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Processo n.º 615/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca da Maia foi o ora recorrente, A., condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 5 anos, com a condição de o arguido, nesse período, pagar determinada quantia à Fazenda Pública.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, negou provimento ao recurso. Para tanto, escudou-se, para o que agora releva, na seguinte fundamentação:
“[…] Em face das provas produzidas, a decisão a que o tribunal recorrido chegou em matéria de facto é plausível, e tanto basta para que seja inatacável. Não tem qualquer sentido falar em erro notório na apreciação da prova, pois que esse vício, como se vê do n° 2, alínea c), do CPP, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e não é isso que alega o recorrente, que argumenta a partir de elementos alheios à sentença, como são as provas produzidas na audiência.
É também descabida a alegação de violação do princípio in dubio pro reo, pois a sentença recorrida não dá indicação de qualquer dúvida que tenha sido resolvida em desfavor do arguido. Improcedendo as críticas dirigidas pelo recorrente à decisão proferida sobre matéria de facto e não ocorrendo outros vícios que sejam de conhecimento oficioso, tem-se essa decisão como definitiva. […] Em segunda linha, diz o recorrente que o art.º 14°, n° 1, do RGIT é inconstitucional, por violar o art.º 1° do Protocolo Adicional n° 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável por força do art° 16°, n° 1, da Constituição da República (quereria dizer art° 8° ?), na medida em que, não tendo condições económicas para pagar as quantias em dívida, a subordinação da suspensão da execução da pena ao pagamento dessas quantias representa uma condenação em pena de prisão por dívidas. Não tem evidentemente razão.[…]”
3. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso, através de um requerimento que, para o que agora interessa, tem o seguinte teor:
“[...] A interpretação da norma do artigo 14° da Lei 15/2001 conduz à violação da norma do artigo 1° do Protocolo n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos dos Homens, aplicável ex vi artigo 16° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa
(e, também, ex vi artigo 8° n.º 2), pelo que foi violado direito, liberdade, e garantia consignado na lei fundamental.
[...] Acresce ainda que, o acórdão recorrido ao afirmar que “…o tribunal recorrido considerou credíveis e isentas as declarações destas últimas três testemunhas, não podendo esta Relação saber se, ao fazê-lo, decidiu mal, pois a credibilidade das declarações prestadas na audiência de julgamento depende de dados que, como a postura de quem as presta, os gestos, o tom de voz, os silêncios, as hesitações, a convicção, etc., escapam ao controlo do tribunal de recurso por lhe faltar a imediação da prova” (cfr . fls. 11 do acórdão, terceiro parágrafo ) e que “…em face das provas produzidas, a decisão a que o tribunal recorrido chegou em matéria de facto é plausível, e tanto basta para que seja inatacável”
(mesma fls. 11 do acórdão, quinto parágrafo), faz uma interpretação manifestamente inconstitucional das normas dos artigos 428° n.º 1, 431° todos do C.P.P. bem como do dever de prova que impede sobre a acusação. Vejamos: ao afirmar que escapa ao controlo do tribunal de recurso, por lhe faltar a imediação, a apreciação acerca da prova produzida, tal equivale a comprimir de forma inaceitável o direito que é conferido às partes (no caso concreto ao arguido /recorrente) de recurso quanto à matéria de facto e, por essa mesma via, os poderes de cognição do próprio Tribunal (cfr. n.º 1 do artigo 428° do C.P.P.) e a susceptibilidade de modificabilidade da decisão recorrida (cfr. Artigo 431° do C.P.P.). Deste modo, e a aceitar-se tal entendimento, sempre haveria que questionar para que serviria a gravação da prova se esta u[m]a vez gravada nunca será objecto de avaliação por parte do tribunal superior pois a este falta-lhe a imediação da prova.! Depois, dizer que, em face das provas produzidas a decisão do tribunal a quo é plausível, tal equivale a negar o mais elementar princípio de presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo e a superar a insuficiência da prova produzida no tribunal de juiz singular para a decisão de facto que foi proferida, seja, significa uma interpretação desconforme ao n.º 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa. Na verdade, o Tribunal da Relação do Porto, ao longo do acórdão e quanto ao recurso interposto quanto à matéria de facto, procede a uma total inversão do
ónus da prova em Direito Penal afirmando, por diversas vezes, que caberia à defesa provar que o Arguido não era gerente da empresa B., quando o que estava em causa era precisamente o inverso: a prova - sem margem para dúvidas -, pela acusação de que o Arguido exercia uma gerência de facto. Assim, não podem subsistir dúvidas que o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto quanto às normas do n.º 1 do artigo 428° (poder de cognição das relações) e do artigo 431° (modificabilidade da decisão recorrida), ambos do Código Penal Português, bem como o entendimento quanto à plausibilidade da prova, trazem em si mesmo ínsitas interpretações daquelas normas que ofendem os mais elementares princípios de direito constitucional e, por essa via, da norma do n.º 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa. Ora, mutatis mutandis a questão da violação daquele princípio constitucional também foi suscitada nas alegações de recurso do seguinte modo:
“…como resulta das declarações prestadas por aquelas testemunhas, o seus depoimentos foram contraditórios revelando-se a mesmas pouco idóneas para legitimar uma prova sem margens para dúvidas, pelo que, nos termos do princípio constitucional in dubio pro reo, se impõe a absolvição do Recorrente. Na verdade, atentemos, desde logo, no facto de durante toda a audiência de julgamento nenhuma das testemunhas (de acusação e de defesa) ouvidas ter sido suficientemente precisa quanto à prática, por parte do Recorrente, de um único acto concreto de gerência, seja, não foram capazes as testemunhas de identificar actos concretos - quer em termos de os definirem materialmente, quer em termos de os circunstanciarem no tempo e no modo da sua prática -, por via dos quais resulte provado que o Recorrente a partir de Dezembro de 1993 continuou a ser o gerente de facto da B., seja, do depoimento das testemunhas (nomeadamente de acusação) não resultou provado que aquelas tinham um conhecimento directo e pessoal de actos concretos praticados pelo Recorrente que envolvessem decisões quanto à administração e representação da B., expressando algumas delas apenas a convicção (intima e subjectiva) de que assim era mas, repita-se, não alicerçando tais opiniões em factos concretos e dos quais tivessem conhecimento pessoal e directo. De notar, que é até com ligeireza que resulta provado o facto sob o n.o 47 (de acordo com o qual, após Dezembro de 1993 e até ao encerramento da B., “. . .o referido C. nunca praticou qualquer acto próprio de gerência, limitando-se a representar a firma, a pedido do arguido, nas negociações estabelecidas com instituições de crédito”, pois que, do simples compulsar dos documentos juntos a fls. 22 a 97, fls. 119 a 150, fls. 345 a 375 (declaração de IRC Modelo 22 referente a 1994), fls. 382 (declaração de IRC Modelo 22, referente a 1996) e fls. 383 (declaração de IRC Modelo 22, referente a 1995), não se mostram assinadas pelo Recorrente mas tão só por aquele aludido C., gerente da Empresa. Ainda é com ligeireza que o Tribunal, apenas e só com as declarações da própria testemunha C. ( . . .) dá como provado sob o n. o 46 que “. . .em 20.11.95 foi designado gerente C., funções essas que cessaram em 06.12.95, por renúncia”, pois, para além de a isenção desta testemunha se encontrar comprometida por via de, objectivamente, se encontrar a depor acerca de factos do seu interesse pessoal, o que resulta da certidão da Conservatória do Registo Comercial da Maia da Firma B. - e que mostra junta a fls. 212 e ss. Dos autos -, é que a renúncia
à gerência só foi inscrita no registo comercial em Dezembro de 1997!!!. Seja, e considerando as disposição do Código do Registo Comercial, impõe-se a conclusão que, juridicamente, a gerência da sociedade B. foi exercida por aquele
- sendo tal facto público e oponível a terceiros - até Dezembro de 1997”, e que, de igual modo, consta das conclusões do recurso:
“…26º Do supra alegado - seja, dos depoimentos produzidos em julgamento - não resulta provada a gerência de facto exercida pelo Recorrente a partir de Dezembro de 1993, tão pouco tal facto resulta provado pelos documentos juntos aos autos . Pelo que,
27.º por aplicação do principio da presunção de inocência do Recorrente, se impõe que se considerem não provados os factos que alicerçam a sua condenação como gerente de facto da empresa B..” […]”
4. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, na parte em que o recorrente pretendia ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 428º, n.º 1 e 431º do Código de Processo Penal, e de não julgamento de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 14º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. É o seguinte, na parte decisória que agora releva, o seu teor:
“[...] 4. Delimitação do objecto do recurso. Nos termos do requerimento de interposição do recurso o recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade do artigo 14º, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e dos artigos 428º, n.º 1 e 431º do Código de Processo Penal. Porém, como se demonstrará sumariamente já de seguida, não é possível conhecer do objecto do recurso no que se refere às normas contidas nestes dois últimos preceitos. Com efeito, não só não vem colocada pelo recorrente, nesta parte, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa - uma vez que, bem vistas as coisas, o que o recorrente verdadeira questiona é a própria decisão do Tribunal da Relação do Porto, na parte em que, em face de toda a prova constante dos autos, entendeu não haver razões para alterar o decidido pela primeira instância em sede de fixação da matéria de facto, questão que não é, evidentemente, de constitucionalidade normativa e que, por isso, não é sindicável pelo Tribunal Constitucional – como se verifica que o recorrente, ao contrário do que alega no requerimento de interposição do recurso, nunca suscitou, antes de proferida a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade reportada àqueles preceitos do Código de Processo Penal, como exige o 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. De facto, se atentarmos no teor da alegação de recurso apresentada no Tribunal da Relação do Porto – designadamente nas passagens para que o recorrente expressamente remete no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, que supra já transcrevemos – verificamos que não foi aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade reportada aos artigos
428º e 431º do Código de Processo Penal, os quais, aliás, nem sequer são, de todo em todo, referidos.
[...]”
6. Inconformado com a decisão, mas apenas na parte em que não tomou conhecimento do objecto do recurso, o recorrente veio apresentar reclamação para a Conferência, através de requerimento do seguinte teor:
“[...] Vem a presente reclamação para a Conferência apresentada da decisão sumária de fls. que, em síntese, e com interesse para esta reclamação, decidiu
'não tomar conhecimento do recurso na parte em que o recorrente pretendia ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 428º nº 1 e 431° do Código de Processo Penal”. Com efeito, considerando os termos vertidos no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e atenta a fundamentação vertida a fls. 7 e 8 da decisão sumária em crise, não pode o Recorrente conformar-se com tal decisão. Ora, a questão em crise concerne à delimitação do objecto do recurso, determinando, neste domínio, o art. 71° e o n° 2 do art. 72°, ambos da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, LTC), que os recursos das decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos às questões da inconstitucionalidade suscitada, só podendo ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar, obrigado a dela conhecer . Assim sendo, considerou a decisão sumária que o 'o recorrente nunca suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos artigos 428°, nº 1 e 431° do Código de Processo Penal em termos de permitir que dela se viesse a conhecer no recurso que agora pretende interpor.', sustentando-o com base em dois pressupostos - por um lado, porque entende que não foi colocada uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, o que inibe o Tribunal Constitucional de proceder à sua sindicância e, por outro, dado que considera que o Recorrente nunca suscitou, antes de proferida a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade com referência àqueles preceitos do Código de Processo Penal -. Posto isto, importa ainda ter em consideração que o Recorrente interpôs o aludido recurso ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art. 70º da LTC, de acordo com a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada ao longo do processo. Ora, de acordo com a melhor Doutrina e Jurisprudência produzida neste âmbito, a admissibilidade desta espécie de fiscalização concreta de constitucionalidade depende, além de outros, da verificação cumulativa de dois requisitos essenciais, por um lado, exige-se que a inconstitucionalidade da norma tenha sido, previamente, suscitada pelo Recorrente durante o processo e de forma processualmente adequada; e, por outro, que tal norma, não obstante a arguição da sua inconstitucionalidade, tenha sido depois utilizada na decisão objecto do recurso, como fundamento normativo do próprio julgamento da causa. No que ao primeiro dos aludidos pressupostos concerne, apenas se pode ter por verificado quando o Recorrente haja suscitado a questão de constitucionalidade de modo perceptível e directo, indicando a disposição legal arguida de inconstitucionalidade ou, no caso de apenas questionar certa interpretação que dela foi feita, enunciando qual o sentido ou a dimensão normativa que tem por violadora da Constituição, sendo certo que esta suscitação terá que ocorrer durante o processo. Em face do exposto, impõe-se, agora determinar qual o sentido que deverá ser atribuído ao pressuposto anteriormente explanado - ou melhor, o que deverá entender-se pela expressão 'durante o processo' -.
É entendimento unanimemente sufragado por este Tribunal Constitucional que aquela expressão deve ser entendido por referência a um sentido funcional, ou seja, por consideração de que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Ou o mesmo será dizer , que a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que aquela questão de inconstitucionalidade respeita. Esta é, inegavelmente, a orientação defendida por este Tribunal Constitucional e que constitui a regra geral na aferição e determinação da admissibilidade e/ou conhecimento do objecto do recurso. Não obstante, não se trata de uma regra absoluta e, nessa medida, totalmente impermeável a qualquer espécie ou tipo de excepção. De facto, Não haverá lugar à aplicação daquela regra sempre que 'o Recorrente não haja tido oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade',
(sublinhado nosso), cfr. Acórdão n° 258/93 do Tribunal Constitucional, in http://www.tribunalconstitucional.pt. Cfr. ainda, e no mesmo sentido, Acórdão n°
370/98 do Tribunal Constitucional, acessível no mesmo endereço electrónico. Ora, da análise do requerimento de interposição de recurso apresentado pelo Recorrente, bem como da consideração dos princípios gerais aplicáveis no domínio do processo penal, designadamente daqueles que concernem à tramitação dos recursos, facilmente se constata que não poderia o Recorrente ter suscitado, durante o processo (leia-se, em momento anterior à data da prolação do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto) e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada aos arts. 428°, n° 1 e 431° do C.P.P., na estrita medida, e tão somente porque, tal questão de inconstitucionalidade é restrita à fase do recurso da decisão do 2° Juízo do Tribunal de Comarca da Maia, referindo-se, exclusivamente aos pressupostos, princípios e fundamentos adoptados e sustentados pelo Tribunal da Relação do Porto na apreciação das alegações de recurso interposto pelo Recorrente, só tendo, assim, surgido com a prolação daquele acórdão. Assim sendo, não poderia o Recorrente, por verdadeira e manifesta impossibilidade jurídica e táctica, ter suscitado tal questão em momento anterior - seja, durante o processo - simplesmente porque a mesma não se tinha ainda colocado, até porque, e como já tivemos oportunidade de salientar, se trata de uma questão que se reporta in totum à fase de recurso. Muito menos poderia o Recorrente, e ao contrário do que nos conduz a decisão sumária, ter antecipado tal questão, pois sempre, e tão só, se trataria de uma mera hipótese, não estando o Recorrente, de qualquer modo, obrigado a agir processualmente em razão de meras previsões, e sem que, em qualquer caso, tal possa constituir impedimento de aquele formular e ver atendida - pelo menos, apreciada - pretensão legítima e determinativa da intervenção daquela que é a instância suprema de defesa e controlo da Lei Fundamental. Mais ainda, salienta-se também que o Recorrente suscitou tal questão no requerimento de interposição de recurso dado que, após a prolação do Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, aquele foi o momento processual imediatamente subsequente - e o único momento que permitiria que tal questão fosse suscitada -. Deste modo, nada mais resta senão concluir que o caso sub iudice configura uma daquelas situações excepcionais, que legitimam e permitem que o Tribunal Constitucional dispense o Recorrente do cumprimento do ónus de suscitar durante o processo a questão de constitucionalidade normativa, atendendo à inexistência de oportunidade processual para cumprir tal ónus - cfr., por todos, o Acórdão n°
155/95 do Tribunal Constitucional, in htt://www.tribunalconstitucional.pt. Refira-se ainda que, as transcrições realizadas pelo Recorrente das suas alegações de recurso no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal constitucional permitem concluir precisamente no mesmo sentido, em nada prejudicando o que vem de ser exposto. Mais sempre se dirá ainda que, o Recorrente, ao invés do afirmado na decisão sumária, suscitou a questão de constitucionalidade em crise de modo processualmente adequado, uma vez que, aquele, no requerimento de interposição do recurso, identificou, de forma clara e expressa, a norma que considera inconstitucional, ou melhor, a sua dimensão interpretativa aplicada na decisão recorrida que se revela desconforme ao plasmado na Lei Fundamental, indicou os: princípio/norma constitucionais que considera violados e apresentou uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida, não se limitando, nessa medida, a afirmar, em abstracto, que uma dada e determinada interpretação daqueles preceitos normativos fosse inconstitucional. Em face do exposto, conclui-se que se tem por observado o primeiro dos pressupostos elencados – a inconstitucionalidade das normas em questão foi atempadamente suscitada pelo recorrente e de forma processualmente adequada -. Por seu turno, também o segundo dos pressupostos aludidos se tem por observado, dado que o objecto do recurso, de acordo com o que resulta do requerimento de interposição, assenta na interpretação normativa extraída do enunciado literal vertido nos arts. 428°, n° 1 e 431° do C.P.P ., tendo tal dimensão interpretativa sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida. Por outro lado, impõe-se também concluir que o Recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, coloca uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, o que determina a existência de questão susceptível de ser submetida aos poderes de sindicância e cognição do Tribunal Constitucional. De facto, e ao contrário do afirmado na decisão sumária, o que é suscitado e questionado pelo Recorrente no aludido requerimento não é a própria decisão do Tribunal da Relação do Porto - decisão essa que, obviamente não está sujeita aos poderes de controlo do Tribunal Constitucional -. A questão sustentada naquele requerimento é antes uma questão de verdadeira inconstitucionalidade normativa, na medida em que, o que o Recorrente invoca e questiona por desconformidade face à Constituição, é a interpretação, manifestamente inconstitucional, extraída pela Tribunal da Relação do Porto daqueles preceitos legais, e cuja aplicação ao caso sub iudice determinou e permitiu sustentar o princípio geral adoptado por aquele Tribunal da Relação de imodificabilidade da decisão recorrida e, assim, da negação do direito ao recurso que assiste às partes quanto à matéria de facto e, por essa mesma via, dos poderes de cognição do próprio tribunal de recurso no que à matéria de facto concerne, o que redunda no mais completo desrespeito pelo principio do in dubio pro reo - pedra estrutural e essencial de qualquer sistema jurídico assente no principio geral do Estado de Direito Democrático -. Assim sendo, e em face do exposto, resulta claro que o que está aqui em questão não é a decisão judicial em si mesma considerada, mas sim a dimensão interpretativa extraída das normas jurídicas ínsitas nos arts. 428° n° 1 e 431° do C.P.P. e que o Tribunal da Relação do Porto aplicou ao caso concreto, em desconformidade patente com o vertido na Lei Fundamental, o que admite - e impõe - controlo normativo da constitucionalidade por parte deste Tribunal Constitucional. Termos em que, e nos melhores de Direito, deve a presente reclamação para a Conferência ser julgada procedente e, consequentemente, tomar o Tribunal Constitucional conhecimento do recurso apresentado pelo Recorrente na parte em que pede a apreciação da constitucionalidade dos arts. 428°, n° 1 e 431° do C.P.C., tudo com as devidas consequências legais […]”
5. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, respondeu da seguinte forma:
“1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2- Na verdade, a recorrente não tratou de delinear, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, qualquer questão de constitucionalidade normativa, reportada aos poderes cognitivos das Relações, em sede de reapreciação da matéria de facto.
3 - Enunciando, de modo preciso e inteligível, um critério normativo, susceptível de aplicação a uma pluralidade de casos e situações.
4 - Limitando-se, em termos substanciais, a dissentir da concreta e casuística reponderação que a 2ª instância entendeu, no caso, fazer da prova gravada - sendo obviamente insindicável pelo Tribunal Constitucional tal juízo casuístico, ligado a livre apreciação da prova pelas instâncias.”
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 14º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Esta decisão não é objecto da presente reclamação, pelo que está transitada em julgado.
8. A decisão reclamada decidiu, ainda, não conhecer do objecto do recurso, na parte em que o recorrente pretendia ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 428º, n.º 1 e 431º do Código de Processo Penal. Esta decisão fundou-se quer na circunstância de não vir colocada pelo recorrente, no requerimento de interposição do recurso, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, susceptível de ser objecto do recurso a que se refere a alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, quer na circunstância de nunca ter o recorrente, ao contrário do que alegava naquele requerimento, suscitado durante o processo qualquer questão de constitucionalidade reportada àqueles preceitos.
Com a presente reclamação o recorrente pretende contestar que seja assim. Vejamos se tem razão.
8.1. Desde logo, não tem razão quando alega que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, identificou no requerimento de interposição do recurso uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC.
Na verdade, mesmo sem que seja necessário concluir que não é legítimo, em face de um juízo do tribunal sobre a credibilidade das testemunhas, deduzir, como o faz o ora reclamante, que o Tribunal da Relação do Porto “afirma[] que escapa ao controlo do tribunal de recurso, por lhe faltar a imediação, a apreciação acerca da prova produzida”, o facto é que, conforme se demonstrou já na decisão reclamada, em termos que não são abalados pela presente reclamação, nunca enunciou o ora reclamante uma exacta dimensão normativa dos artigos 428º e 431º do CPP que, no seu entendimento, tendo sido aplicada pela decisão recorrida, seria incompatível com a Constituição. É que, como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, colocar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de poder ser objecto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, não é apenas afirmar que um determinado preceito, na sua aplicação a uma situação concreta que se descreve, é inconstitucional - e é isto, em síntese, que faz o recorrente no requerimento de interposição do recurso. Colocar verdadeiramente uma questão de constitucionalidade reportada a uma determinado sentido normativo de um preceito é, muito mais do que isso, identificar esse sentido normativo que se considera inconstitucional – é, como afirma o representante do Ministério Público neste Tribunal, enunciar um critério normativo susceptível de generalização. E, foi isto, que o recorrente nunca fez no requerimento de interposição do recurso. Aliás, volta a não o fazer na fundamentação da presente reclamação, onde, por várias vezes, afirma que o que “está em questão não é a decisão judicial em si mesma considerada, mas sim a dimensão interpretativa extraída das normas jurídicas ínsitas nos arts. 428° n° 1 e 431° do C.P.P. e que o Tribunal da Relação do Porto aplicou ao caso concreto, em desconformidade patente com o vertido na Lei Fundamental”, sem que, por uma única vez que fosse, identificasse qual seria essa dimensão interpretativa que, no seu entendimento, é pressuposta pela decisão recorrida e seria inconstitucional.
8.2. De todo o modo, a decisão sumária reclamada escudou-se ainda em que, ao contrário do que alegava no requerimento de interposição do recurso, o recorrente nunca teria suscitado, antes de proferida a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade reportada aos artigos 428º, n.º 1 e 431º do Código de Processo Penal, o que, só por si, sempre obstaria à possibilidade de conhecer do objecto do recurso.
Vem agora o reclamante invocar que nunca suscitou, antes de proferida a decisão recorrida, a inconstitucionalidade dos artigos 428º, n.º 1 e 431º do Código de Processo Penal, porque não teve oportunidade processual de o fazer. Alega, para sustentar essa conclusão, que:
“[...] não poderia [...] por verdadeira e manifesta impossibilidade jurídica e táctica, ter suscitado tal questão em momento anterior - seja, durante o processo - simplesmente porque a mesma não se tinha ainda colocado, até porque, e como já tivemos oportunidade de salientar, se trata de uma questão que se reporta in totum à fase de recurso. Muito menos poderia o Recorrente, e ao contrário do que nos conduz a decisão sumária, ter antecipado tal questão, pois sempre, e tão só, se trataria de uma mera hipótese, não estando o Recorrente, de qualquer modo, obrigado a agir processualmente em razão de meras previsões, e sem que, em qualquer caso, tal possa constituir impedimento de aquele formular e ver atendida - pelo menos, apreciada - pretensão legítima e determinativa da intervenção daquela que é a instância suprema de defesa e controlo da Lei Fundamental [...]” Evidencie-se, antes de mais, que esta posição traduz uma alteração ao afirmado no requerimento de interposição do recurso. Enquanto que neste, e em cumprimento do disposto no art. 75º-A, n.º 2, da LTC, o recorrente afirmava ter suscitado a inconstitucionalidade dos artigos 428º e 431º do CPP na alegação de recurso apresentada junto do Tribunal da Relação do Porto, transcrevendo longos passos onde “mutatis mutandis a questão da violação daquele princípio constitucional também foi suscitada”, vem agora reconhecer que, afinal, não o fez, mas que tal se deveu a falta de oportunidade processual.
Não tem, porém, razão.
É que, de facto, não só não é verdade que - por se tratar de preceitos respeitantes aos poderes das Relações que, em sede de recurso, só vão ser aplicados pela primeira vez pela decisão recorrida - existisse qualquer
“impossibilidade jurídica e táctica”, para utilizar a expressão do reclamante, de suscitar a questão em momento anterior, mas também não é verdade que não poderia ter antecipado a sua aplicação, por não estar “obrigado a agir processualmente em razão de meras previsões”.
Com efeito, como o Tribunal tem repetidamente afirmado, ao contrário do que é pressuposto pela argumentação do recorrente, recai efectivamente sobre a parte o
ónus de considerar as várias possibilidades interpretativas susceptíveis de ser seguidas e utilizadas na decisão e de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o Acórdão n.º 479/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., pgs. 149 e 150). Só estará o recorrente dispensado de suscitar a inconstitucionalidade da norma - ou do sentido normativo - antes de proferida a decisão recorrida quando a sua aplicação ao caso - ou a sua aplicação com aquele sentido – seja de todo em todo insólita ou imprevisível. Mas, no caso concreto, não é sequer possível saber se seria essa a situação factual que se encontra retratada nos autos. É que, para que o Tribunal pudesse concluir que os artigos
428º e 431º do CPP tinham sido aplicados numa dimensão normativa insólita ou imprevisível, essa dimensão normativa tinha de vir identificada pelo recorrente, o que, como já se demonstrou supra, não acontece.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada na parte em que não toma conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Julho de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida