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Proc. n.º 136/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 428 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...] Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto processual a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa determinada interpretação) que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional (cfr., ainda, o disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). A recorrente afirma, no requerimento de interposição do presente recurso (supra,
5.), ter invocado a inconstitucionalidade que pretende ver apreciada – a da norma do n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto – perante o Supremo Tribunal Administrativo, embora não explicite qual a peça processual (ou parte da peça processual) em que tal inconstitucionalidade foi suscitada. Contudo, percorrendo as alegações da recorrente perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (supra, 1.) e perante o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (supra, 3.), conclui-se que nelas não foi suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto. Na verdade, a recorrente limitou-se a invocar a inconstitucionalidade do «acto recorrido» (cfr. fls. 298), da «aplicação que a entidade recorrida faz da lei material aplicável» (fls. 299 e 302), da «aplicação que a entidade recorrida faz da lei processual aplicável» (fls. 299 e 302), da «aceitação das interpretações feitas ao arrepio, nomeadamente, do disposto no art. 9º do Código Civil» (fls.
299), das «já vastamente abordadas interpretações e aplicações abusivas da lei»
(fls. 303), do despacho recorrido (fls. 390), «de se aceitar que a Administração se possa exprimir de forma incongruente e em que assume que a exteriorização dos seus actos não segue qualquer critério sequencial, linear ou objectivo» (fls.
391), de «tal posição e a subsequente validação da exteriorização de actos da Administração do modo invocado» (fls. 391) e, finalmente, do «entendimento que sancione como válido o comportamento da Entidade Recorrida e a interpretação que esta fez da lei aplicável» (fls. 394). A recorrente não deu, pois, cumprimento ao ónus a que aludem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. A isso mesmo, aliás, se refere o acórdão recorrido (supra, 4.), quando salienta que «só as normas legais em si ou, quando muito, com a interpretação que se lhes der, podem violar a Constituição. Não é, pois, contrariamente ao defendido pela Recorrente, inconstitucional nem o comportamento da Administração, nem qualquer decisão jurisdicional que o sancione como válido». Não estando preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, não pode conhecer-se do respectivo objecto.
[...].”
2. Notificada desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 439 e seguinte), invocando, em síntese, para o que agora releva:
“[...]
2. [...] não é de sufragar o entendimento sustentado na Decisão, porquanto o
ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional se encontra, na opinião da recorrente, integralmente preenchido.
[...]
5. Ora, na página 11 das alegações apresentadas pela recorrente perante o Supremo Tribunal Administrativo, em 13 de Setembro de 2002, no âmbito do processo n.º 337/02-11-A, cujos termos correram pela 1ª Subsecção da 1ª Secção de Contencioso Administrativo, refere expressamente a recorrente que «... são duas as violações da Constituição que se podem inferir do acto recorrido, a saber: (i) a aplicação que a entidade recorrida faz da lei material aplicável, designadamente, (a) do artigo 10º do DL 218/97, quanto à contagem do prazo para a decisão final e para a concretização do deferimento tácito; e (b) do n.º 11 da Portaria 739/97 à luz, inter alia, da alínea j) do artigo 3º do DL 218/97, quanto à definição do conceito de quota de mercado e do âmbito do cálculo;...».
6. Relativamente à norma reputada de inconstitucional – o n.º 4 do artigo 10º do DL 218/97 –, a verdade é que a recorrente transcreveu o teor da mesma quando escreveu, na mencionada peça processual, que «foram duas as aludidas violações constantes da Constituição» (...) «(a) do artigo 10º do DL 218/97, quanto à contagem do prazo para a decisão final e para a concretização do deferimento tácito» – identificando claramente que se trata do n.º 4 do artigo 10º do referido diploma – facto que não foi tido em consideração na Decisão,
7. Mantendo a mesma posição, na página 14 das alegações por si apresentadas, no dia 12 de Março de 2003, perante o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no
âmbito do mesmo processo, nas quais escreveu que se verifica «... uma tal amplitude na interpretação dos invocados preceitos legais aplicáveis (nos quais se inclui a mencionada norma constante do n.º 4 do artigo 10º do DL 218/97 – acrescentado nosso) que é susceptível de atentar contra o disposto no n.º 2 do artigo 266º e no n.º 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa...».
8. Tendo o Supremo Tribunal Administrativo aplicado a norma do n.º 4 do artigo
10º do DL 218/97 nos acórdãos constantes dos autos, nos quais julgou sempre no sentido da não verificação da inconstitucionalidade invocada pela recorrente.
9. Face ao exposto, fica demonstrado que a recorrente suscitou, nos termos da Lei do Tribunal Constitucional, a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 10º do DL 218/97, estando pois reunidos os pressupostos relativos à admissibilidade do recurso interposto pela recorrente para esse Venerando Tribunal.
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o recorrido Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Serviços não respondeu
(cfr. cota de fls. 442).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A decisão de não conhecimento do recurso fundamentou-se na falta de um dos pressupostos processuais do recurso interposto: o Tribunal entendeu que
“não foi suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto” e que “a recorrente [se] limitou a invocar a inconstitucionalidade do «acto recorrido»”.
Na reclamação deduzida, a ora reclamante pretende demonstrar que suscitou, perante o tribunal a quo, a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto. Transcreve, para tanto, duas passagens de alegações que produziu perante o Supremo Tribunal Administrativo e que afirma não terem sido tomadas em consideração pela decisão sumária reclamada:
– a primeira – que consta do n.º 5 da reclamação – faz parte das alegações apresentadas no âmbito do recurso contencioso de anulação do Despacho N.º
575/2001/SEICS, de 29 de Novembro, do Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Serviços, que lhe indeferiu 14 pedidos de instalação de unidades comerciais de dimensão relevante (“UCDR”);
– a segunda – que consta do n.º 7 da reclamação – integra as alegações apresentadas no âmbito do recurso jurisdicional para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão proferido, em conferência, pela 1ª Secção do mesmo Supremo Tribunal, que negou provimento ao recurso contencioso.
5. Diferentemente do que a reclamante afirma, ambas as passagens agora invocadas foram tomadas em consideração na decisão sumária reclamada.
No ponto n.º 1. da decisão sumária, transcreveu-se das alegações apresentadas pela recorrente no recurso contencioso de anulação:
“[...] D. Inconstitucionalidade
[...] são duas as violações da Constituição que se podem inferir do acto recorrido, a saber:
(i) a aplicação que a entidade recorrida faz da lei material aplicável designadamente: (I) do art. 10º do DL 218/97, quanto à contagem do prazo para a decisão final e para a concretização do deferimento tácito; e (II) do n.º 11º da Portaria 739/97 à luz, inter alia, da alínea j) do art. 3º do DL 218/97, quanto
à definição do conceito de quota de mercado e do âmbito do cálculo; e
(ii) a aplicação que a entidade recorrida faz da lei processual aplicável designadamente do disposto no art. 124º quando analisado à luz do n.º 2 do art.
125º, ambos do CPA, quanto ao dever de fundamentação e aos respectivos requisitos. Estando a entidade recorrida vinculada ao princípio da constitucionalidade da administração, que obriga ao escrupuloso respeito pelo disposto nos artigos 266º e 268º da CRP, não se deixará de considerar que os mesmos foram violados in casu, em virtude das já vastamente abordadas interpretações e aplicações abusivas da lei.
[...].”
No ponto n.º 3. da decisão sumária, das alegações apresentadas pela recorrente no recurso jurisdicional para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo destacou-se, entre o mais, o seguinte:
“[...]
56. Ora, o que a Recorrente defendeu e entende, é que tal posição e a subsequente validação da exteriorização de actos da Administração do modo invocado acarretam uma tal amplitude na interpretação dos invocados preceitos legais aplicáveis que é susceptível de atentar contra o disposto no n.º 2 do artigo 266° e no n.º 3 do artigo 268° da Constituição da República Portuguesa
(CRP). Pelos motivos aduzidos, mal andou o Acórdão recorrido ao ter sancionado a constitucionalidade do Despacho cuja apreciação lhe foi solicitada em sede de recurso contencioso de anulação. Conclusões
[...] III. A aceitação de um comportamento como o descrito por parte da Administração, como acontece no douto Acórdão recorrido, levará, em última análise, ao efectivo esgotamento e anulação das garantias atribuídas aos particulares para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Com efeito, sendo o comportamento da Administração virtualmente arbitrário, como aliás a própria Autoridade Recorrida veio, de alguma forma, a reconhecer [...] e tendo a Recorrente provado, à saciedade, que a Entidade Recorrida violou repetidamente as normas jurídicas aplicáveis, como aliás bem demonstra o facto de, mesmo em fase de alegações e após análise de toda a documentação presente nos autos, nem assim admitir, em circunstância alguma, a existência de um único deferimento tácito, qualquer entendimento que sancione como válido o comportamento da Entidade Recorrida e a interpretação que esta fez da lei aplicável, ferirá o disposto nos artigos 266° e 268° da CRP. Assim, andou mal o Acórdão recorrido quando entendeu o contrário.
[...].”
Basta atentar no teor da reclamação e nas passagens das peças processuais apresentadas, durante o processo, pela ora reclamante, e agora novamente reproduzidas, para concluir que a reclamação não pode ser deferida.
Na verdade, é manifesto que nas expressões seleccionadas pela própria reclamante não pode ver-se a invocação em termos processualmente adequados de uma questão de inconstitucionalidade normativa, concretamente de uma questão de inconstitucionalidade reportada à norma que a reclamante pretendia submeter à apreciação deste Tribunal no âmbito do presente recurso de constitucionalidade – a norma do n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto.
Nas alegações apresentadas perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, impugna-se, desde logo, a aplicação, no despacho recorrido, de certas normas, entre as quais o “art. 10º do DL 218/97” (fls. 299); nas alegações apresentadas perante o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, invoca-se a inconstitucionalidade do despacho recorrido (fls. 390), “de se aceitar que a Administração se possa exprimir de forma incongruente e em que assume que a exteriorização dos seus actos não segue qualquer critério sequencial, linear ou objectivo” (fls. 391), de “tal posição e a subsequente validação da exteriorização de actos da Administração do modo invocado” (fls. 391), do “entendimento que sancione como válido o comportamento da Entidade Recorrida e a interpretação que esta fez da lei aplicável” (fls. 394).
Ora, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional, no âmbito dos recursos de fiscalização concreta, diz respeito a actos normativos, não abrangendo a apreciação da inconstitucionalidade de decisões judiciais ou de actos administrativos.
6. Reafirma-se assim que, não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa relativamente ao n.º 4 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 218/97, de 20 de Agosto, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos