se fundamenta o não conhecimento do recurso da decisão do Tribunal Militar da Marinha, que é do seguinte teor:
“Contrariamente ao que parece entender o réu recorrente, não constitui alegação de recurso o arrazoado oral, algo ininteligível e desprovido de conclusões, feito aquando da declaração de interposição do recurso e irregularmente transcrito na acta de julgamento, conforme consta do ponto supra 1.3.. A lei impõe que a alegação de recurso revista a forma escrita quer o recurso seja interposto por requerimento escrito quer seja interposto por simples declaração em acta. Compreende-se que assim seja já que não se entenderia que permitisse deixar desperdiçar tempo do tribunal de julgamento com a transcrição de alegações em acta (pense-se em longas alegações de recurso) sem a mínima utilidade processual resultante da substituição da forma escrita pela oral. Isto mesmo se deduz da letra e espírito dos artºs. 429º, 430º e 431º, do Código de Justiça Militar, em que se distingue claramente entre interposição de recurso por requerimento escrito e por ‘simples declaração’ na acta, impondo, neste
último caso e contrariamente àquele outro, que a alegação seja apresentada, não imediatamente, mas no prazo de cinco dias. Tal resulta confirmado pelo disposto no art.º 424º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, em apenas se exige que, da acta de audiência de julgamento, consta o ‘recurso que houver sido interposto por declaração verbal em audiência de julgamento’ – alínea i) do citado preceito
– e já não, obviamente, a alegação desse recurso. Entende-se, pois, que não foram apresentadas alegações relativamente a qualquer dos dois recursos de que nos estamos ocupando. Em consequência, esses mesmos dois recursos deveriam ter sido julgados desertos no tribunal de instância, nos termos do disposto no art.º 432º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, o que, ali, se não fez. Assim, há, agora, que reconhecer as deserções de tais recursos e, por via delas, decidir não se tomar conhecimento do objecto de cada um dos mesmos dois ditos recursos.”
Embora discorra no sentido de demonstrar que as alegações de recurso tem sempre de ser produzidas pelo recorrente sob forma escrita, o que tem implícito que alegações produzidas oralmente não seriam atendíveis, em nenhuma parte o acórdão recorrido admitiu que haviam sido produzidas alegações orais transcritas para a acta. Pelo contrário, afirmou que o arrazoado oral “algo ininteligível” produzido pelo recorrente aquando da interposição do recurso não constitui alegação deste. Assim, embora seja certo que o acórdão recorrido afirma, interpretando os artigos 429º, 430º, 431º e 424º, n.º 2 do Código de Justiça Militar, que as alegações de recurso interposto mediante declaração lançada para a acta devem sempre ser produzidas por escrito, não pode ser debitado o julgamento de deserção do recurso a este entendimento, isto é, à norma extraída destes preceitos de que resulte que alegações orais, ainda que transcritas em acta, não são atendíveis. A montante desta questão – como seu pressuposto lógico e no iter justificativo efectivamente percorrido pelo tribunal a quo – situa-se aquela outra da existência de algo que deva ser qualificado como motivação oral do recurso. Trata-se, antes de mais, de uma questão de facto, enquanto tal estranha à competência deste Tribunal em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade [Embora possa implicar um problema de qualificação jurídica e, por essa via, eventualmente coenvolver um problema de constitucionalidade da norma aplicada para afirmar ou negar tal qualificação].
Ora, começando o acórdão recorrido por negar que o arrazoado que o recorrente incluiu na declaração verbal de interposição de recurso no decorrer da audiência de 12 de Fevereiro de 2004 (cfr. alínea e) do n.º 2) constitua motivação deste, tem de concluir-se que não fez efectiva aplicação da norma agora enunciada pelo recorrente. Pelo menos, não o fez como sua ratio decidendi, o que é indispensável para abrir a porta ao recurso de constitucionalidade, atendendo à natureza instrumental deste. Com efeito, negando-se o Supremo Tribunal Militar a reconhecer nas considerações oralmente produzidas pelo recorrente e transcritas na acta, que qualifica de “arrazoado algo ininteligível”, o conteúdo de motivação do recurso, não pode dizer-se que a causa operativa do julgamento de deserção do recurso tenha sido a desconsideração de quaisquer alegações por serem produzidas oralmente. Independentemente das considerações que a este último propósito produziu, a causa do julgamento de deserção foi a inexistência tout court de alegações de recurso, não a sua forma ou deficiência.
Tanto basta para, nesta parte, indeferir a reclamação.
5. O despacho reclamado indeferiu também o requerimento de interposição do recurso na parte em que o recorrente quer ver apreciada a
“inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 4 do artigo 340º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido, de que o requerimento de perícia
à personalidade, nos termos do artigo 160º do Código de Processo Penal, tem finalidade meramente dilatória quando apresentado a 10 dias da audiência de julgamento”.
O fundamento foi igualmente o de que não foi dada à norma indicada pelo recorrente a interpretação que este sujeita a juízo de inconstitucionalidade. Este fundamento é exacto. O indeferimento da perícia não se deveu exclusiva ou determinantemente ao simples facto de o requerimento ter sido apresentado a 10 dias do julgamento mas à valoração desse facto num conjunto de circunstâncias que o tribunal entendeu demonstrar propósito dilatório, como a simples leitura da seguinte passagem do acórdão recorrido torna indiscutível:
“Acresce que o requerente só a cerca de dez dias do início da audiência de julgamento se deitou a adivinhar que a perturbação da personalidade do réu já não se verificaria ao tempo dessa audiência. Oportunamente, poderia ter requerido a realização da perícia em causa durante a longa instrução do processo, mas não o fez; poderia ter feito tal requerimento quando foi dada vista ao defensor, nos termos do n.º 3 do art.º 354º, do Código de Justiça Militar, mas não o fez; poderia tê-lo feito na sequência da entrega da nota de culpa para que o juiz auditor deferisse, conforme fosse de justiça, nos termos do art.º 385º, do Código de Justiça Militar, mas também não o fez; poderia reservar tal requerimento para a audiência de julgamento, mas, pelos vistos, tal espera não convinha aos seus propósitos. Resolveu atravessar, extemporaneamente em termos de normal marcha processual, o requerimento em causa já depois de finda a fase da acusação e defesa, depois de o processo ter sido declarado preparado para julgamento e, inclusivamente, depois de ter sido designada data para este e apenas ao aproximar-se demasiado tal data. Porquê, só então, tanta pressa? Não há resposta que convença e que seja legítima. Tudo isto revela um aspecto do dito requerimento que não pode deixar de qualificar-se como meramente dilatório. E tal torna-se mais evidente se considerarmos a próxima extinção dos tribunais militares e cuja jurisdição, também com o requerimento em causa, se pretendeu, claramente, subtrair o julgamento do processo. Ora, aquele aspecto não poderia ficar sem sanção para que, seguindo, os autos, a sua normal tramitação, seja dada cabal satisfação ao fim prosseguido pelo legislador de celeridade processual e de não retardamento do julgamento (v., por exemplo, o disposto no art.º 384º, parte final, do Código de Justiça Militar). Assim, trata-se de um requerimento de prova que, por ser injustificadamente extemporâneo e feito no tempo e circunstancialismo em que foi formulado, não pode deixar de ser tido por notoriamente dilatório. Portanto, atenta a finalidade visada, não era de deferir tal requerimento também no aspecto do tempo em que se pretendia a realização da diligência requerida. Impunha-se que fosse indeferido nos termos do disposto no art.º 340º, n.º 4, al, c), de Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 331º, do Código de Justiça Militar.”
Acresce que o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que quer ver apreciada, como exige o n.º 2 do artigo 72º da LTC. Com efeito, é o próprio recorrente que afirma ter suscitado esta inconstitucionalidade “na interposição de recurso do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Militar da Marinha, ao ter invocado a violação da norma constitucional, nos artigos 64º e 65º”. Ora, respeitando esta questão ao recurso interposto do despacho interlocutório referido nas alíneas b) e c) do antecedente n.º 2, teria tal questão de ser colocada ao Supremo Tribunal Militar logo na alegação desse recurso, o que, conjugando aquela afirmação do recorrente com o que pode retirar-se das conclusões desse recurso transcritas no acórdão recorrido (fls. 31v. a fls. 32.v. dos presente autos), não parece ter sucedido.
Aliás, uma outra razão obstaria ao conhecimento do mérito do recurso e justificaria o não provimento da reclamação.
O despacho do Tribunal Militar da Marinha a que respeita esta questão foi interpretado pelo Supremo Tribunal Militar como tendo-se limitado a diferir no tempo a apreciação da necessidade de realização da perícia de personalidade (cfr. fls 47). Na audiência de julgamento o tribunal de 1ª instância ponderou novamente a hipótese de realização de perícia de personalidade e rejeitou a necessidade de realizar tal diligência. Também desta decisão foi interposto recurso pelo ora reclamante, do qual o Supremo Tribunal Militar não conheceu, por deserção e desistência (cfr. alíneas f), g) e i) do antecedente n.º 2). Tornando-se definitiva, por outra razão, a decisão de não realizar a diligência, é inútil a controvérsia sobre o prazo para requerê-la.
Deste modo, a decisão do Tribunal Constitucional sobre a referida questão de constitucionalidade não teria qualquer reflexo na decisão da causa, pelo que, atendendo ao caracter instrumental do recurso de fiscalização concreta, também por isso o recurso não poderia prosseguir.
6. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Setembro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Rui Manuel Moura Ramos