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Proc. n.º 74/04
1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal ao abrigo do artigo
70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão de fls. 146 e segs, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, dizendo no respectivo requerimento de interposição de recurso:
“Através do presente recurso, pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da douta decisão recorrida, ao considerar, como considerou, válida a declaração de quitação geral prestada pelo Trabalhador no âmbito de um acordo de rescisão do seu Contrato de Trabalho, celebrado com a sua entidade patronal, uma vez que uma tal declaração viola o direito ao salário consagrado nos arts. 17°. e 59°., n.º.1, alínea a) da Constituição da República. Mais concretamente: o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da inconstitucionalidade do disposto no Art. 863°, do Código Civil (remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de ordem Pública e Social.”
Já no Tribunal Constitucional foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo junto um parecer e apresentado as seguintes conclusões:
“1º. - A declaração de quitação geral prestada por um trabalhador no acto da cessação do seu contrato de trabalho, determinada por uma situação de reforma por invalidez, no sentido de que está integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e sua cessação, deve ser considerada nula, uma vez que tal declaração, prestada no âmbito da obrigação de pagar as retribuições vencidas na vigência de um contrato de trabalho, contende com interesses de Ordem Pública.
2°. - Por isso, o douto Acórdão recorrido, ao ter julgado válida a declaração de quitação geral prestada no Acordo de Cessação do Contrato de Trabalho celebrado entre o Recorrente e a Recorrida, violou o art. 94°. da LCT criada pelo Decreto-Lei n°.49.408, de 24 de Novembro de 1969.
3°. - Além disso, esse douto Acórdão, com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no art. 863°, do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um Trabalhador, violou o disposto no art. 59°., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos e por tudo quanto V. Exas. doutamente se dignarão suprir, deve
1º. – Declara[r]-se, no caso concreto, a inconstitucionalidade do disposto no art. 863°. do Código Civil, em virtude de a remissão de créditos nele prevista não ser aplicável quando estiverem em causa créditos salariais vencidos no
âmbito de um contrato de trabalho;
2°. - Declarar-se que o douto Acórdão da Relação de Lisboa, em recurso, violou o disposto no art. 59°., n°.1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa;
3°. - Decidir-se, em consequência, que aquele douto Acórdão seja reformulado em termos de ser julgada improcedente a excepção peremptória da remissão abdicativa, conhecendo-se da questão de fundo, isto é, conhecendo-se do pedido formulado pelo autor na presente Acção”.
Não houve contra-alegações.
O relator lavrou, então, despacho nos seguintes termos:
'Afigura-se plausível, como decisão do presente recurso, o não conhecimento do seu objecto, com um duplo fundamento. Por um lado, por o recorrente questionar a constitucionalidade da própria decisão recorrida (cfr. o teor das alegações apresentadas) e não uma norma (ou uma sua interpretação), sendo certo que, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar a constitucionalidade das decisões judiciais impugnadas. Por outro lado, por o recorrente não ter suscitado de forma adequada, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa. Assim, notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre esta questão prévia.
Respondeu o recorrente, defendendo que sustentara nas conclusões das alegações de recurso para este Tribunal dever 'declarar-se, no caso concreto, a inconstitucionalidade do disposto no artº 863º do Código Civil, em virtude de a remissão de créditos nele prevista não ser aplicável quando estiverem em causa créditos salariais vencidos no âmbito de um contrato de trabalho ' e que suscitara, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa, o que o acórdão impugnado não pusera em dúvida ao afirmar que 'é totalmente descabida a alegação de inconstitucionalidade invocada pelo apelante', tratando-se de questão nova que não fora suscitada em primeira instância, quando o poderia ter sido.
Cumpre decidir.
2 - Neste Tribunal foi recentemente proferido o Acórdão n.º 336/04, de 14 de Maio de 2004, onde se colocava questão prévia de não conhecimento do objecto do recurso, em termos rigorosamente iguais aos do presente recurso.
Sendo aí outro o recorrente, mas a mesma parte recorrida - salientando-se, ainda que as alegações no recurso, então para o Tribunal da Relação de Lisboa, e as apresentadas neste Tribunal eram rigorosamente iguais às dos presentes autos - o referido acórdão decidiu não conhecer do objecto do recurso, sufragando a tese do despacho do relator exposta nesse sentido, onde se escreveu:
“1. Como é sabido, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida. É, por isso, jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada. Acresce, que tal recurso pressupõe, igualmente, que o recorrente tenha suscitado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa, e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado - a norma ou a dimensão normativa arguida de inconstitucional -, como ratio decidendi, no julgamento do caso.
2. Ora, segundo resulta dos presentes autos, o recorrente parece pretender que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da decisão recorrida. De facto, no respectivo requerimento de interposição do recurso refere-se que,
“através do presente recurso, pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da douta decisão recorrida, ao considerar válida a declaração de quitação geral prestada pelo Trabalhador no
âmbito de um acordo de rescisão do seu Contrato de Trabalho, celebrado com a sua Entidade Patronal, uma vez que uma tal declaração viola o direito ao salário consagrado nos arts. 17°. e 59°., n.º.1, alínea a) da Constituição da República. Mais concretamente: o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da inconstitucionalidade do disposto no Art. 863°, do Código Civil
(Remissão), na vertente da sua aplicação às relações jus-laborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de Ordem Pública e Social.” Isto mesmo é corroborado, posteriormente, nas conclusões das alegações para este Tribunal quando se afirma “esse douto Acórdão [recorrido], com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no art.
863°, do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um Trabalhador, violou o disposto no art. 59°., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.” (Sublinhados aditados). Ora, a ser assim, uma tal pretensão não pode proceder, conforme se demonstrou no n.º 1 supra, pelo que não será possível conhecer do objecto do presente recurso.
3. Acresce que também se afigura que não se pode considerar que uma questão de constitucionalidade normativa tenha sido “suscitada, pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, conforme exige o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, na única referência que à problemática é feita nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente afirma que “[...] acresce que, dentro do raciocínio que acaba de desenvolver-se, deverá concluir-se que o entendimento sufragado na douta sentença em apreço constitui uma clara violação do direito ao salário que tem consagração no art. 59°, n.º l, alínea a) da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, a aplicação do disposto no art. 863°. do Código Civil a créditos resultantes de um contrato de trabalho envolve uma violação a direitos fundamentais (art. 17°. da CRP)”(itálico aditado). Ora, uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que impende sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa que por este possa vir a ser apreciada.
4. Nestas circunstâncias, parecem não estar preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se poderá, com estes fundamentos, conhecer do seu objecto.
5. Por todo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias.”
Trata-se de despacho que explicitou, mais desenvolvidamente, o entendimento que era, também, o do despacho do relator nos presentes autos, onde, igualmente, e como se viu, se considerava como solução plausível do recurso o não conhecimento do objecto recurso.
As considerações supra transcritas, integralmente acolhidas pelo Acórdão n.º
336/04, são inteiramente transponíveis para o caso em pareço e dão-se aqui por reproduzidas.
E não oferece o recorrente, na sua resposta, argumentação convincente que infirme as razões expostas no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Em primeiro lugar. porque a conclusão das alegações do recurso, evidenciada pelo recorrente, mantém o entendimento de uma inconstitucionalidade fundada na
'aplicação' artigo 863º do Código Civil às relações laborais.
Em segundo lugar, porque, desde logo, o trecho transcrito do acórdão impugnado nem sequer revela que se tenha aí entendido que o recorrente sustentara uma questão de constitucionalidade normativa - mesmo a supor-se, o que se não aceita, que tal fosse decisivo para, por si só, dar como verificado o pressuposto processual em causa do recurso de constitucionalidade.
Em suma, pois, o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação de questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, ao mesmo tempo que dirige a sua censura, em termos de constitucionalidade, à própria decisão impugnada.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 Ucs.
Lisboa, 22 de Junho de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida