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Processo n.º 640/2004 Plenário Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. Nos termos do disposto nos artigos 281.º, nº 3 da Constituição e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional veio requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da “norma constante do artigo 10º, n.º 4, da Lei nº 85/2001, de 4 de Agosto, na parte em que determina que, na execução das sentenças anulatórias dos actos de liquidação, será deduzida, na restituição das quantias pagas, a parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado.” Invocou, para o efeito, ter sido a mesma norma julgada inconstitucional, “por violação do disposto nos artigos 2º, 111º, n.º 3 e 205º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”, pelo Acórdão nº 86/2004 do plenário (publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 2004) e pelas decisões sumárias n.ºs 169/2004 e 170/2004 «no segmento ou dimensão aplicável à “participação emolumentar dos funcionários do registo comercial”», e pelo Acórdão n.º 152/2004
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e pelas decisões sumárias n.ºs
171/2004 e 172/2004, «no segmento ou dimensão aplicável à “participação emolumentar dos funcionários notariais”».
2. Notificado para o efeito, nos termos previstos nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos e juntar os exemplares do Diário da República que contêm os trabalhos preparatórios do diploma em apreciação. Nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 63º da Lei nº 28/82, foi apresentado, discutido e aprovado por maioria, em plenário, o memorando do Presidente do Tribunal. Cumpre agora decidir.
3. É o seguinte o texto do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, cujo n.º 4 está agora em causa:
“Artigo 10º Sistema de financiamento da justiça
1 – Mantêm-se em vigor as tabelas emolumentares aplicáveis aos actos registrais e notariais aprovadas pela Portaria n.º 996/98, de 25 de Novembro, com as alterações introduzidas pelas Portarias n.ºs 1007-A/98, de 2 de Dezembro, e
684/99, de 24 de Agosto.
2 – Fica o Governo autorizado, pelo período de 90 dias, a alterar as tabelas emolumentares dos registos e notariado, com o seguinte sentido e alcance: a) Conformação das tabelas emolumentares ao disposto na Directiva n.º
69/335/CEE, do Conselho, de 17 de Julho, relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais; b) Adaptação das demais tabelas em conformidade com o princípio da proporcionalidade da taxa ao custo do serviço prestado.
3 – As tabelas emolumentares a aprovar nos termos do número anterior aplicam-se aos actos registrais e notariais cuja anterior liquidação emolumentar tenha sido anulada por sentença judicial transitada em julgado.
4 – No prazo de 30 dias, contados da entrada em vigor das tabelas previstas no n.º 2, serão integralmente executadas as sentenças anulatórias dos actos de liquidação, mediante a restituição da quantia paga, deduzida do valor correspondente aos emolumentos devidos nos termos das novas tabelas, e da parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado.
5 – Fica o Governo autorizado a proceder à alteração do Código das Custas Judiciais e das tabelas emolumentares aplicáveis aos actos de registo e notariado com o seguinte sentido e alcance: a) (...); b) Substituição das tabelas emolumentares aplicáveis aos actos de registo e notariado por rubricas de imposto do selo incidindo sobre actos notariais e registrais, constituindo receita própria do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça; c) Manutenção da participação dos funcionários dos registos e notariado na receita pública prevista na alínea anterior.”
4. Pela Lei n.º 85/2001, o Governo foi autorizado a alterar e a substituir as tabelas emolumentares dos registos e do notariado, então constantes da Portaria n.º 996/98, de 25 de Novembro, nos termos definidos pelos preceitos atrás transcritos.
Na sequência desta autorização, vieram a ser aprovados os Decretos-Leis n.ºs 322-A/2001 e 322-B/2001, ambos de 14 de Dezembro, o primeiro aprovando o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, com as respectivas tabelas, o segundo alterando o Código do Imposto do Selo e a Tabela Geral anexa, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro.
Verificando-se, todavia, que, por sentença transitada em julgado, haviam sido anulados vários actos de liquidação de emolumentos notariais e registrais, efectuados de acordo com as tabelas vigentes na altura, julgadas ilegais, a Lei n.º 85/2001 veio, no seu artigo 10º, definir regras aplicáveis à respectiva execução.
Assim, no n.º 4 desse artigo 10º, a Lei determinou que, no prazo ali fixado, fosse dada execução às referidas sentenças anulatórias; mas que, quanto
às quantias a restituir aos recorrentes vencedores, fosse deduzido, por um lado, o valor correspondente aos emolumentos, calculados segundo as (novas) tabelas que viessem a ser aprovadas ao abrigo do n.º 2 do mesmo artigo e, por outro, a
“parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado”.
Para o cálculo desta “parcela”, fora tomada em conta, para a realização da liquidação anulada, a “receita mensal líquida” da “conservatória, secretaria ou cartório notarial e arquivo”, nos termos do disposto no artigo 54º do Decreto-Lei n.º 519-F/2/79, de 29 de Dezembro; e essa receita, por sua vez, era constituída pelo “total dos emolumentos cobrados em cada mês” (n.º 1 do artigo 65º do mesmo diploma).
Não determinando o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 nenhuma alteração ao montante correspondente à “participação emolumentar” que era deduzido da quantia a restituir, é inevitável concluir que esse montante não restituído tinha de ser calculado em função das tabelas que haviam sido aplicadas nos actos de liquidação anulados, por serem julgadas ilegais.
Em suma, ao regular a execução das sentenças anulatórias, das quais resultava a obrigação de restituir a quantia cobrada em aplicação de tabelas julgadas ilegais, o artigo 10º da Lei n.º 85/2001 distinguiu duas parcelas (não individualizadas nos actos de liquidação impugnados, mas individualizáveis nos termos já indicados): a correspondente aos emolumentos e a relativa à participação emolumentar.
Quanto à primeira, seria restituída, deduzido o valor correspondente
à aplicação da nova tabela de emolumentos; quanto à segunda, não era restituída.
5. O já citado Acórdão n.º 86/2004, considerando, em primeiro lugar, que o regime de execução das sentenças assim definido se destinava apenas a abranger “os casos em que a decisão de anulação, baseada” na ilegalidade da tabela aplicada, “adquiriu força de caso julgado”, e, em segundo lugar, que era
“parcialmente incompatível com aquele julgamento”, julgou inconstitucional “a norma constante do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 (...), na parte em que determina que, na execução das sentenças anulatórias dos actos de liquidação, será deduzida, na restituição da quantia paga, a parcela correspondente
à participação emolumentar dos funcionários do registo comercial”.
Entendeu então o Tribunal Constitucional que tal norma é inconstitucional “por violação dos (...) princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças, consagrados nos artigos
2º, 111º, n.º 1, e 205º, n.º 2, da Constituição”.
Para chegar a tal conclusão, disse-se no mesmo Acórdão n.º 86/2004:
«11. Sobre o alcance da garantia constitucional do caso julgado, assente, como se sabe, no princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito
(artigo 2º da Constituição), na especial força vinculativa das decisões dos tribunais (actual n.º 2 do artigo 205º) e no princípio da separação de poderes
(artigos 2º e 111º, n.º 1), bem como no n.º 3 do artigo 282º da Constituição, logo a Comissão Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, entre outros, no seu Acórdão n.º 87, de 16 de Fevereiro de 1978 (in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978, pp. 24 e seguintes). Para o efeito, a Comissão Constitucional veio distinguir “entre a garantia do caso julgado relativamente a decisões subsequentes, também concretas e individuais, de quaisquer órgãos, incluindo órgãos legislativos, e a garantia do caso julgado relativamente a leis gerais que, incidindo sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença, vão determinar a sua alterabilidade”. Quanto à primeira hipótese, “Nenhuma hesitação deve[ria] haver acerca da inconstitucionalidade de uma decisão política ou administrativa, até sob a forma de lei, que eventualmente pusesse em causa uma sentença com trânsito em julgado. A inconstitucionalidade resultaria do artigo 210º imediatamente [correspondente ao actual artigo 205º], do princípio da separação dos órgãos de soberania consagrado no artigo 114º, n.º 1, [correspondente ao actual artigo 111º] (de que a independência dos tribunais, nos termos do artigo 208º [correspondente ao artigo 203º], é corolário), e, quanto a leis individuais que afectassem certas e determinadas sentenças, dos [...] preceitos que apontam a generalidade como característica das normas jurídicas”. Já quanto à segunda, para a Comissão Constitucional, “o modo como o artigo 210º da Constituição [versão originária] se formou, os seus termos muito genéricos e até a sua epígrafe não justificam a conclusão [...] segundo a qual ele valeria também para leis em sentido material, no mesmo plano em que vale para quaisquer outros actos do Estado ou dos particulares”. Assim, “para além do disposto no artigo 210º da Constituição, não se encontra princípio constitucional que, só por si, impeça a lei geral [...] de se reflectir sobre quaisquer situações e relações, mesmo que haja sentença com trânsito em julgado”, e, por outro lado,
“a segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica”. E conclui que “uma lei geral, em princípio, não deverá afectar o caso julgado, salvo vontade contrária do legislador, apreciada em termos de interesses substanciais mais relevantes”. No acórdão n.º 103, também da Comissão Constitucional (Apêndice ao Diário da República de 29 de Dezembro de 1978), voltou a prevalecer a ideia de que o caso julgado não era um valor absoluto:
«[...] O problema de saber se o caso julgado pode ser afectado por lei retroactiva insere-se no problema mais geral de saber se, e em que medida, a Constituição admite leis retroactivas. A não ser para as leis penais (artigo 29.º), não se encontra na actual Constituição, bem como nas anteriores, à excepção da Carta Constitucional
(artigo 145.º, § 2.º), qualquer preceito expresso a tal respeito.
Daí que todos concordem que o princípio da não retroactividade das leis civis não encontre apoio na lei fundamental e não haja, por isso, obstáculo a que o legislador ordinário emita leis retroactivas desde que com essa retroactividade se não afectem outros princípios constitucionais, ressalva que, aliás, não é privativa das leis retroactivas (v.g. uma lei, retroactiva ou não, não pode violar direitos fundamentais do cidadão, a não ser nos limitados termos que a própria Constituição consinta).
É, porém, precisamente nesta série de leis retroactivas que é afirmado por uns e contestado por outros que um dos limites a tais leis é o constituído por aquelas situações que tenham sido definidas de modo inatacável por sentença transitada em julgado.
Entre nós, o princípio da intangibilidade tem sido extraído do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (e, no domínio da Constituição de 1933, nos seus artigos 91.º, n.º 1, e 123.º, § 2.º, de teor semelhante), dizendo-se que, se a cessação de vigência de leis inconstitucionais, operando retroactivamente, encontra tal limite, o mesmo deve acontecer quando uma lei, sem esse ou outros vícios de legitimidade, é substituída por uma lei nova que retroaja a situações ou factos passados, por um argumento, portanto, de maioria de razão ou argumento a fortiori (ubi eadem est ratio legis eadem est dispositio).
Faz-se, assim, pelo menos, interpretação extensiva, se não mesmo analógica, do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
Não se debruçam, porém, os sequazes desta interpretação sobre a razão de ser deste último preceito (ou dos preceitos paralelos da Constituição anterior), postulando-se, pura e simplesmente, uma substancial identidade de razões para um caso e para outro.
(...)
Continua a pensar-se que o apregoado princípio da intangibilidade do caso julgado pela lei ordinária não tem consagração constitucional mesmo implícita, não passando de um princípio geral do direito a observar na interpretação e aplicação das leis, e que, por isso, se impõe ao intérprete, mas não ao legislador.
(...)
O segundo aspecto do problema das relações entre lei retroactiva e caso julgado – o da separação entre o poder legislativo e o judiciário (artigo
114.º da Constituição) de que são corolários ou desenvolvimentos o princípio da exclusiva sujeição dos tribunais à lei (e à Constituição, subentende-se) do artigo 208.º, bem como da obrigatoriedade e executoriedade das decisões perante as demais autoridades (artigo 210.º) – também não leva à solução defendida por alguns juristas, menos numerosos aqui, da intangibilidade constitucional do caso julgado pelo legislador ordinário.»
12. Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre o alcance da protecção constitucional do caso julgado, mantendo a orientação desenhada pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional. Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal observou por diversas vezes que decorre da Constituição a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a constituir caso julgado. Com efeito, no Acórdão n.º 352/86 (Diário da República, II série, de 4 de Julho de 1987), considerou “inerente às decisões judiciais insusceptíveis de recurso ordinário” a força de caso julgado, força essa que “se dev[e] arvorar em princípio constitucional implícito, como decorre, ainda, do art. 282º, n.º 3, da CRP'. No mesmo sentido, disse-se no Acórdão n.º 250/96 (in Diário da República, II Série, de 8 de Maio de 1996), que, “para que um Tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado”; (cfr., ainda, o Acórdão n.º 506/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1996).
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional continuou a afirmar que o caso julgado é um valor constitucionalmente tutelado, nomeadamente no seu Acórdão n.º 677/98 (Diário da República, II série, de 4 de Março de 1999): “É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica
(cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t.II, 3º ed., reimp., Coimbra, 1996, p.494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 257), se trata, sem dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.
Em terceiro lugar, reafirmou a ausência da consagração na Constituição de um princípio de intangibilidade absoluta do caso julgado:
«2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de direito democrático – consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º – e, também, num princípio de separação de poderes – consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º – e no nº 2 do artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto constitucional.
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição.
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam 'ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável ao arguido'. Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável» (Acórdão n.º 644/98, Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1999). Por último, e em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tem reconhecido que, apesar de não ter valor absoluto a tutela constitucional do caso julgado, uma lei retroactiva não pode “atingir o caso julgado nos casos em que, segundo a Constituição, é proibida qualquer retroactividade, por intermédio de uma lei individual” (Luís Nunes de Almeida, Portugal, in Constitution et Sécurité Juridique, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, XV, 1999, p. 249 e segs.). É o que sucede, como se sabe, com as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (n.º3 do artigo 18º da Constituição), as leis penais incriminadoras (artigo 29º, n.º 1) ou (após a revisão constitucional de 1997) as leis que criam impostos (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 304/2001, Diário da República, II série, de 9 de Novembro de 2009).
13. Assim apurada a orientação que tem vindo a ser seguida pelo Tribunal Constitucional, e que se considera de manter, há que a aplicar à norma em apreciação, que, diga-se desde já, não respeita a nenhuma das três áreas, acabadas de referir, em que é constitucionalmente proibida qualquer retroactividade. Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes se pronunciou no sentido de que os emolumentos notariais e registrais correspondem a taxas e não a impostos (cfr. Acórdãos n.ºs 115/2002, Diário da República, II série, de 28 de Maio de 2002, 210/2002 ou 306/2002, os dois últimos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Esta circunstância não garante, todavia, a legitimidade constitucional da norma em apreciação no presente recurso. É que o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º
85/2001, na parte que lhe respeita, e como se viu já, apenas se pretende aplicar a situações já definidas por sentença transitada em julgado; e o seu efeito traduz-se, também se viu já, em contrariar (parcialmente) a definição da relação controvertida resultante da decisão anulatória. Não cabe ao Tribunal Constitucional, no âmbito da apreciação deste recurso, pronunciar-se sobre a forma como deveria ou não ser executado o acórdão anulatório; a verdade, todavia, é que não pode deixar de observar que, ao determinar à Administração que deduza a quantia correspondente à participação emolumentar, o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 está a definir uma forma de execução “das sentenças anulatórias dos actos de liquidação” (n.º 4 citado) que implica que “a Administração [vá] praticar um acto idêntico com o(...) mesmo(...) vício(...) individualizado(...) e condenado(...) pelo juiz administrativo”, o que provocaria “nulidade, por ofensa do caso julgado” desse acto (VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa”, 4ª ed., Coimbra, 2003, p.
321-322). Não pode, pois, o Tribunal Constitucional deixar de concluir pela inconstitucionalidade da mesma norma, por violação dos referidos princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças, consagrados nos artigos 2º, 111º, n.º 1 e 205º, n.º 2, da Constituição.
14. Com efeito, e recordando a distinção, atrás transcrita, feita pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional, não se pode dizer que a norma em apreciação apenas vem regular tipos de situações nas quais se incluiriam, também (isto é, além de outras), situações já definidas por sentença transitada em julgado; impede-o a circunstância de apenas se pretender aplicar a anulações já julgadas definitivamente e, logo, perfeitamente identificadas, contrariando
(parcialmente) a determinação judicial de restituição da quantia paga nos termos de uma tabela julgada ilegal. Resta, assim, concluir que a norma é inconstitucional, por violação, nos termos já enunciados, dos princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças dos tribunais, consagrados nos artigos 2º,
111º, n.º 1 e 205, n.º 2º da Constituição.
15. Aliás, mesmo que assim se não entenda, por se ver ainda na norma uma das
“leis gerais que incid[em] sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença”, ocorreria igualmente inconstitucionalidade por não se encontrar justificada por um valor constitucionalmente mais relevante, pelo menos, do que o da segurança jurídica, proporcionada pelo caso julgado.
É que, por um lado, é exacto, como observa o Ministério Público, que a participação emolumentar integra a remuneração dos conservadores, constituindo uma parte variável do seu vencimento (artigos 52º e seguintes do Decreto-Lei n.º
519-F2/79, de 29 de Dezembro); e que o julgamento de inconstitucionalidade implica a imposição ao Estado do dever de restituir uma quantia que, entretanto, já foi entregue aos seus destinatários últimos. Por outro, no entanto, não podemos esquecer que a norma se aplica apenas aos casos em que foi interposto (oportunamente) recurso de anulação das liquidações.»
6. É este julgamento de inconstitucionalidade, que vale igualmente para funcionários dos registos e do notariado, que agora se reitera, pelos mesmos fundamentos.
7. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto nos artigos 2º, 111º, n.º 3 e 205º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º
4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, na parte em que determina que, na execução das sentenças anulatórias dos actos de liquidação, será deduzida, na restituição da quantia paga, a parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e do notariado.
Lisboa, 21 de Setembro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito (vencida, pelos fundamentos constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 86/2004) Benjamim Rodrigues (vencido pelas razões constantes do voto de vencido que apus no Acórdão nº 86/2004) Gil Galvão (vencido, conforme declaração aposta ao Acórdão nº 86/2004) Rui Manuel Moura Ramos