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Processo n.º 708/2004
2.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e mulher e recorrido o Fundo de Garantia Automóvel, a Relatora proferiu a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e mulher e como recorrido o Fundo de Garantia Automóvel, o recorrido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que havia confirmado a sentença da 1ª instância que condenou a instituição recorrente a pagar uma indemnização por acidente de viação. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Janeiro de 2004, considerou o seguinte:
Ora, a propósito do modo como eclodiu o ajuizado sinistro estradal, importa analisar o seguinte quadro factual:
- A via no local tem dois sentidos de trânsito e 6 metros de largura;
- O ciclomotor H----, onde se faziam transportar os AA, circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, junto à berma;
- Na altura em que o H--- abordava uma curva para a sua direita, sem visibilidade, o furgão descreveu a mesma curva em sentido contrário, invadindo parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;
- Ao aperceber-se da aproximação do dito furgão que circulava nas condições atrás indicadas e para evitar ser por ele embatido, o autor guinou o seu ciclomotor para a direita e, perdendo imediatamente o domínio do mesmo, foi com ele embater na parede de uma casa ali existente, que ladeia a via;
- O embate deu-se na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido do H----. Pois bem. Ao invés do que se entendeu no acórdão recorrido, não se pode extrair, com segurança, deste quadro factual, que tenha sido o comportamento do condutor do furgão que deu azo ao ajuizado acidente de viação.
É certo que invadiu parcialmente a hemifaixa de rodagem contrária, o que constitui violação do Código da Estrada. Porém, não se sabendo em que medida se produziu essa invasão, e não tendo chegado a haver qualquer contacto físico entre as duas referidas viaturas, não se pode asseverar que aquele comportamento ilícito, aquela contra-ordenação tenha sido causal do sinistro. O furgão tanto pode ter invadido a meia faixa de rodagem do lado esquerdo v.g. em apenas 20 cm, deixando ao H--- ainda 2,80 metros de largura para passar sem qualquer perigo de colisão até porque circulava junto à berma, como a pode ter invadido, v.g., em 2 metros, deixando livre apenas um escasso metro de largura da meia-faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha do furgão. Na primeira hipótese, evidentemente que se não justificava a invocada “manobra de salvamento” - só possível, nessas circunstâncias, por precipitação, excesso de velocidade, inabilidade do autor... - a qual, porém, já poderia obter plena justificação na segunda hipótese atrás aventada. Os dados de facto provados são insuficientes para um correcto apuramento da causa, que, em termos de causalidade adequada, deu origem aos danos. Tem portanto razão o recorrente FGA quando sustenta que se não logrou provar quem foi o responsável pelo eclodir do sinistro. Sendo certo que é questão de direito, cognoscível pelo STJ, valorar os factos à luz da normatividade, para se apurar se a factualidade assente pelas instâncias era ou não adequada à produção do evento danoso, e também para se determinar a culpa, apenas sendo o substracto material do nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos, e da culpa, em princípio insindicável pelo STJ, por se tratar, aí sim, de pura matéria de facto, como se decidiu no acórdão do STJ, de
08.03.94, tirado no processo n° 84.885, em que foi relator o Conselheiro B.. E como o furgão não interveio naturalisticamente no acidente, visto não ter havido qualquer contacto físico entre as duas mencionadas viaturas, não há lugar também a enveredar-se pela responsabilidade objectiva ou pelo risco.
Foi arguida a nulidade do acórdão de 19 de Janeiro de 2004, arguição indeferida por acórdão de 20 de Abril de 2004.
2. Os recorrentes interpuseram recurso de constitucionalidade, nos seguintes termos:
A. e C., Recorridos nos autos sob o n.º de registo à margem referenciados, notificados da douta resposta à reclamação do acórdão que sobre os mesmos impendeu, mui respeitosamente, vêm nos termos “ex vi” o disposto na alínea b), do n° 1, do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, requerer o seguinte: Na presente acção declarativa, com processo ordinário, destinada a exigir a responsabilidade civil, emergente de acidente de viação, ao Fundo de Garantia Automóvel este foi condenado em primeira instância a pagar ao Recorrido A. a quantia de € 65.384,09 e à Recorrida C., a quantia de € 69.881,59. A aludida sentença, proferida pelo Tribunal de primeira instância, foi objecto de recurso de apelação, intentado pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel, para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este Venerando Tribunal proferido Acórdão, no qual confirmava inteiramente a sentença recorrida. Por seu turno, o mencionado Acórdão foi objecto de recurso de revista, intentado pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este Venerando Tribunal proferido o Acórdão ora em apreço, no qual concedeu revista, assim revogando o Acórdão recorrido e absolvendo o Fundo de Garantia Automóvel do Pedido. Deste douto e inopinado Acórdão, os Recorridos reclamaram para a conferência, arguindo nos termos do art. 668º do C.P.C. “ex vi” arts. 716° e 732° do C.P.C. as seguintes inconstitucionalidades:
“3 - Atenta esta matéria de facto concluíram Vossas Excelências que apesar de estar dado como provado que o furgão “... invadiu parcialmente a hemifaixa de rodagem contrária, o que constitui violação do Código da Estrada.” - facto ilícito estradal - e “... não se sabendo em que medida se produziu essa invasão, e não tendo chegado a haver qualquer contacto físico entre as duas referidas viaturas, não se pode asseverar que aquele comportamento ilícito, aquela contra-ordenação tenha sido causal do sinistro.” E, continuam Vossas Excelências,
“O furgão tanto pode ter invadido a meia faixa de rodagem do lado esquerdo v.g. em apenas 20 cm deixando ao H--- ainda 2,80 metros largura para passar sem qualquer perigo de colisão, até porque circulava junto à berma, como a pode ter invadido, v.g., em 2 metros, deixando livre apenas um escasso metro de largura da meia faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha do furgão.” Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, estes factos não são constitutivos do direito dos AA., ao contrário, esses factos afastariam a responsabilidade do lesante e constituiriam matéria de contra-prova no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Matéria que deveria ter sido alegada e provada pelo Réu no sentido de afastar a sua responsabilidade, o que não se verificou. Aliás, é um facto notório, que não carece de prova, nos termos do art. 514° do C.P.C, que foi exclusivamente o veículo desconhecido que provocou o acidente dos autos. Com efeito, é do conhecimento geral e deriva das regras da experiência comum que se dois veículos se cruzam numa curva sem visibilidade e há um deles que invade parcialmente a faixa contrária, no momento em que se cruzam - factos todos dados como provados -, e com esta acção provoca um acidente, é claro como a água que o veículo que invade a faixa contrária é responsável pelo acidente. Na verdade, o condutor do outro veículo só tem duas hipóteses: 1ª) desvia-se para evitar ser embatido; ou 2ª) deixa-se embater. Ora, o que Vossas Excelências dizem é que o condutor do ciclomotor e o seu ocupante para terem direito a ser indemnizados, o condutor do ciclomotor não se devia ter desviado, mas sim devia deixar-se embater pelo veículo desconhecido. Ora, este raciocínio, com todo o respeito, que é muito, além de estar despojado do princípio que norteia toda e qualquer decisão justa, que é o princípio da razoabilidade, está em rota de colisão com o art. 20° da C.R.P., constituindo, como constitui, violação do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático. Acresce que, é pacífico na jurisprudência que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica – na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência (Acórdãos de 28/05/74, in BMJ 237°-231, de 20/12/90, in BMJ 402°-558, de 10/01/91, in BMJ 403°-334, de 26/02/92, in BMJ 414°-533, de 10/03/98, in BMJ
475°-635, de 09/07/98, in BMJ 479°-592, 03B2960 de 06/11/03 e de 20/11/03, processo n.º03A3450, JSTJ000, ambosin www.dgsi.pt) . Não sendo aquela matéria (que nem sequer está alegada) constitutiva do direito dos AA. e tendo Vossas Excelências fundamentado a decisão com base na matéria de facto dada como provada, tal fundamentação não comporta tal decisão, o que constitui nulidade, que se invoca, com as legais consequências, “nos termos das alíneas c) e d) do n.° 1 do art 668.º. E, ao considerarem que aquela matéria é facto “constitutivo do direito, quando, na verdade, é matéria de contra-prova, faz-se uma interpretação de tal forma castradora dos direitos do lesado que vai ao arrepio de toda a jurisprudência dominante, o que constitui violação do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático. Tal interpretação não é comportada pela ratio legis do instituto da responsabilidade civil extra-contratual, nomeadamente o art. 483° conjugado com o art. 342º, ambos do C.C., estando, como está, a aludida interpretação ferida de inconstitucionalidade que se invoca com as legais consequências, com efeito o aresto em causa na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa das referidas normas.” E,
“5 - Entendem Vossas Excelências que não estando definida a culpa na produção do acidente não se pode enveredar pela responsabilidade objectiva ou pelo risco porquanto, “... o furgão não interveio naturalisticamente no acidente, visto não ter havido qualquer contacto físico entre as duas mencionadas viaturas...”. Resulta da matéria provada que:
“ – Na altura em que o H---- abordava uma curva para a sua direita, sem visibilidade, o furgão descreveu a mesma curva em sentido contrário, invadindo parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;
- Ao aperceber-se da aproximação do dito furgão que circulava nas condições atrás indicadas e para evitar ser por ele embatido o autor guinou o seu ciclomotor para a direita... “ (sublinhado e negrito nosso). E, portanto, não há dúvidas nenhumas que não só o furgão participou no acidente, como praticou um facto ilícito estradal. Ora se é pacífico do próprio acórdão estes fundamentos, como se pode decidir que o furgão não interveio naturalisticamente no acidente? Resulta clara uma oposição flagrante entre a decisão e os fundamentos que lhe deram causa, o que constitui a nulidade prescrita na alínea c) do n.° 1 do art 668.º do CPC, nulidade que se invoca com as legais consequências. Aliás, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n° JSTJ00020817 de 19 de Novembro de 1992, in www.dgsi.pt, é claro ao dizer que “Se, num acidente de viação não há uma situação esclarecida de culpa, deve repartir-se a responsabilidade na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para o acidente”. Assim, entendendo Vossas Excelências, como entendem, que “(...) os dados de facto provados são insuficientes para um correcto apuramento da causa (...)”, teriam necessariamente, sob pena de um erro clamoroso de justiça, Vossas Excelências que repartir a responsabilidade de cada um dos veículos intervenientes, na proporção da contribuição dos respectivos riscos, sendo certo que estamos perante um comercial ligeiro (furgão) e um ciclomotor. Mais, Vossas Excelências ao entenderem que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as duas viaturas, estão a dizer que não havendo contacto físico não há acidente de viação. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos arts 499°/1 a 510° do CC, não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art 503º. Assim, a aludida interpretação constitui clara violação do princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado (art. 3° da CRP), inconstitucionalidade que se invoca para os devidos efeitos legais, sendo certo que nesta parte, e mais uma vez, o aresto em causa na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa da referida norma. Perante tais alegações o acórdão da conferência limitou-se a referir o seguinte:
“(...) Com o que ficou dito, e com o que mais desenvolvida mente se deixou consignado no acórdão, pensa-se também não ter sido violado qualquer princípio ou preceito constitucionalidade normativa constitucional. Afigura-se, portanto, que o douto acórdão não sufragou o entendimento perfilhado pelos Reclamantes/Recorridos na sua reclamação, qual seja, a inconstitucionalidade decorrente das interpretações normativas insertas no acórdão reclamado, que na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto do instituto do ónus da prova e do instituto da responsabilidade pelo risco. Efectivamente, Os Senhores Conselheiros ao perfilharem no douto aresto que aos AA. competia não só a prova da existência do facto ilícito estradal, o que está provado, mas também a prova da amplitude da violação, uma vez que entendem que não basta dar como provado que o furgão invadiu a faixa contrária mas que também seria necessário dar como provado em que medida essa invasão se deu, e que essa matéria seria facto constitutivo do seu direito, fazem uma inversão do ónus da prova, pois, é pacífico na doutrina e jurisprudência, a interpretação de que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica - na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência. Tal interpretação constitui clara violação do princípio da razoabilidade e está em rota de colisão com o art. 20° da C.R.P., constituindo, como constitui, violação do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático. E, Os Senhores Conselheiros ao perfilharem o entendimento que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as viaturas intervenientes num acidente, estão a dizer que não havendo contacto físico não há acidente de viação. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos arts. 499° a 510° do C.C., não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art. 503°. Assim, a aludida interpretação constitui clara violação do princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado (art. 3° da C.R.P.). Pelo que, não podendo os Reclamantes/Recorridos conformarem-se com o douto aresto que procedeu à aplicação das aludidas normas, interpretando-as de forma manifestamente inconstitucional, vêm interpor recurso do mesmo para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Destarte, nos termos do artigo 75º da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, indica-se o seguinte: a) o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b), do n° 1, do artigo
70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro; b) pretende-se que o tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação conjugada do artigo 483° com o artigo 342°, ambos do C.C., na medida em que, por força de tal interpretação, aos AA. competia não só a prova da existência do facto ilícito estradal, o que está provado, mas também a prova da amplitude de tal violação e que tal matéria constituiria facto constitutivo do seu direito; c) pretende-se que o tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação que foi feita do instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos arts.
499° a 510° do C.C., nomeadamente o seu art. 503°, interpretação feita no sentido que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as viaturas intervenientes num acidente, e que não havendo contacto físico não há acidente de viação e assim não havendo também responsabilidade pelo risco. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos arts. 499° a 510° do C.C., não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art. 503° do C.C.; d) foram violados, entre o mais, os artigos 3° e 20° da C.R.P., o que constitui clara violação do princípio da legalidade e do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático; e) a questão da inconstitucionalidade foi suscitada na reclamação para a conferência, feita pelos Reclamantes/ /Recorridos do douto Acórdão, por só no Acórdão que concedeu revista, ter sido feito um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa das normas em causa. Termos em que, em face de todo o exposto, deve o presente recurso ser admitido, seguindo-se a ulterior ritologia até final.
Cumpre apreciar.
3. Os recorrentes pretendem submeter duas questões à apreciação do Tribunal Constitucional: uma interpretação dos artigos 483º e 342º do Código Civil e uma interpretação do artigo 503º do Código Civil. No que respeita à primeira questão, referem os recorrentes que será inconstitucional a norma que resulta da conjugação dos artigos 483º e 342º do Código Civil, segundo a qual aos autores compete “não só a prova da existência de facto ilícito estradal (...) mas também a prova da amplitude de tal violação”. No entanto, o tribunal a quo considerou, no acórdão impugnado, que não foi feita prova do nexo causal. Nessa medida, a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida, o que torna inútil a apreciação da questão suscitada, uma vez que qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida. Não se tomará, portanto, conhecimento de tal questão.
4. A segunda questão suscitada tem a ver com uma interpretação do artigo 503º do Código Civil, segundo a qual, não havendo contacto físico entre os veículos intervenientes num sinistro não há lugar à responsabilidade pelo risco “plasmada nos artigos 499º e 510º do Código Civil (...) nomeadamente o seu artigo 593º”. Os recorrentes sustentam que tal interpretação viola o princípio da legalidade, plasmado no artigo 3º da Constituição, uma vez que os preceitos invocados não permitem tal solução. Ora, os recorrentes insurgem-se contra um dado enquadramento da situação de facto. Com efeito, ao invocarem, tal como o fazem, o princípio da legalidade e a inadmissibilidade da solução acolhida, os recorrentes estão fundamentalmente a discordar da aplicação do Direito feita pelo tribunal a quo. Assim, a apreciação que o Tribunal Constitucional teria de fazer perante a questão suscitada iria incidir sobre o processo de interpretação e aplicação do Direito infraconstitucional, uma dimensão subsuntiva, ou seja, sobre a própria decisão, numa matéria de responsabilidade civil em que a Constituição não impõe especiais princípios interpretativos. Desse modo, verifica-se que a questão suscitada não consubstancia o objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, que apenas pode ser constituído por normas jurídicas. Assim, também não se tomará conhecimento de tal questão.
5. As conclusões alcançadas tornam inútil a apreciação da relevância da não suscitação antes da prolação da decisão recorrida das questões de constitucionalidade normativa.
6. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
2. O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo
78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A. e C., Recorrentes nos presentes autos, notificados da decisão sumária do relator, mui respeitosamente, vêm deduzir reclamação para a conferência, nos termos do n° 3 do art. 78°-A da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos e com os seguintes fundamentos: Na presente acção declarativa, com processo ordinário, destinada a exigir a responsabilidade civil, emergente de acidente de viação, ao Fundo de Garantia Automóvel, este foi condenado, em primeira instância, a pagar ao Recorrido A. a quantia de € 65.384,09 e à Recorrida C. a quantia de € 69.881,59. A aludida sentença, proferida pelo Tribunal de primeira instância, foi objecto de recurso de apelação, intentado pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel, para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este Venerando Tribunal proferido Acórdão, no qual confirmava inteiramente a sentença recorrida. Por seu turno, o mencionado Acórdão foi objecto de recurso de revista, intentado pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo aquele Venerando Tribunal proferido Acórdão, no qual concedeu revista, assim revogando o Acórdão recorrido e absolvendo o Fundo de Garantia Automóvel do Pedido. Deste douto e inopinado Acórdão, os Recorridos reclamaram para a conferência, arguindo nos termos do art. 668 do C.P.C. “ex vi” arts. 716° e 732° do C.P.C. as seguintes inconstitucionalidades:
“3 - Atenta esta matéria de facto concluíram Vossas Excelências que apesar de estar dado como provado que o furgão “... invadiu parcialmente a hemifaixa de rodagem contrária, o que constitui violação do Código da Estrada.” - facto ilícito estradal - e “... não se sabendo em que medida se produziu essa invasão, e não tendo chegado a haver qualquer contacto físico entre as duas referidas viaturas, não se pode asseverar que aquele comportamento ilícito, aquela contra-ordenação tenha sido causal do sinistro.” E, continuam Vossas Excelências,
“O furgão tanto pode ter invadido a meia faixa de rodagem do lado esquerdo v.g. em apenas 20cm deixando ao H-- ainda 2,80 metros largura para passar sem qualquer perigo de colisão, até porque circulava junto à berma, como a pode ter invadido, v.g., em 2 metros, deixando livre apenas um escasso metro de largura da meia faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha do furgão.” Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, estes factos não são constitutivos do direito dos AA., ao contrário, esses factos afastariam a responsabilidade do lesante e constituiriam matéria de contra-prova no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Matéria que deveria ter sido alegada e provada pelo Réu no sentido de afastar a sua responsabilidade, o que não se verificou. Aliás, é um facto notório, que não carece de prova, nos termos do art. 514° do C.P.C., que foi exclusivamente o veículo desconhecido que provocou o acidente dos autos. Com efeito, é do conhecimento geral e deriva das regras da experiência comum que se dois veículos se cruzam numa curva sem visibilidade e há um deles que invade parcialmente a faixa contrária, no momento em que se cruzam - factos todos dados como provados -, e com esta acção provoca um acidente, é claro como a água que o veículo que invade a faixa contrária é responsável pelo acidente. Na verdade, o condutor do outro veículo só tem duas hipóteses: lª) desvia-se para evitar ser embatido; ou 2ª) deixa-se embater. Ora, o que Vossas Excelências dizem é que o condutor do ciclomotor e o seu ocupante para terem direito a ser indemnizados, o condutor do ciclomotor não se devia ter desviado, mas sim devia deixar-se embater pelo veículo desconhecido. Ora, este raciocínio, com todo o respeito, que é muito, além de estar despojado do princípio que norteia todo e qualquer decisão justa, que é o princípio da razoabilidade, está em rota de colisão com o art. 20° da C.R.P., constituindo, como constitui, violação do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático. Acresce que, é pacífico na jurisprudência que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica - na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência (Acórdãos de 28/05/74, in BMJ 237°-231, de 20/12/90, in BMJ 402°-558, de 10/01/91, in BMJ 403°-334, de 26/02/92, in BMJ 414°-533, de 10/03/98, in BMJ
475°-635, de 09/07/98, in BMJ 479°-592, 03B2960 de 06/11/03 e de 20/11/03, processo n.° 03A3450, JST J000, ambos in www.dgsi.pt). Não sendo aquela matéria (que nem sequer está alegada) constitutiva do direito dos AA. e tendo Vossas Excelências fundamentado a decisão com base na matéria de facto dada como provada, tal fundamentação não comporta tal decisão, o que constitui nulidade, que se invoca, com as legais consequências, nos termos das alíneas c) e d) do n.° 1 do art. 668.º. E, ao considerarem que aquela matéria é facto constitutivo do direito, quando, na verdade, é matéria de contra-prova, faz-se uma interpretação de tal forma castradora dos direitos do lesado que vai ao arrepio de toda a jurisprudência dominante, o que constitui violação do principio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio principio do Estado de Direito Democrático. Tal interpretação não é comportada pela ratio legis do instituto da responsabilidade civil extra-contratual, nomeadamente o art. 483° conjugado com o art. 342º, ambos do C.C., estando, como está, a aludida interpretação ferida de inconstitucionalidade, que se invoca com as legais consequências, com efeito o aresto em causa na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa das referidas normas.” E,
“5 - Entendem Vossas Excelências que não estando definida a culpa na produção do acidente não se pode enveredar pela responsabilidade objectiva ou pelo risco porquanto, “... o furgão não interveio naturalisticamente no acidente, visto não ter havido qualquer contacto físico entre as duas mencionadas viaturas... “. Resulta da matéria provada que:
“- Na altura em que o H-- abordava uma curva para a sua direita sem visibilidade, o furgão descreveu a mesma curva em sentido contrário, invadindo parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;
- Ao aperceber-se da aproximação do dito furgão que circulava nas condições atrás indicadas e para evitar ser por ele embatido o autor guinou o seu ciclomotor para a direita... “ (sublinhado e negrito nosso). E, portanto, não há dúvidas nenhumas que não só o furgão participou no acidente, como praticou um facto ilícito estradal. Ora se é pacífico do próprio acórdão estes fundamentos, como se pode decidir que o furgão não interveio naturalisticamente no acidente? Resulta clara uma oposição flagrante entre a decisão e os fundamentos que lhe deram causa, o que constitui a nulidade prescrita na alínea c) do n.º 1 do art. 668.º do C.P.C., nulidade que se invoca com as legais consequências. Aliás, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº JSTJOO020817de 19 de Novembro de 1992, in www.dgsi.pt, é claro ao dizer que “Se, num acidente de viação não há uma situação esclarecida de culpa, deve repartir-se a responsabilidade na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para o acidente”. Assim, entendendo Vossas Excelências, como entendem, que “(...)os dados de facto provados são insuficientes para um correcto apuramento da causa
(...)”, teriam necessariamente, sob pena de um erro clamoroso de justiça, Vossas Excelências que repartir a responsabilidade de cada um dos veículos intervenientes, na proporção da contribuição dos respectivos riscos, sendo certo que estamos perante um comercial ligeiro (furgão) e um ciclomotor. Mais, Vossas Excelências ao entenderem que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as duas viaturas, estão a dizer que não havendo contacto físico não há acidente de viação. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos art.s 499° a 510° do C.C., não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art. 503º. Assim, a aludida interpretação constitui clara violação do princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado (art. 3° da C.R.P.), inconstitucionalidade que se invoca para os devidos efeitos legais, sendo certo que nesta parte, e mais uma vez, o aresto em causa na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa da referida norma.” Perante tais alegações o acórdão da conferência limitou-se a referir o seguinte:
“(...) Com o que ficou dito, e com o que mais desenvolvidamente se deixou consignado no acórdão, pensa-se também não ter sido violado qualquer princípio ou preceito constitucional.” Afigura-se, portanto, que o douto acórdão não sufragou o entendimento perfilhado pelos Reclamantes/Recorridos na sua reclamação, qual seja, a inconstitucionalidade decorrente das interpretações normativas insertas no acórdão reclamado, que na sua lógica argumentativa fez um uso novo e totalmente imprevisto do instituto do ónus da prova e do instituto da responsabilidade pelo risco. Efectivamente, Os Senhores Conselheiros ao perfilharem no douto aresto que aos AA. competia não só a prova da existência do facto ilícito estradal, o que está provado, mas também a prova da amplitude da violação, uma vez que entendem que não basta dar como provado que o furgão invadiu a faixa contrária mas que também seria necessário dar como provado em que medida essa invasão se deu, e que essa matéria seria facto constitutivo do seu direito, fazem uma inversão do ónus da prova, pois, é pacífico na doutrina e jurisprudência, a interpretação de que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica - na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência. Tal interpretação do estatuído nos arts. 342° e 483° do C.C. constitui clara violação do princípio da razoabilidade e está em rota de colisão com o art. 20° da C.R.P., constituindo, como constitui, violação do princípio constitucional da garantia de acesso aos Tribunais e ao próprio princípio do Estado de Direito Democrático. E, Os Senhores Conselheiros ao perfilharem o entendimento que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as viaturas intervenientes num acidente, estão a dizer que não havendo contacto físico não há acidente de viação. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos art.s 499° a 510° do C.C., não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art. 503°. Assim, a aludida interpretação constitui clara violação do princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado (art. 3° da C.R.P.). Pelo que, não podendo os Recorrentes conformarem-se com o douto aresto que procedeu à aplicação das aludidas normas, interpretando-as de forma manifestamente inconstitucional, interpuseram recurso do mesmo para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Tal recurso foi interposto ao abrigo da alínea b), do n° 1, do artigo 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo-se que o tribunal aprecie: a) a inconstitucionalidade da interpretação conjugada do artigo 483° com o artigo 342°, ambos do C.C., na medida em que, por força de tal interpretação, aos AA. competia não só a prova da existência do facto ilícito estradal, o que está provado, mas também a prova da amplitude de tal violação e que tal matéria constituiria facto constitutivo do seu direito. b) a inconstitucionalidade da interpretação que foi feita do instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos art.s 499° a 510° do C.C., nomeadamente o seu art. 503°, interpretação feita no sentido que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as viaturas intervenientes num acidente, e que não havendo contacto físico não há acidente de viação e assim não havendo também responsabilidade pelo risco. O instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos art.s 499° a 510° do C.C., não comporta tal interpretação, nomeadamente o seu art. 503° do C.C.. O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça, tendo os autos sido remetidos para o Tribunal Constitucional e, nos termos do n° 1 do art. 78° da Lei do Tribunal Constitucional foi proferida decisão sumária no sentido de “...não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.”. Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional
É precisamente desta decisão que ora se reclama para a conferência desse Venerando Tribunal Constitucional. Entendeu a Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora, relativamente à primeira questão suscitada, que a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida, o que torna inútil a apreciação da questão suscitada, uma vez que qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida, porquanto, o tribunal “a quo” considerou que não foi feita prova do nexo causal. Salvo o devido respeito e melhor opinião, pensamos que o juízo formulado pela Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora labora em erro. A conclusão do tribunal “a quo” pela falta de nexo causal é precisamente baseada na dimensão interpretativa que faz da conjugação dos arts. 483° e 342° do Código Civil. A dimensão interpretativa que o tribunal “a quo” fez da conjugação daqueles artigos é que constitui a decisão de fundo, a “ratio decidendi” e alicerçou a conclusão da falta de nexo de causalidade, que se limitou à subsunção jurídica dos factos provados com base naquela dimensão interpretativa. Dimensão interpretativa bem expressa no acórdão da conferência que decidiu a reclamação dos AA. nos termos do art. 668° do C.P .C. “ex vi” arts. 716° e 732° do C.P.C., onde se lê:
“O acórdão lidou apenas com a matéria de facto apurada pelas instâncias. E chegou-se nele à conclusão de não haver prova de que a infracção ao Código da Estrada cometida pelo condutor do Furgão foi causal do sinistro, prova essa que aos autores/reclamantes incumbia fazer, nos termos do art. o 342º n.º 1 do Código Civil. Não se mostra provado que se o autor/reclamante não tivesse guinado para a direita teria ocorrido o embate entre os dois veículos que aquela manobra, feita com intuito subjectivo de evitar o embate, realmente se justificava objectivamente, de que se tratou, em suma, de uma verdadeira manobra de salvamento, e não de uma avaliação precipitada. Na verdade, ignora-se em que profundidade o Furgão, que seguia em sentido contrário ao do autor/reclamante, invadiu a faixa de rodagem a este pertencente, sendo certo que o autor/reclamante circulava junto à berma do seu lado direito. Indemonstrada a existência de uma contra-ordenação verdadeiramente causal do acidente, o nexo de causalidade entre a penetração parcial na hemi-faixa de rodagem do lado contrário e o dano, ou seja a imputação objectiva, ao condutor do Furgão, de lesão dos direitos dos reclamantes, não se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art. o 483° do Código Civil).”. O que está em causa no acórdão “sub judice” não é a conclusão a que os Exmos. Senhores Conselheiros do S.T.J. chegaram, porquanto, atenta a interpretação que fizeram está correcta. O problema é que aquela conclusão assentou em premissas erradas, está portanto na “ratio decidendi” que levou àquela conclusão. Dizem os Senhores Conselheiros do S.T.J. que o facto de ter existido uma infracção ao Código de Estrada não é suficiente para provar o nexo causal do sinistro, e que essa prova incumbia aos AA. Portanto, os Senhores Conselheiros do S.T.J. entenderam que não bastava a prova do facto ilícito mas que era necessário a prova da amplitude dessa violação. Ou seja, no caso concreto, que não bastava a prova da invasão da faixa de rodagem contrária, mas também da medida em que essa invasão se deu. Nas suas próprias palavras:
“O furgão tanto pode ter invadido a meia faixa de rodagem do lado esquerdo v.g. em apenas 20cm deixando ao H-- ainda 2,80 metros largura para passar sem qualquer perigo de colisão, até porque circulava junto à berma, como a pode ter invadido, v.g., em 2 metros, deixando livre apenas um escasso metro de largura da meia faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha do furgão.” Ora é precisamente neste entendimento que reside o cerne do desfecho do acórdão
“sub judice”. Se se entender que aqueles factos são constitutivos do direito dos AA., então, evidentemente teremos que concluir como os Senhores Conselheiros do S.T.J.: Mas, Se se entender que aqueles factos não são constitutivos do direito dos AA. e antes matéria de contra-prova do Réu, então, nunca poderemos concluir pela falta do nexo de causalidade. Perante a prova do facto ilícito estradal é ao Réu que incumbe a alegação e a prova de que a prática de tal facto não foi causal do acidente e, portanto, constitui matéria de contra-prova do Réu e não facto constitutivo do direito dos AA.. A não ser assim, haveria uma inversão do ónus da prova, pois, é pacífico na doutrina e jurisprudência, a interpretação de que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência. A jurisprudência e doutrina maioritária defendem esta dimensão normativa da conjugação dos arts. 483° e 342° do Código Civil, como defenderam os AA. na sua reclamação para a conferência do S.T.J.:
“Acresce que, é pacífico na jurisprudência que a prova da ocorrência de um facto ilícito estradal faz presumir a culpa - culpa fáctica - na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência (Acórdãos de 28/05/74, in BMJ 237°-231, de 20/12/90, in BMJ 402°-558, de 10/01/91, in BMJ 403°-334, de 26/02/92, in BMJ 414°-533, de 10/03/98, in BMJ
475°-635, de 09/07/98, in BMJ 479°-592, 03B2960 de 06/11/03 e de 20/11/03, processo n. ° 03A3450, JSTJ000, ambos in www. dgsi.pt)”. Logo, a dimensão normativa impugnada, ao contrário do entendimento da Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora, é a base em que assenta toda a decisão do acórdão impugnado, a “ratio decidendi”, porquanto, o entendimento num sentido, ou noutro, condiciona inelutavelmente a decisão. Sendo que a existência ou inexistência de nexo causal está directamente dependente dessa dimensão normativa. Entendendo-se, como se deve entender, que aquela matéria não é facto constitutivo do direito dos AA. mas matéria de contra-prova do Réu, era a este que incumbiria, como incumbe, a prova da quebra do nexo causal afastando assim a imputação objectiva decorrente da prática do ilícito estradal. Perfilhado este entendimento, único constitucionalmente admissível, jamais os Senhores Conselheiros do S. T .J . poderiam chegar à conclusão que chegaram. Relativamente à segunda questão posta à consideração desse Venerando Tribunal, entendeu a Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora que “...a apreciação que o Tribunal Constitucional teria de fazer perante a questão suscitada iria incidir sobre o processo de interpretação e aplicação do Direito infraconstitucional, uma dimensão subsuntiva, ou seja, sobre a própria decisão, numa matéria de responsabilidade civil em que a Constituição não impõe especiais princípios interpretativos.” Salvo o devido respeito e melhor opinião, ainda que considerando que a Constituição em matéria de responsabilidade civil não impõe especiais princípios interpretativos, sempre se dirá que qualquer decisão judicial está subordinada aos princípios gerais de direito, constitucionalmente consagrados, e não pode ofender de tal forma a “ratio legis” do instituto onde se integra de tal forma que violente o fim último do Estado de Direito, a prossecução da Justiça. Ora, Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional, é precisamente isso que acontece na decisão “sub judice”. O instituto da responsabilidade pelo risco, consagrado nos arts. 499° a 510° do C.C., foi idealizado e criado para fazer face àquelas situações em que não sendo possível ao Tribunal apurar a responsabilidade na produção de um acidente de uma forma subjectiva, responsabilidade que como regra é apurada com base na culpa, de uma forma objectiva, com base nos perigos que a utilização de um veículo automóvel implica de per si e que devem ser assumidos pelos beneficiários dessa utilização. E, Em momento algum, das normas que regulam a responsabilidade pelo risco se extrai a interpretação dos Senhores Conselheiros do S.T.J., segundo a qual só existe um acidente de viação se houver colisão de veículos. Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional, tal interpretação é de tal forma castradora da “ratio legis” do instituto que esvazia quase por completo o seu alcance. Veja-se que no caso concreto, resultando da matéria provada que:
“- Na altura em que o H-- abordava uma curva para a sua direita, sem visibilidade, o furgão descreveu a mesma curva em sentido contrário, invadindo parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha;
- Ao aperceber-se da aproximação do dito furgão que circulava nas condições atrás indicadas e para evitar ser por ele embatido, o autor guinou o seu ciclomotor para a direita...” (sublinhado e negrito nosso). Os Exmos Senhores Conselheiros do S.T.J. decidem que o “... o furgão não interveio naturalisticamente no acidente ...”. Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional, tal entendimento viola de tal forma os direitos e garantias dos cidadãos que faz tábua rasa dos mais elementares princípios que regem um Estado de Direito e que estão constitucionalmente consagrados. Perante tal violação não pode o Tribunal Constitucional ficar indiferente e eximir-se da sua função de Guardião dos Direitos, Liberdades e Garantias dos Cidadãos. A Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora, ao decidir como decidiu não ponderou o alcance da decisão “sub judice”, que ao contrário do que a Exma Senhora Juiz Conselheira Relatora afirma não se resume ao caso concreto, mas à aplicação do instituto da responsabilidade pelo risco, nomeadamente, no entendimento da
“ratio legis” de tal instituto e dos direitos fundamentais que pretende acautelar . A livre apreciação do Tribunal tem sempre como limite os direitos e garantias constitucionalmente consagrados e, em última análise a Lei. Termos em que, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências deve a presente reclamação ser atendida e o recurso interposto recebido para posterior apreciação das inconstitucionalidades invocadas.
Cumpre apreciar.
3. O reclamante submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional “a interpretação conjugada do artigo 483º com o artigo 342º, ambos do Código Civil, na medida em que, por força de tal interpretação, aos autores competia não só a prova da existência do facto ilícito estradal, o que está provado, mas também a prova da amplitude de tal violação”. Porém, como se sublinhou na Decisão Sumária reclamada, o tribunal a quo considerou que os recorrentes não haviam feito prova do nexo causal, isto é, entendeu que competia aos autores a prova de tal nexo. Sendo verdade que impende sobre os recorrentes o ónus de se exprimirem de modo perceptível, poder-se-ia considerar que os reclamantes, quando se referiram à prova da “amplitude da violação” queriam referir a prova do nexo causal. No entanto, não é isso que resulta da presente reclamação. Com efeito, o reclamantes insistem na identificação de uma dimensão normativa alegadamente subjacente à decisão do tribunal a quo, que continuam a identificar como sendo aquela que exige a prova da amplitude da violação. Ora, o critério de decisão aplicado pelo tribunal recorrido foi o de caber ao autor a prova do nexo causal entre a violação do dever e o resultado ou de imputação objectiva do resultado ao facto ilícito para que se reúnam os pressupostos da responsabilidade civil. O tribunal ilustrou, exemplificativamente, alguns factos que poderiam ser objecto de prova, precisamente para se poder afirmar a existência do mencionado nexo de causalidade. Mas tal ilustração não consubstancia uma qualquer dimensão normativa. A dimensão normativa expressamente assumida pelo tribunal, como se referiu, foi a de caber ao autor a prova do nexo de causalidade, entendido nos termos de uma relação entre a violação do dever e o resultado. Não foi, pois, aplicada qualquer dimensão normativa referente à intensidade da violação do dever (à amplitude da violação, nas palavras dos reclamantes), mas sim uma dimensão reportada a um pressuposto autónomo da responsabilidade civil, o nexo causal, que se conexiona não só com o desvalor da acção mas também com o desvalor do resultado. Tal norma não foi, porém, impugnada pelos reclamantes, como se sublinhou na Decisão Sumária reclamada. Improcede, portanto, a reclamação quanto a este aspecto.
4. Os reclamantes pretendem, por outro lado, submeter à apreciação do Tribunal Constitucional “a interpretação que foi feita do instituto da responsabilidade pelo risco, plasmado nos artigos 499° a 510° do Código Civil, nomeadamente o seu artigo 503°, (...) no sentido que só se envereda pela responsabilidade objectiva ou pelo risco quando houver contacto físico com as viaturas intervenientes num acidente, e que não havendo contacto físico não há acidente de viação e assim não havendo também responsabilidade pelo risco”. A Relatora, na Decisão Sumária sob reclamação, considerou que tal questão, tal como foi delineada pelos reclamantes, traduzir-se-ia na apreciação da decisão, encontrando-se, nessa medida, fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. Na presente reclamação, os reclamantes identificam vários trechos do acórdão recorrido, insurgindo-se, agora expressamente, contra a própria decisão recorrida, nunca identificando, com o rigor e a precisão necessários, uma questão de inconstitucionalidade normativa. Com efeito, os reclamantes persistem na invocação do princípio da legalidade para sustentar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação do regime da responsabilidade civil, o que se traduz, como se sublinhou na Decisão Sumária sob reclamação, na impugnação da subsunção dos factos na norma realizada pelo tribunal a quo, isto é, na impugnação da própria decisão judicial. Improcede, portanto, também quanto a este aspecto, a presente reclamação.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 4 de Novembro de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos