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Processo nº 555/93 Plenário Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. O Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira veio requerer ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo
281º da Constituição e no n.º 1 do artigo 62º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas contidas nos artigos 1º a 4º do Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M, de 13 de Setembro, e dos artigos 1º a 25º da “Orgânica da Direcção Regional de Estatística”, que constituem o Anexo do referido diploma. Em seu entender, tais normas violam “o disposto no nº 3 do artigo 1º, nos n.ºs 1 a 3 do artigo 2º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3º, nos artigos 4º a 8º, no nº 1 do artigo 9º e no nº 1 do artigo 10º, todos do Decreto-Lei nº 124/80, de 17 de Maio, bem como nos artigos 3º, 4º, 8º, 16º, 17º, 24º e 28º, nº 1, da Lei nº
6/89, de 15 de Abril, e no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 280/89, de 23 de Agosto, o que, por conseguinte, e por configurar a violação de leis gerais emanadas de órgãos de soberania, também acarreta a violação dos limites fixados ao poder legislativo regional pela alínea a) do nº 1 do artigo 229º da Constituição da República” (conclusão do pedido), na versão anterior à revisão constitucional de 1997 (actualmente previstos na alínea a) do nº 1 do artigo
227º).
2. Como fundamento, o Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira alegou, em síntese, o seguinte:
– Pelo Decreto-Lei n.º 124/80, de 17 de Maio, cujo objectivo foi o de criar “um subsistema estatístico regional” integrado “no Sistema Estatístico Nacional, sob autoridade dos seus órgãos máximos – o Conselho Nacional de Estatística e o Instituto Nacional de Estatística” (preâmbulo), foram extintas as delegações do Instituto Nacional de Estatística existentes nas Regiões Autónomas e criados os Serviços Regionais de Estatística dos Açores e da Madeira (artigo 1º, n.ºs 1 e
2), aos quais foi atribuído o duplo estatuto de delegação do Instituto Nacional de Estatística e de órgão central no âmbito da respectiva Região (artigo 1º, n.º
3);
– Consequentemente, tais serviços regionais de estatística foram colocados, por um lado, na dependência administrativa dos governos regionais, e, por outro, sob a orientação técnica do Instituto Nacional de Estatística (artigo 2º); e foram-lhes atribuídas determinadas competências (que, por esta via, foram regionalizadas) “em tudo quanto interesse exclusivamente à Região Autónoma”, embora com excepções (artigo 3º);
– Relativamente à organização interna dos serviços regionais, remetida para decreto regulamentar regional, ou seja, para a competência dos governos regionais, o Decreto-Lei nº 124/80 sujeitou o correspondente exercício à prévia audição do Conselho Nacional de Estatística (nº 1 do artigo 10º) e garantiu para o pessoal superior, técnico e técnico-profissional a “intercomunicabilidade entre os Serviços Regionais e os serviços do Instituto Nacional de Estatística”
(nº 3 do artigo 11º);
– Foi ainda determinado pelo Decreto-Lei n.º 124/80 que seriam órgãos de cada Serviço Regional de Estatística o Conselho Orientador e o Director, este último a nomear pelo Governo Regional com o acordo prévio do ministro da tutela
(artigos 5º a 9º);
– Este modelo não foi afectado pela superveniência da Lei nº 6/89, de 15 de Abril, que, ao reformular as bases gerais do Sistema Estatístico Nacional, não só deixou expressa (no nº 1 do artigo 28º) a manutenção em vigor do Decreto-Lei nº 124/80, tão somente com as alterações decorrentes daquela Lei, como ainda (no artigo 24º) reforçou a obrigação de ouvir o Conselho Superior de Estatística, ao torná-la extensiva a todos os projectos de diplomas que criem serviços de estatística ou contenham normas com incidência na estrutura ou funcionamento do Sistema Estatístico Nacional;
– Os diplomas que, sucessivamente, vieram regular o Serviço Regional de Estatística na Região Autónoma da Madeira, na sequência do Decreto-Lei n.º
124/80 – o Decreto Regulamentar Regional n.º 14/80/M, de 31 de Dezembro, e o Decreto Regulamentar Regional n.º 6/88/M, de 12 de Fevereiro –, respeitaram as exigências por este definidas; e estas exigências não foram postas em causa quando o Decreto Regulamentar Regional n.º 3/93/M, de 21 de Janeiro, ao reestruturar a Secretaria Regional das Finanças no seguimento das alterações introduzidas na “orgânica do Governo Regional” pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/92/M, fez transitar para essa Secretaria Regional a tutela sobre o sector da estatística, confiando as atribuições do Serviço Regional de Estatística a um departamento designado por Direcção Regional de Estatística;
– Este Decreto Legislativo Regional n.º 3/93/M, porém, remeteu para Decreto Regulamentar Regional a organização da Direcção Regional de Estatística; e, porque o decreto que o Governo Regional da Madeira veio a aprovar para o efeito foi devolvido, sem assinatura, pelo Ministro da República, no uso da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 235º da Constituição (n.º 4 do actual artigo 233º), seguiu-se, nos termos do mesmo preceito, a sua conversão em iniciativa legislativa, vindo a ser aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira o Decreto Legislativo Regional n.º 18/93/M, de 13 de Setembro;
– Ora, se bem que a 'estatística regional' integre o elenco das matérias tidas como de interesse específico para a Região Autónoma da Madeira, de acordo com o estabelecido na alínea ii) do artigo 30º (actual artigo 40º) do respectivo Estatuto Político-Administrativo, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho, tal não significa que também o 'subsistema estatístico regional' seja matéria de interesse exclusivo da mesma Região, nem que nela exija tratamento distinto por aí assumir especial configuração;
– Diferentemente, trata-se de uma matéria que reclama a intervenção do legislador nacional, reservada à competência própria dos órgãos de soberania; é certo que o Decreto-Lei nº 124/80 operou a regionalização em matéria de estatística, transferindo atribuições do Estado para as Regiões Autónomas; mas é igualmente certo que é ao transferente que cabe decidir o que pretende transferir, não podendo ser alterado o regime de regionalização assim definido por iniciativa autónoma e unilateral das Regiões, ainda que mediante decreto legislativo regional;
– Aliás, o legislador regional não procurou demonstrar, e nem sequer referiu, qual o interesse específico que considera subjacente ao regime que aprovou. Nem tal seria possível, por não existir esse interesse;
– Os diplomas operadores de regionalização de competências, como é o caso, em certa medida, do Decreto-Lei nº 124/80, de 17 de Maio, embora não correspondam a leis gerais da República, mas sim a diplomas da República com vocação regional, pois que destinados apenas a vigorar nas regiões autónomas a que se referem, devem, não obstante, ser respeitados pelos respectivos órgãos de governo próprio, porquanto a regionalização que consubstanciam foi “levada a termo mediante devolução de poderes (...), em nome de fins gerais e últimos que o Estado se propõe realizar (...), decorre de um programa constitucional, é fruto de um indirizzo político-constitucional, de modo a poder afirmar-se que a iniciativa do Governo da República foi (é) heteronomo-positivamente determinada pelas normas e princípios da Constituição” (acórdão do Tribunal Constitucional nº 220/92);
– Sucede que este Decreto Legislativo Regional n.º 18/93/M, para além de ter sido aprovado sem respeitar a formalidade essencial da prévia audição do Conselho Superior de Estatística, imposta, tanto pelo n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 124/80, como pelo artigo 24º da Lei n.º 6/89, veio desrespeitar o mesmo Decreto-Lei n.º 124/80, já que apresenta modificações substanciais de estruturação interna da Direcção Regional de Estatística (como sejam a omissão da exigência do prévio acordo do ministro da tutela para a nomeação do Director ou a eliminação do conselho orientador);
– Para além disso, a forma como em concreto o Decreto Legislativo Regional n.º
18/93/M definiu (no Anexo) a Orgânica da Direcção Regional de Estatística como
“um serviço regional, dotado de autonomia administrativa, integrado e dependente da Secretaria Regional das Finanças (...)” , embora com a “actividade subordinada aos princípios enformadores do Sistema Estatístico Nacional e às orientações do Conselho Superior de Estatística”, contraria os princípios da coordenação estatística e da autoridade estatística centralizada, princípios essenciais à existência de um sistema estatístico de âmbito nacional, conforme foi gizado pela Lei nº 6/89;
– Aliás, já o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 124/80 salientara que a negação de tais princípios põe “em risco as potencialidades, a eficiência e até a existência do Sistema” Estatístico Nacional;
– Assim, no regime decorrente da Orgânica anexa ao Decreto Legislativo Regional n.º 18/93/M, e contrariamente ao anteriormente estatuído, a omissão de limitações à forma de nomeação do director, tal como decorre dos artigos 3º e 4º, viola o disposto no nº 1 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 124/80, do mesmo modo que a supressão do Conselho Orientador e a consequente eliminação das suas competências colide frontalmente com o estatuído nos artigos 5º, 6º e
7º desse diploma legal;
– E também a forma ampla como se encontra redigido o nº 2 do artigo 1º da referida Orgânica parece contrariar o carácter único e exclusivo que o artigo 3º da Lei nº 6/89 e o nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/80 atribuem ao Instituto Nacional de Estatística, quanto ao exercício de certas das suas competências;
– Por outro lado, a Direcção Regional de Estatística, do modo como ficou agora estruturada (artigo 1º da Orgânica), não parece preencher o requisito da natureza híbrida, de delegação do Instituto Nacional de Estatística e de órgão central no âmbito da Região (nos termos previstos no nº 3 do artigo
1º e nos artigos 3º e 4º do Decreto-Lei nº 124/80), imprescindível para a integração do subsistema regional no Sistema Estatístico Nacional;
– Afigura-se, ainda, ilegal a norma inserida no nº 2 do artigo 2º da mesma Orgânica, por colisão com o disposto no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/80, em primeiro lugar, porque, no âmbito da regionalização por este operada, não cabem todas as atribuições do Instituto Nacional de Estatística, mas apenas as que a parte final daquele artigo 3º, nº 1, não excluiu; e, em segundo lugar, porque só lhe podem ser atribuídas competências cujo exercício corresponda a um interesse exclusivo da Região Autónoma;
– Quanto à estatuição feita no nº 4 do artigo 2º da dita Orgânica
(actividade estatística de âmbito regional), face à qual a Direcção Regional de Estatística goza de autonomia técnica, mostra-se contrária ao disposto nos artigos 2º, nº 1, e 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 124/80, conjugados com o artigo
4º da Lei nº 6/89;
– Mais se sublinha que o nº 1 do artigo 19º da Orgânica atribui à Direcção Regional de Estatística competência para a recolha directa das informações estatísticas de interesse regional, actuando como uma representação do Instituto Nacional de Estatística, nos mesmos termos em que, por via do disposto no artigo
17º da Lei nº 6/89 e no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 280/89, o Instituto Nacional de Estatística exerce a sua actividade; mas para que tal competência pudesse ser exercida, por direito próprio, pela Direcção Regional de Estatística e não pelo Instituto Nacional de Estatística seria preciso, para além de uma norma expressa de regionalização, fixar quem determina o que são “informações estatísticas de interesse regional” e quais os critérios para as definir;
– Também o princípio exarado no nº 3 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/80 e no artigo 8º da Lei nº 6/89 (a competência do Conselho Superior de Estatística, enquanto órgão que superiormente orienta e coordena o Sistema Estatístico Nacional, para definir as estatísticas de âmbito nacional) terá sido posto em crise pela alusão, feita nos artigos 14º, alínea a), 15º, alíneas a) e b), e 16º, alínea a), a matérias determinadas onde, no entendimento do legislador regional, ocorrerá o requisito do interesse exclusivo da Região Autónoma da Madeira;
– Finalmente, a norma do nº 2 do artigo 17º da Orgânica em causa, ao fazer depender de autorização da Direcção Regional de Estatística a emissão de instrumentos de notação de âmbito regional de que possa resultar um aproveitamento estatístico, pressupõe a manutenção do duplo estatuto fixado na Lei nº 124/80 e acarreta o risco potencial de colidir com o regime de delegação de competências estabelecido no artigo 16º da Lei nº 6/89.
3. Notificado do pedido, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira veio responder, alegando, em resumo, o seguinte:
– O legislador nacional, com o Decreto-Lei nº 124/80, pretendeu criar subsistemas de informação estatística capazes de, no âmbito do Sistema Estatístico Nacional, dar satisfação às carências sentidas pelas regiões autónomas em matéria de planeamento económico e social, consubstanciando especificidades e necessidades próprias que tornam o diploma lei especial – salvaguardado, para mais, pela Lei nº 6/89, no seu artigo 28º – fundada em interesse específico regional;
– Tendo presente o disposto no quadro modelado pelo artigo 229º, nº 1 (actual artigo 227º, nº 1, da Constituição da República, nomeadamente, bem como o preceituado no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, mormente nos seus artigos 59º (actual artigo 77º) – nos termos do qual podem os
órgãos regionais criar os serviços e institutos públicos que se mostrem necessários à administração da região – e 49º, alíneas c) e g) [actual artigo
69º, alíneas c) e g)] – existe, na matéria, interesse específico regional, reconhecido pelo legislador nacional no preâmbulo do diploma de 1980;
– Os Serviços Regionais de Estatística são órgãos próprios dos subsistemas estatísticos regionais, parte integrante dos departamentos dos respectivos Governos Regionais em que se integram e exercem a sua actividade exclusivamente nas Regiões Autónomas. Para além disso, funcionam como órgãos centrais no âmbito das Regiões e, em tudo quanto interesse exclusivamente à Região, exercem, em geral, as funções e as competências do Instituto Nacional de Estatística (nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 427/73, por remissão do nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 124/80), com excepção das competências relativas à coordenação nacional e do domínio das relações internacionais. Não foi intenção do Governo Regional alterar essas competências, como decorre do teor do nº 1 do artigo 2º do Decreto Regional, e, no que respeita à actividade estatística regional, as competências atribuídas são próprias e exclusivas;
– Aliás, o Decreto-Lei nº 124/80 terá que ser interpretado e integrado à luz do disposto na Constituição e no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira [designadamente, as alíneas c) e g) do seu artigo 49º, já referidas, correspondentes às mesmas alíneas do actual artigo 69º] pelo que, quer o artigo 10º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/80, quer o artigo 24º da Lei nº
6/89, relativos à prévia audição do Conselho Superior de Estatística, 'são ilegais por contrariarem direitos consagrados no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 281º da Constituição';
– Estando em causa as competências e a orgânica de um serviço regional
(independentemente da designação de serviço ou de direcção regional), não tem que ser ouvido qualquer outro órgão, pois está o Governo Regional a exercer uma competência própria que lhe é estatutariamente conferida, nem alterada, nem sequer limitada por uma lei ordinária;
– As competências atribuídas à Direcção Regional de Estatística não põem em causa a unidade do sistema pois não invalidam a sua vinculação (no exercício das suas funções) às normas que regem o Sistema Estatístico Nacional e, designadamente, às resoluções e normas dimanadas do Conselho Superior de Estatística;
– Acresce que a actividade estatística de âmbito nacional é exercida pela Direcção Regional de Estatística do mesmo modo que o é pelas direcções regionais do Instituto Nacional de Estatística (actua como órgão central ao nível da Região), regendo-se, nessa medida, aquela Direcção Regional sob a orientação do Instituto – na observância de uma lógica que procura evitar a dissociação das duas actividades e, fundamentalmente, a duplicação de recursos para a mesma actividade, com os inerentes custos;
– No que respeita à actividade de âmbito exclusivamente regional e para tudo o que diga respeito às Regiões, são-lhe atribuídas, em geral, as competências do Instituto Nacional de Estatística, inclusivamente, o poder de dar instruções, directrizes e orientações, gozando da autonomia técnica já prevista no Decreto-Lei nº 124/80. Isto não obsta a que os serviços regionais exerçam a sua actividade de forma concertada com outros órgãos centrais ou que estejam subordinados aos princípios enformadores de um sistema nacional e às directrizes de um órgão superior da Administração;
– Em relação ao tema da intercomunicabilidade (artigo 11º, nº 3, do Decreto-Lei nº 124/80), acrescenta-se que tal norma é desnecessária dado que por via do artigo 61º (actual artigo 80º) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira se encontra salvaguardada a intercomunicabilidade entre os quadros de pessoal dos serviços da Administração Pública Regional e Central;
– Quanto à estrutura de funcionamento da Direcção Regional de Estatística, não põe em causa o disposto nos artigos 5º e seguintes do Decreto-Lei nº 124/80, sendo de referir que tais normas (principalmente, quanto ao Conselho Orientador) se encontram revogadas tacitamente, por contrariarem a Lei nº 6/89, que criou o Conselho Superior de Estatística, em substituição do Conselho Nacional de Estatística (cujas competências eram exercidas, ao nível das Regiões, pelo Conselho Orientador). Considerar-se que tais normas se mantêm em vigor constitui um contra-senso pois subverte a própria lógica do Sistema Estatístico Nacional, uma vez que, pela sua própria natureza, o órgão que superiormente orienta e coordena a actividade estatística regional nunca poderia integrar a orgânica da Direcção Regional de Estatística, para além de que o artigo 11º, nº 2, da mencionada Lei define as formas de representação do Conselho Superior de Estatística ao nível das Regiões;
– Finalmente, no que respeita à forma de nomeação do Director Regional, sendo este cargo equiparado a cargo político (Decreto Legislativo Regional nº 1/84/M, de 27 de Fevereiro), cargo de nomeação e da confiança política do membro do Governo Regional que tutela o sector, que, como membro do Governo Regional, só pode ser politicamente responsabilizado perante a Assembleia Legislativa Regional (artigo 40º do EPARAM, actual artigo 58º), é no mínimo incongruente pretender-se subordinar a escolha da pessoa do Director Regional à concordância do Ministro que tutele o sector.
Do exposto, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional conclui que, contrariamente ao que é defendido no pedido, as disposições que integram o Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M e respectivo Anexo não padecem do vício de ilegalidade, por desconformidade com lei geral da República.
4. Passa-se, então, à apreciação do requerimento, uma vez que foi fixada a orientação a seguir após discussão do memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos previstos no nº 1 do artigo 63º da Lei nº
28/82.
5. Cumpre, porém, começar por analisar algumas questões prévias ao conhecimento do pedido. Em primeiro lugar, há que determinar se a entrada em vigor do Decreto Regulamentar Regional nº 40/2000/M, de 18 de Agosto – cujo objectivo foi o de introduzir na orgânica da Direcção Regional de Estatística as alterações induzidas pelos “novos regimes jurídicos relativos ao ordenamento de carreiras, designadamente o Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, a Lei n.º 44/99, de 11 de Junho, e o Decreto Legislativo Regional n.º 23/99, de 26 de Agosto” –, que procedeu à republicação, com alterações, do Decreto Legislativo Regional n.º
18/93/M, tem implicações quanto ao conhecimento do pedido. Ora a verdade é que tal diploma – e apesar da intenção, proclamada no preâmbulo, de “revogação” do anterior estatuto, para evitar “os ulteriores incómodos de dispersão legislativa que a aprovação de uma nova alteração orgânica sempre acarretam” – nem sequer pretendeu introduzir alterações radicais em quaisquer artigos, em muitos se mantendo, mesmo, a anterior redacção, acrescentando apenas novos serviços; a maioria das normas constantes do decreto legislativo regional foram simplesmente renumeradas, e apenas três artigos foram aditados. De qualquer modo, nunca uma eventual alteração de um diploma de natureza legislativa por um outro de hierarquia inferior poderia ser considerada relevante para o efeito de tornar inútil o conhecimento do pedido de declaração de ilegalidade, razão pela qual a sua aprovação nenhuma implicação tem quanto a esse conhecimento.
6. Em segundo lugar, torna-se necessário precisar os termos em que, no âmbito do presente pedido, cabe a análise da alegada “violação dos limites fixados ao poder legislativo regional pela alínea a) do nº 1 do artigo 229º da Constituição da República” na versão anterior à revisão constitucional de 1997 (actualmente previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 227º), apontada pelo Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira no seu requerimento. Está em causa, com efeito, um diploma de natureza legislativa, editado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição [correspondente à alínea a) do n.º 1 do artigo 227º actual], da alínea c) do nº 1 do artigo 29º e da alínea ii) do artigo 30º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira [actuais artigos 37º, n.º 1, alínea c) e alínea ii) do artigo 40º].
Antes da referida revisão de 1997, a Constituição determinava, na citada alínea a) do nº 1 do artigo 229º, que o poder legislativo das Regiões Autónomas se circunscrevia às matérias de interesse específico para a região que não estivessem reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de soberania e, ainda, que tinha de ser exercido “com respeito da Constituição e das leis gerais da República”.
Ora a análise dos dois primeiros requisitos, relativos ao interesse específico e à reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania – cuja inobservância é referida pelo requerente –, por se referirem a questões de constitucionalidade, extravasa o objecto possível de um pedido de declaração de ilegalidade.
Nestes termos, e tendo em conta a vinculação do Tribunal ao princípio do pedido, apreciar-se-á no presente processo, apenas, a eventual violação do terceiro dos requisitos apontados: o da necessidade de respeito pelas “leis gerais da República”.
7. Há então que passar à questão de saber se os diplomas cuja violação é apontada pelo requerente se devem considerar “leis gerais da República”.
Segundo o n.º 5 do (actual) artigo 112º da Constituição, “são leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e assim o decretem”. Este preceito, resultante da revisão constitucional de 1997, todavia, não se aplica a nenhum dos diplomas cuja violação é alegada pelo requerente, todos eles anteriores à sua entrada em vigor, pois que o artigo 194º da Lei Constitucional nº 1/97, de
20 de Setembro, estatui que “o disposto na parte final do nº 5 do artigo 112º da Constituição apenas se aplica às leis e decretos-leis aprovados após a entrada em vigor da presente lei”. Assim sendo, para determinar se estamos ou não em presença de leis gerais da República, teremos apenas de verificar se os mesmos cumprem o único requisito então exigido pela Constituição (pelo nº 4 do artigo 115º), ou seja, de ver se a sua razão de ser determina a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional, já que, naturalmente, nenhum dos diplomas decreta tratar-se de lei geral da República. Sobre o conceito de lei geral da República, no período anterior à revisão constitucional de 1997, já o Tribunal se pronunciou, designadamente, nos acórdãos nºs 133/90, 254/90, 215/90, 631/99 ou 458/02) (in ATC, Vol. 15º, págs.
447 e segs., Vol. 16º, págs.157 e segs. e 605 e segs., Vol. 45º, págs. 43 e segs. e Diário da República, II série, de 9 de Janeiro de 2003), referindo, no primeiro desses arestos que:
«O artigo 115º, nº 4, da Constituição (...) não fornece uma noção acabada de lei geral da República, mas somente “elementos indiciadores” que auxiliam o intérprete na densificação material do conceito.
(...) só através da identificação nas leis e decretos-leis das normas e princípios portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional é que se torna possível saber se, em concreto, uma determinada lei ou um decreto-lei específico revestem a natureza de lei geral da República».
Na esteira do referido acórdão, deverão considerar-se tópicos fundamentadores da natureza de lei geral da República, quer a ausência de disposição indicativa da limitação do seu âmbito de eficácia ao território do continente, quer a existência, nos diplomas complementares à lei, de indicadores que se aplicam a todo o território nacional, quer a intenção de a lei instituir um regime de uma forma global, unitária e sistemática e com vocação de aplicação a todo o território nacional (cfr., quanto a este último aspecto, vide, também, o acórdão nº 363/94 (in ATC, Vol. 28º, págs. 97 e segs.).
À luz destas considerações, nenhuma dúvida se levanta quanto à natureza de lei geral da República, seja da Lei nº 6/89, seja do Decreto-Lei nº
280/89, já que ambos se aplicam, pela sua própria razão de ser, a todo o território nacional, sem quaisquer restrições, visto que a primeira estabelece as bases gerais do Sistema Estatístico Nacional e o segundo aprova os estatutos do Instituto Nacional de Estatística.
Contudo, o mesmo não se pode afirmar a propósito do Decreto-Lei nº
124/80, que cria os subsistemas estatísticos regionais. Trata-se, é certo, de um diploma da República, mas com manifesta vocação regional, que não pretende instituir uma disciplina jurídica para todo o território nacional. Efectivamente, tendo o diploma por objecto a regionalização de serviços, da sua natureza resulta, sem margem para hesitação, que o seu campo de aplicação se restringe às regiões autónomas, pelo que não pode ser considerado lei geral da República, nem mesmo à luz dos critérios anteriores à revisão constitucional de
1997.
Acerca de diploma semelhante – o Decreto-Lei nº 364/79, de 4 de Setembro, que transferiu para a Região Autónoma da Madeira certos serviços do Ministro da Educação e Investigação Científica – o citado acórdão nº 363/94 (in DR, I Série-A, de 18 de Julho de 1994) pronunciou-se nesse mesmo sentido:
«Na verdade, desde logo, do elenco de competências transferidas para a Região Autónoma da Madeira pelo D.L. nº 364/79 (diploma que se afigura, não obstante se tratar de um diploma da República, ter mera vocação regional, consequentemente se não devendo considerar como “lei geral da República”, com o que, logo por aqui, se afastaria a argumentação do requerente baseada num vício de ilegalidade das normas sub iudicio por pretensamente contrariarem aquele decreto-lei) nenhuma concerne à formação de pessoal docente ou à definição da estrutura da respectiva carreira e estatuto.»
Assim sendo, a eventual declaração de ilegalidade das normas ora em causa não pode fundar-se na violação do disposto neste diploma. Aliás, o próprio Ministro da República admite, quanto ao Decreto-Lei nº 124/80, não se tratar de lei geral da República, mas sim de “diploma da República com mera vocação regional”, embora sustente a necessidade da observância das suas normas pelos respectivos órgãos regionais de governo. Ora não cabe aqui a discussão sobre a necessidade de as normas emanadas dos órgãos regionais de governo respeitarem os diplomas da República de vocação regional (pois que já não se trata de uma questão de respeito por leis gerais da República, como aliás resulta do Acórdão nº 220/92 – in ATC Vol. 22º, pás. 31 e segs.).
Conclui-se, pois, que revestem a natureza de lei geral da República a Lei nº 6/89 e o Decreto-Lei nº 280/89, mas já não o Decreto-Lei nº
124/80.
Assim sendo, o Tribunal não pode apreciar, no âmbito deste processo, nem a questão que o requerente coloca relativamente à alegada violação da garantia de intercomunicabilidade entre os serviços regionais e os serviços do Instituto Nacional de Estatística para o pessoal técnico superior, técnico e técnico-profissional (em face de a norma relativa ao regime aplicável ao pessoal, o artigo 22º da Orgânica aprovada pelo Decreto Legislativo Regional n.º
18/93/M, nada dizer a esse respeito), nem a questão da delimitação das competências da Direcção Regional de Estatística operada pelo diploma regional em análise, designadamente, no artigo 2º, nº 2, do respectivo Anexo, na perspectiva da invocada violação do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/80.
Finalmente, há que ter em conta que, com a mesma Revisão Constitucional de 1997 [vide o nº 4 do artigo 112º e a alínea a) do nº 1 do artigo 227º da Constituição, na redacção então aprovada], a fiscalização da legalidade que agora interessa passou a ter apenas de aferir-se em função dos princípios fundamentais das leis gerais da República.
Todavia, e porque a alteração constitucional veio a traduzir-se, assim, numa restrição da limitação imposta à legislação regional, a verdade é que, qualquer que seja a posição adoptada quanto à determinação da versão constitucional relevante, a solução sempre será a mesma se, no presente caso, ocorrer ilegalidade por violação de princípios fundamentais da Lei n.º 6/89 ou do Decreto-Lei n.º 280/89.
É o que se vai averiguar.
8. O Tribunal Constitucional também já foi chamado a pronunciar-se sobre o conceito de princípios fundamentais de leis gerais da República. Assim, no (já citado) acórdão n.º 631/99, aresto em que, pela primeira vez, o Tribunal teve de se confrontar com a “tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado” observou que “sendo os princípios fundamentais das leis gerais da República ‘princípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por estas leis’, eles são ‘insusceptíveis de uma captação apriorística’ (Gomes Canotilho in (...) Legislação [Cadernos de Ciência de Legislação] n.º 19/20, p.
42; cfr. ainda Carlos Blanco de Morais ‘As competências legislativas das regiões autónomas no conceito da revisão constitucional de 1997’, Separata da ‘Revista da Ordem dos Advogados’, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs.”.
No Acórdão n.º 161/03 (in Diário da República, I Série-A, de 6 de Maio de 2003), que considerou que quando “o órgão autor das normas (...) pretendeu legislar de forma não apenas diferente da que consta de (...) regime aprovado por lei geral da República, mas com ‘opção por uma filosofia’ dele distinta – [legislou] ao arrepio dos seus princípios fundamentais.”
E no Acórdão nº 69/04 (inédito) assinalou que “os princípios fundamentais podem revelar-se ao intérprete por diversos modos, seja mediante a técnica legislativa de enunciação ou alusão explícita pelo legislador, seja através de uma tarefa interpretativa que, em razão do finalismo do acto normativo, permita identificar os referidos princípios e proceder à sua densificação”.
É, pois, em relação a cada “lei geral da República”, interpretada, naturalmente, dentro da ordem jurídica no seu todo, do “bloco de legalidade”
(Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 2ª ed., Coimbra, pág.
406 e Maria Lúcia Amaral, Relação entre decretos legislativos regionais e leis gerais da República, in Legislação cit., n.º 19/20, pág. 110) que caberá ao Tribunal Constitucional determinar, por via interpretativa, quais os princípios gerais concretamente disciplinados, em relação a cada matéria.
9. A Lei nº 6/89 veio definir as “bases gerais do Sistema Estatístico Nacional”
(artigo 1º), sistema que compreende o Conselho Superior de Estatística e o Instituto Nacional de Estatística (artigo 2º). O Decreto-Lei nº 280/89, por sua vez, aprovou os estatutos do Instituto Nacional de Estatística. Como escreve José Tavares (Estudos jurídico-políticos, UAL, 1996, págs. 150, 177 e 178), “A Lei nº 6/89 e o Decreto-Lei nº 280/89 (...) alteraram profundamente o sistema estatístico nacional e, em especial, o Instituto Nacional de Estatística, transformando-o em instituto público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio, submetendo ainda o seu pessoal às normas aplicáveis ao contrato individual de trabalho. Em consequência desta alteração, nasceram relações orgânicas de natureza diferente,
(...) de tutela e de superintendência. Todavia, o INE manteve, na essência, as mesmas atribuições, consubstanciadas na missão de prestação de informação, com a autonomia técnica atribuída desde a sua criação.” Como se dá conta nos trabalhos preparatórios da Lei nº 6/89 (in Diário da Assembleia da República, I Série, de 28 de Outubro de 1988, pág. 145-146), a reforma de 89 teve como principais objectivos:
– a descentralização geográfica do Instituto Nacional de Estatística: “O pendor muito centralizante do Sistema é abandonado, avançando-se decisivamente no sentido da descentralização geográfica e funcional. A primeira far-se-á através da criação das Direcções Regionais do Instituto Nacional de Estatística (...) e ser-lhe-ão atribuídas funções e responsabilidades relevantes na produção e na difusão de informação estatística, particularmente na que tiver carácter dominantemente regional. Manter-se-ão dentro dessa orientação, como é natural, as competências dos actuais Serviços Regionais de Estatística da Madeira e dos Açores”;
– o reforço das atribuições e competências do Instituto Nacional de Estatística e do Conselho Superior de Estatística no campo da coordenação, patente também no preâmbulo do Decreto-Lei nº 280/89 (“reforçar a capacidade institucional necessária às exigências acrescidas de coordenação estatística” – 7º parágrafo): O reforço dos meios de coordenação técnica é um dos objectivos prioritários da presente reestruturação. A experiência já demonstrou que a ausência de coordenação técnica induz a destruição do próprio Sistema Estatístico Nacional; por isso se lhe dá tanta atenção”;
– uma maior flexibilidade na aplicação do segredo estatístico: “O segredo estatístico constitui um dos problemas mais delicados com que se vêem conformados os sistemas estatísticos. Por um lado, ele é indispensável para salvaguardar a privacidade dos cidadãos e preservar a concorrência e, desse modo, garantir a confiança dos informadores do Sistema. Por outro lado, a garantia de observância do segredo estatístico pode impedir os produtores do Sistema de cumprir cabalmente a sua missão de prover às necessidades de informação. A nova legislação vai no sentido do equilíbrio e do compromisso entre aquelas duas vertentes do problema. Sem pôr em causa a privacidade individual e das famílias e a defesa da concorrência, opta-se por uma orientação transparente e flexível. Para tal, e contrariamente à situação actual, em que não é feita qualquer distinção, passa a adoptar-se procedimento diverso consoante se trate de informações sobre famílias; informações sobre empresas públicas e privadas, cooperativas e outras instituições que prossigam actividades económicas; e, informações sobre a Administração Pública.”
– e, finalmente, o reforço do princípio da autoridade estatística: “O princípio da autoridade estatística é reforçado em dois domínios. Primeiro, no das transgressões estatísticas, agravando os limites das multas aplicáveis e instituindo um mecanismo para a sua actualização. (...) Segundo, no domínio do acesso do Instituto Nacional de Estatística às fontes administrativas, permitindo aproveitar as inquestionáveis vantagens desta fonte de informação.”
Para os alcançar, e como igualmente se relata nos referidos trabalhos preparatórios, o Sistema Estatístico Nacional assenta em princípios básicos, revelados nos dois diplomas em análise: o segredo, a centralização, a coordenação, a autoridade estatística e a autonomia técnica. Trata-se, aliás, de princípios que, como explica Adrião Simões Ferreira da Cunha
(O Sistema Estatístico Nacional – Algumas Notas sobre a Evolução dos Seus Princípios Orientadores: de 1935 ao Presente, INE, 1995, pág. 32), “no ambiente legal de um sistema estatístico nacional, deverão estar claramente consignados”. Sobre o princípio da centralização estatística, revelado, por exemplo, pelas normas dos artigos 3º e 16º, nº 1, da Lei nº 6/89, além dos artigos 3º, nº 1, e
7º do Decreto-Lei nº 280/89, diz-nos este autor que reflecte a opção por um determinado modelo organizativo: “Não oferece dúvidas a utilidade e o interesse do país em dispor no interior do SEN de um órgão estatístico central/nacional forte, autónomo do ponto de vista técnico e, se possível, administrativo e financeiro (...). Convém igualmente salientar que, mesmo num quadro de descentralização funcional, existem sempre certas influências centralizadoras, uma vez que é a um organismo central de coordenação que incumbe a tarefa capital da coordenação e integração dos diferentes serviços de estatística existentes”. Já o princípio da coordenação estatística, intrinsecamente relacionado com o anterior, e manifestado, por exemplo, nos artigos 2º, 8º, 9º, nº 1, 10º, nº 1,
14º e 24º da Lei nº 6/89 ou no n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 280/89, tem importância acrescida no quadro de um sistema dotado, como é o caso do português, de um grau significativo de descentralização funcional. Socorrendo-nos, de novo, das palavras de Adrião Simões Ferreira da Cunha, diremos que “A prática dos diferentes países (...) parece demonstrar que a coordenação estatística é melhor assegurada pelos INE posto que se movem, naturalmente, bastante melhor no terreno da coordenação técnica e se encontram em posição muito favorável para prepararem (...) as decisões sobre os objectivos que devem ser tomadas por um órgão supremo de todo o sistema. Um dos objectivos declarados da reforma de 1989 foi (...) o reforço da coordenação estatística, quer ao nível do conteúdo e do alcance do próprio princípio, quer ao nível da organização, competências e funcionamento dos órgãos do Sistema encarregados de zelar pela sua observância e de o aplicar visando, entre outros, o objectivo do reforço da capacidade efectiva de descentralização funcional da actividade de produção estatística.” Quanto ao princípio do segredo estatístico, que se mostra executado, por exemplo, pelas normas dos artigos 5º e 10º, nº 1, da Lei nº 6/89, fácil é compreender que com ele se visa proteger a confidencialidade das informações estatísticas individuais. Este princípio assume grande relevância no quadro do Estado-de-direito democrático, decisivo na protecção da privacidade dos cidadãos. De um ponto de vista prático, visa ainda assegurar um clima de confiança e colaboração entre os particulares (em especial as empresas) e os serviços de estatística, de forma a prevenir que estes forneçam às entidades oficiais dados parciais, pouco rigorosos ou atrasados. Assim, os serviços de estatística terão de garantir que as estatísticas que produzem e divulgam não irão permitir a ninguém deduzir, a partir delas, informação estatística individual. O princípio da autoridade estatística, como escreve Adrião Simões Ferreira da Cunha e se revela, por exemplo, pelos artigos 6º, 7º, 8º, 10º, nº 1, 17º, 21º,
22º e 23º da Lei nº 6/89 e artigo 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 280/89, «(...) traduz o poder de realização dos inquéritos estatísticos estipulando a obrigatoriedade de resposta e as sanções para o caso de transgressão (...). Para um sistema centralizado ou próximo, a melhor solução será a de esse poder ser logo atribuído na legislação estatística ao INE ressalvada a necessidade de parecer prévio de um órgão do tipo “conselho superior de estatística” ». Finalmente, o princípio da autonomia técnica – cfr., nomeadamente, o artigo 4º da Lei nº 6/89 – explica-se, em primeiro lugar, pela necessidade de prevenir intromissões, directas ou indirectas, por parte dos utilizadores, visando certa orientação da produção estatística. Para isso, o Instituto Nacional de Estatística deve dispor de poder absoluto para determinar quer a metodologia, quer a linha técnica da sua acção. Para além disso, e numa dimensão mais abrangente, o princípio incorpora os valores da imparcialidade, fiabilidade e transparência das estatísticas oficiais. São, pois, estes os temas principais em torno dos quais se hão-de estabelecer os
“princípios fundamentais das leis gerais da República” que constituirão, no caso, o parâmetro de fiscalização da legalidade das normas do diploma regional em análise.
10. De entre os preceitos da Lei n.º 6/89 e do Decreto-Lei n.º
280/89 que o requerente aponta como tendo sido violados pelo Decreto Legislativo Regional n.º 18/93/M, justifica especial análise o artigo 24º daquela lei, cujo texto é o seguinte:
Artigo 24º Disposições legais A aprovação de projectos de diplomas que criem serviços de estatística ou contenham quaisquer normas com incidência na estrutura de funcionamento do Sistema Estatístico Nacional deve ser precedida da audição do Conselho Superior de Estatística.
Esta necessidade de audição prévia de um órgão com as características do Conselho Superior de Estatística, imposta por evidentes razões de coordenação do sistema estatístico, não foi criada por esta lei. Com efeito, desde a reforma de 1966 que se atribuiu ao Conselho Nacional de Estatística competência para “emitir parecer sobre as providências legais ou regulamentares que forem projectadas no domínio da estatística” (cfr. artigo 3º do Decreto-Lei nº 46925, de 29 de Março de 1966, que reorganizou o Sistema Estatístico Nacional), competência que foi mantida pelo Decreto-Lei nº 427/73, de 25 de Agosto, que reorganizou novamente o Sistema, tendo este diploma permanecido em vigor até à sua revogação pela Lei nº 6/89 (cfr. artigo 28º, nº
2, desta lei). Ora, ao criar os Serviços Regionais de Estatística, o Decreto-Lei nº 124/80, de
17 de Maio, exigiu, no seu artigo 10º, a audição prévia do Conselho Nacional de Estatística (órgão que, com a Lei nº 6/89, foi substituído pelo Conselho Superior de Estatística) para a definição, pelos governos regionais, da organização interna desses Serviços Regionais.
É, pois, na sequência deste regime que o artigo 24º da Lei n.º 6/89 veio consagrar, por um lado, um dever geral de audição do Conselho Superior de Estatística, na medida em que determinou que deve ser precedida de audição a aprovação de diplomas que contenham normas com incidência na estrutura de funcionamento do Sistema de Estatística Nacional, e, por outro, um dever específico, no que respeita aos diplomas que criem serviços de estatística.
11. O Decreto-Lei n.º 124/80, com o objectivo de criar um subsistema estatístico regional integrado no Sistema Estatístico Nacional, extinguiu as delegações do Instituto Nacional de Estatística nas Regiões Autónomas, criando os Serviços Regionais de Estatística dos Açores e da Madeira, com o duplo estatuto de delegações do Instituto Nacional de Estatística e de órgãos central na Região respectiva, cuja regulamentação interna remeteu para decreto regulamentar regional, “ouvido o Conselho Nacional de Estatística” (artigo 10º, n.º 1).
Na sequência das alterações introduzidas na organização do Governo Regional da Madeira pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/92/M, o Decreto Legislativo Regional n.º 3/93/M, para o que agora releva, conferiu as atribuições do Serviço Regional de Estatística a um departamento designado por Direcção Regional de Estatística, e remeteu também para decreto regulamentar regional a sua organização interna. Após algumas vicissitudes (cfr. o respectivo preâmbulo), foi aprovado, para o efeito, o Decreto Legislativo Regional n.º 18/93/M, diploma que está agora em apreciação. Este Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M veio, assim, aprovar a Orgânica da Direcção Regional de Estatística, enquanto serviço integrado e dependente da Secretaria Regional das Finanças, definindo a sua natureza, atribuições, organização e funcionamento (cfr. seu artigo 1º do Decreto Legislativo Regional e o artigo 1º e as epígrafes dos Capítulos I e II do Anexo), disciplinando, portanto, a organização do subsistema estatístico regional. Dentro deste âmbito, o diploma regula, designadamente, a articulação entre o referido subsistema e o sistema estatístico nacional [vide, designadamente, o artigo 1º, nº 2, o artigo 2º, o artigo 4º, nº 1, alíneas b), c), f), g), h) e m), o artigo 14º, alínea b), o artigo 15º, alínea c), o artigo 16º, alínea b), o artigo 11º, alíneas a) e e), e o artigo 17º, nºs 1 a 3, todos do Anexo ao Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M]. Contém, para além disso, normas que regulam matérias do domínio da estatística nacional, como é o caso da que atribui à Direcção de Serviços de Produção Estatística o “estudo, coordenação, e promoção das medidas respeitantes, nomeadamente, à produção de estatísticas económicas, financeiras, demográficas, sociais, de serviços, agrícolas e censos, quer de âmbito regional quer de âmbito nacional” (artigo 12º). Da sua análise resulta ainda que o diploma, não só inclui normas com incidência na estrutura de funcionamento do Sistema Estatístico Nacional [constantes dos acima referidos artigos 1º, nº 2, 2º, 4º, nº 1, alíneas b), c), f), g), h) e m),
12º, 14º, alínea b), 15º, alínea c), 16º, alínea b), 11º, alíneas a) e e), e
17º, nºs 1 a 3, todos do Anexo], mas também aprova uma orgânica da Direcção Regional de Estatística de tal forma diversa da anterior (do Serviço Regional de Estatística) que se poderá mesmo sustentar que foi criado um novo serviço de estatística. Efectivamente, embora a criação formal da Direcção Regional de Estatística tenha sido levada a cabo pelo Decreto Regulamentar Regional nº 3/93/M, como se viu, é o Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M que opera as mudanças de fundo quanto
à sua natureza e às suas atribuições, organização e funcionamento. De um ponto de vista material, o novo serviço de estatística é, pois, criado pelo diploma sub iudice, podendo mesmo dizer-se que passa de serviço com uma natureza dual
(delegação do Instituto Nacional de Estatística e serviço regional) a verdadeiro serviço regional autónomo. Com efeito, para além não se prever a mencionada vertente de delegação do Instituto Nacional de Estatística, o aumento da autonomia do serviço transparece em diversas disposições. A título de exemplo, assinala-se a norma que substitui o anterior Conselho Orientador por um novo Conselho Administrativo, deixando de contar com um representante do Instituto Nacional de Estatística na qualidade de vogal (artigo 5º do Anexo). De referir, também, a norma que altera a forma de nomeação do director regional de Estatística, não prevendo o acordo prévio do Ministro das Finanças. Refira-se, ainda, que nada se estabelecendo quanto à forma da sua designação (artigo 3º do Anexo), a mesma não poderá deixar de seguir a regra geral, ou seja, a simples nomeação pelo Governo Regional. Em face do exposto, tem de concluir-se que a aprovação do Decreto Legislativo Regional deveria ter sido objecto de prévia audição do Conselho Superior de Estatística, nos termos previstos no artigo 24º da Lei nº 6/89.
12. Importa agora averiguar se a preterição de tal audição configura violação de um princípio fundamental de lei geral da República, ou seja, se a necessidade de audição prévia do Conselho Superior de Estatística deve ser considerada como uma opção fundamental da Lei n.º 6/89, não obstante tratar-se de uma regra de procedimento.
O Tribunal Constitucional, no já referido Acórdão n.º 458/02, foi confrontado com uma questão semelhante, também colocada no âmbito de um pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de um diploma regional, com fundamento em alegada violação de princípios fundamentais de leis gerais da República.
Também aí a resposta pressupunha saber se constituía uma opção legislativa fundamental, constante de lei geral da República, uma regra procedimental, no caso, a necessidade de audição do Conselho de Saúde e Segurança no Trabalho para a Administração Pública, previamente à criação de um subsídio de risco e penosidade, por um Decreto Legislativo Regional.
Nesse aresto, o Tribunal entendeu que a audição em causa não configurava um princípio fundamental de lei geral da República, uma vez que
“(...) a opção legislativa consistente na audição prévia daquele Conselho dificilmente se compatibiliza com numerosas excepções [previstas na lei].
(...) A intervenção do referido Conselho só é legalmente obrigatória na preparação de diplomas regulamentares, e não na preparação de diplomas legislativos. Assim, sendo essa a intenção legislativa, a ter sido formulado um princípio fundamental de uma lei geral de República ele só seria atinente ao próprio poder regulamentar, não deixando a Assembleia Legislativa Regional de poder elaborar um diploma legislativo nesta matéria.
(...) A mera natureza procedimental da figura da audição do Conselho de Saúde e Segurança Social revela o seu carácter puramente instrumental (e, na realidade, desformalizador). Trata-se de um modo, entre outros, de assegurar, caso a caso, a determinação da adequação e da equidade e não se substitui aos critérios que possam revelar opções fundamentais aplicáveis a todo o território nacional.”
Consequentemente, não se concluiu que o Decreto Legislativo Regional questionado tivesse violado um princípio fundamental de lei geral da República.
Não obstante a semelhança do problema jurídico em questão, a solução a que chegou o acórdão acima citado não pode ser transposta para o presente caso. Desde logo porque o dever de audição ora em análise se impõe a um nível mais elevado (não se restringindo ao exercício do poder regulamentar), depois porque o seu âmbito é amplo e não contempla excepções (abrangendo a aprovação de projectos de diplomas “que criem serviços de estatística ou contenham quaisquer normas com incidência na estrutura de funcionamento do Sistema Estatístico Nacional”), mas, sobretudo, porque cumpre uma função fundamental no âmbito das competências e das responsabilidades atribuídas pela Lei n.º 6/89 ao Conselho Superior de Estatística, permitindo-lhe, designadamente, assegurar o cumprimento do princípio da coordenação – princípio estruturante do Sistema Estatístico Nacional. Efectivamente, o Conselho Superior de Estatística é a entidade a quem compete definir as linhas gerais da actividade estatística nacional, estabelecer as respectivas prioridades e, também, garantir a coordenação do Sistema Estatístico Nacional [cfr. artigo 10º, nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 6/89], pelo que a consagração do dever de audição do Conselho Superior de Estatística constitui um dos principais meios de assegurar a prossecução do objectivo da coordenação do Sistema Estatístico Nacional, ideia básica norteadora do Sistema Estatístico Nacional, devendo, pois, ser tido como um princípio fundamental da Lei nº 6/89. Conclui-se, assim, que o dever de audição configura um princípio destinado a assegurar o objectivo da coordenação estatística, constituindo um dos princípios fundamentais da Lei nº 6/89, pelo que o seu incumprimento pela Assembleia Legislativa Regional, previamente à aprovação do Decreto Legislativo Regional nº
18/93/M, consubstancia a violação de um princípio fundamental de uma lei geral da República. Tal violação implica, quer nos termos previstos no artigo 112º, nºs 4 e 5 da Constituição, na redacção decorrente da reforma de 1997, quer, até por maioria de razão, nos termos previstos no artigo 115º, n.ºs 3 e 4, na anterior versão da Constituição, a ilegalidade das normas do Decreto Legislativo Regional nº
18/93/M e do respectivo Anexo. Verificada a ilegalidade de todas as normas em causa, torna-se desnecessário prosseguir a análise das restantes questões de ilegalidade. Dispensa-se, também, pelo mesmo motivo, a averiguação de eventuais ilegalidades pretéritas devidas à violação de normas de leis gerais da República que não constituam seus princípios fundamentais. Efectivamente, os efeitos da declaração de ilegalidade com o fundamento mencionado consomem os efeitos que decorreriam de outras ilegalidades fundadas na violação de quaisquer outras normas ou princípios fundamentais de lei geral da República.
13. O nº 4 do artigo 282º da Constituição confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de fixar os efeitos do declarado vício de ilegalidade, de molde a que o seu alcance seja mais restrito do que o resultante do indicado no nº 1 do mesmo artigo, desde que tal seja justificado por razões conexionadas com a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de excepcional relevo. No presente caso, razões de segurança jurídica aconselham a que se ressalvem os efeitos entretanto produzidos pelas normas ilegais, dado o tempo decorrido desde a entrada em vigor das normas e atendendo, designadamente, a que, tratando-se de um diploma orgânico, os seus efeitos se repercutiram na esfera jurídica de trabalhadores, cuja vida profissional se tem vindo a pautar pelo regime nelas consagrado. O Tribunal entende, assim, que se justifica a limitação dos efeitos da declaração de ilegalidade, de modo a que se produzem apenas a partir da publicação deste acórdão no Diário da República.
14. Nos termos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade das normas do Decreto Legislativo Regional nº 18/93/M, de 13 de Setembro, e do respectivo Anexo, por violação do dever de audição do Conselho Superior de Estatística, previsto no artigo 24º da Lei nº 6/89, de 15 de Abril, enquanto princípio fundamental de lei geral da República;
b) Limitar os efeitos da ilegalidade de modo a que se produzam apenas a partir da publicação deste acórdão no Diário da República.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida