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Processo nº 530/2004
3ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 17 de Maio de 2004 proferiu o relator decisão com o seguinte teor:
“1. Não se conformando com o acórdão proferido em 18 de Março de 2003 pelo Tribunal colectivo de Barcelos que, por entre o mais - pela prática de actos que foram, na acusação, considerados como integrando quarenta e seis ilícitos de abuso de confiança fiscal, previstos e puníveis pelos artigos 27º-B e 24º, números 1 e 4, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, mas que aquele acórdão considerou como integrando tão só o cometimento de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto por aqueles artigos, mas a ser punível pelo nº 1 do artº 105º do Regime Geral das Infracções Tributária, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, por esse regime se mostrar, em concreto, mais favorável -, o condenou na pena de cento e quarenta dias de multa
à taxa de € 30, recorreu o arguido A. para o Tribunal da Relação de Guimarães.
No «teor» da motivação adrede produzida, e para o que ora releva, o arguido, a dado passo, referiu:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
24.
É por tudo isto que a lei configura uma ficção, atropelando outras normas legais, para dar cobertura à prisão por dívidas.
E dívidas contraídas forçadamente, com trabalho gratuito e não remunerado, em que o devedor é colocado no papel de publicano do Estado, que o obriga, mensalmente, não só quanto a este imposto devido por terceiros, mas também com outros (IRS e IVA), a dispender avultadas quantias, em meios humanos e materiais, para exercer funções do Estado.
O Recorrente conhece o argumento peregrino em que se funda a sujeição a que ele e outros são submetidos: é a justiça social e a solidariedade social.
Não fora a falsidade e as consequências, estaríamos perante uma
‘blague’ com piada.
Simplesmente, os bens e serviços que o Estado proporciona custam entre
3 a 5 vezes mais que idêntica prestação privada.
Os serviços públicos inúteis são como cogumelos.
Repare-se que foram extintos os reconhecimentos notariais, as escrituras de trespasse, arrendamento comercial e de numerosos actos das sociedades comerciais. Alguém notou a falta?
E repare-se nisto: a compra e venda de um prédio, e a sua transformação, obriga os interessados a andar (pior do que de Herodes para Pilatos) a correr entre notário, câmara municipal, conservatória e finanças. Todas estas repartições cobram impostos ou taxas, passam certidões e licenças e
‘controlam’ a legalidade. A falta de correspondência dos registos de cada prédio, em cada uma, é vasta como o centeio.
A entidade que dispõe de condições técnicas ideais para registar o estatuto físico e jurídico é a Câmara Municipal. Até a ela se destina a contribuição autárquica a sisa e o imposto sucessório. Ela licencia a edificação e a utilização dos imóveis. Porque será que não basta um único registo de cada prédio nessa estação pública, onde aí se cobrariam impostos e contribuições e se entregariam ou fariam os instrumentos de alteração física e jurídica dos prédios e até instrumentos de transmissão ou constituição de direitos?
Que tempo os interessados poupavam!
E quantos serviços se extinguiam, que nada de útil prestam!
E os meios físicos e humanos ocupados a complicar a vida das pessoas eram efectivamente desviados para produzir.
Este é apenas um exemplo, entre milhares, da péssima administração pública que nos mói o juízo e nos consome o dinheiro.
O argumento oficial não colhe.
E por isso, as normas por que o Recorrente foi punido são inconstitucionais pois violam não só o disposto nos artºs. 1º. e 27º. 1 da Constituição, mas também, por força do artº. 8º. 2 desta Lei Fundamental, o disposto nos seguintes diplomas e normas:
- Decl. Uni. Dtos Hom., 4º. 9º. e 23º.;
- Pacto Int., Dtos. Econ., Soc. e Cult., 8º.;
- Pacto Int., Dtos. Liv. e Pol., 8º., 9º. e 11º.;
- Conv. Europ. Dtos. Hom, 5º. e artº. 1º. do seu Protocolo nº. 4
Resumindo: os artºs. 24º. e 27º. B e 105º. e 107º. do RGIT são inconstitucionais pois sujeitam a pessoa a trabalho que não escolhem livremente, com a ameaça de prisão, e sujeitam a prisão por dívidas.
............................................................................................................................................................................................................................................’
E, também no que agora interessa, nas «conclusões» formuladas naquela motivação, o arguido disse:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
17ª. Mas também não podia ter sido denunciado, acusado e condenado por factos a cuja prática foi sujeito, nomeadamente, à prática de trabalho imposto, que o obriga a dispender tempo e dinheiro, em favor da Segurança Social, gratuitamente, com a cominação ou ameaça de penas de prisão, e que ainda o sujeitam, bem como à sociedade, à contracção de dívidas de terceiro.
18ª. Disto tudo resulta a inconstitucionalidade dos artºs. 24º. e 27º. B do RJIFNA e
105º. e 107º. do RGIT, porque violam: a) o disposto nos artºs. 1º., 27º. 1 e 58º. 2 b) e 59º. 1 a) da C.R.P. b) Decl. Un. D. Hom., artºs. 4º., 9º. e 23º.; c) Pac. In. Dtos., Ec., Soc. e Cult., artº. 8º.; d) Pac. In. Dtºs. Liv. e Pol., artsº. 8º., 9º. e 11º. e) Con. Eur. Dtos. Hom., artº. 5º. e artº. 1º. do Prot. nº. 4.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 24 de Novembro de 2003, negado provimento ao recurso, do mesmo recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça e, não tendo tal recurso sido admitido por despacho lavrado em 26 de Janeiro de 2003 pelo Desembargador Relator daquele tribunal de
2ª instância, o mesmo arguido reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, vindo o Vice-Presidente deste Alto Tribunal, por despacho de 27 de Fevereiro de 2004, a indeferir a reclamação.
Notificado desta, o arguido fez juntar aos autos requerimento por intermédio do qual manifestou a sua intenção de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso que foi admitido por despacho prolatado em 26 de Março de
2004 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães.
Pode ler-se nesse requerimento:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
1.
O Exmº. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação do douto despacho que indeferiu a interposição do recurso para aquele Alto Tribunal (cf. fotocópia anexa), mantendo-se assim as doutas decisões proferidas no Tribunal de 1ª. Instância, e neste Alto Tribunal da Relação de Guimarães.
O Recorrente, contudo, e como foi dizendo ao longo deste processo, entende que as normas, ao abrigo das quais foi condenado, enfermam de inconstitucionalidade e ilegalidade.
Por isso, pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Posto isto:
2.
Como se lê do douto ac[ó]rdão proferido no Tribunal de 1ª. Instância, confirmado pelo proferido neste Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o Recorrente foi criminalmente condenado com base no disposto no artº. 105º. 1 do RGIT, ex vi artº. 107º. deste diploma, que considera uma norma inconstitucional, ou, pelo menos, ilegal.
3.
O Recorrente pensa que suscitou aquelas invalidades com argumentos que, pelo menos no seu todo, ainda não foram objecto de apreciação do Tribunal Constitucional (que foram desenvolvidas na contestação e nas motivações de recurso).
4.
Esquematicamente, o Recorrente situou assim o problema:
I)
A lei impõe à sociedade arguida, cuja vontade é representada pelo seu gerente (o Recorrido) a prática de actos que se consubstanciam no pagamento de dívidas (contribuições) à Segurança Social, estabelecendo assim uma relação jurídica obrigacional complexa, em que os seus sujeitos são o trabalhador, a sociedade ( a entidade patronal) a Segurança Social, e o gerente da sociedade, tendo como objecto o dever do trabalhador pagar à S.S. quantia certa, que se transmite ‘ope legis’ para a sociedade, e o correspectivo poder de exigir aquele pagamento por parte da S.S. O gerente, verificados os pressupostos decorrentes da lei, é o garante subsidiário desse pagamento, gozando do benefício da excussão prévia. Esta relação é predeterminada pelo disposto nos artºs. 5º. e
6º. do Dec. Lei nº. 103/80[,] de 5/5 e artº. 10º. do Dec. Lei nº. 260/93, de
23.7 e 20º. a 24º. da L.G.T.
Algumas destas normas utilizam palavras, nomeadamente a palavra retenção, que não se compaginam com aquela relação de dever de prestar quantia certa e poder de exigir o pagamento daquela quantia.
II)
Paralelamente, o Regime Jurídico das Infracções Tributárias (RGIT), maxime nos seus artºs. 105º. e 107º., pressupõe aquele facto jurídico, predisposto e predeterminado das normas referidas na alínea anterior, como uma relação jurídica ou real, como se tivesse havido a tradição de um ‘quid’ material do trabalhador para a sociedade, de que esta se tivesse apropriado e o estabelecimento de uma relação de confiança.
A lei ficciona assim factos impossíveis de ocorrer, para acrescer à tutela civil do referido poder de exigir o pagamento de quantia certa, a tutela penal.
Ora, a contrário do que diz alguma jurisprudência, não existe:
a) tradição nem apropriação da prestação do trabalhador, porque o seu dever de prestar extingue-se com a transmissão desse dever para a entidade patronal, sendo certo que, sendo assim as coisas, se o originário devedor pagasse, pagava com coisa sua, se for o transmissário da dívida, também só pode pagar com coisa sua (a retenção é pois uma ficção).
b) não existe relação de confiança, entre a S.S. e a sociedade, porque o facto foi imposto por aquela, obrigando a sociedade a praticar, em seu favor, trabalho gratuito. Ora, a confiança exige declarações livremente aceites e não impostas.
III)
O Recorrente suscitou o facto de que estas ficções da lei (maxime a penal) foram criadas para legitimar a validade da prisão por dívidas, havendo jurisprudência que afirma que a prisão por dívidas é legal quando a dívida não tem natureza contratual mas legal, e ao incumprimento se junta algo mais.
Com o devido respeito, as coisas não são assim: a) a relação jurídica que a lei impõe tem forma contratual, sendo certo que a lei impõe hoje a celebração de contratos, prescindindo assim da liberdade contratual; b) uma dívida imposta, eticamente (sob pena de intolerável subversão de valores
éticos), merece menor tutela que uma dívida livremente assumida; c) O não pagamento de dívidas nunca é, só por si, fundamento penal, o não pagamento só pode ser elemento de um tipo legal, quando o devedor pratica outros factos (p. ex., extravio ou dissipação dolosos do seu património) para se colocar em impossibilidade de cumprimento (p. ex., em relações de alimentos ou de insolvência).
5.
Por causa de todas estas razões, o Recorrente entende que através do disposto nos artºs. 1[0]5º. e 107º. do RGIT, a lei lançou mãos da mais violenta reacção jurídica, por razões pragmático-utilitaristas, em detrimento dos supremos valores da dignidade e da liberdade da Pessoa Humana, violando, não só esses valores como os princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico
- da proporcionalidade e da interpretação das leis conforme a Constituição, em específico o disposto:
- nos artºs. 1º., 2º., 18º. 2, 19º. 4, 27º. 1 e 3, g), 58º. 2, b), 59º. 1 a) e
266º. 2 da C.R.P[.];
- artºs. 4º., 9º, e 23º. d[a] Decl. Un. Dtºs. Hom.;
- art.º 8º. do Pac. In. Dtºs Eco., Soc. e Cult.;
- artºs 8º., 9º. e 11º. do Pac. Int. Dtºs. Civ. e Pol.;
- art. 5º. da Com. Eu. Dtºs Hom., e artº. 1º., do seu Prot. n.º 4.
6.
O Recorrente suscitou estas questões na Contestação e nas motivações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
7.
(Com a devida vénia, e em amparo das razões atrás expostas, assumimos aqui o que escrevemos nas motivações do recurso rejeitado, maxime nos pontos 1 a
5).
8.
O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no artº. 70º. 1 b) da Lei nº. 28/82, de 15.11.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Em face dos termos como se encontra redigido o requerimento de interposição de recurso, o relator do Tribunal Constitucional, atendendo a que, no Tribunal a quo, não foi utilizado o poder/dever prescrito no nº 5 do artº
75º-A da Lei nº 28/82, convidou o arguido, nos termos do nº 6 daquele artº
75º-A, a indicar, com precisão, qual a norma ou quais as normas que pretendia que fossem apreciadas por este órgão de administração de justiça, qual o vício que lhe ou lhes imputava, se a mesma ou as mesmas constituíram ratio juris da decisão ínsita no acórdão intentado impugnar e, concretamente, em que peça processual, apresentada precedentemente à prolação daquele acórdão, e em que passo da mesma suscitou a questão da sua validade, tendo por referência a Lei Fundamental.
Na sequência, o impugnante veio apresentar requerimento onde disse:-
‘1.
O Recorrente pretende que sejam apreciadas as normas seguintes:
- arts. 24º. e 27º. B do RJNIFA
-artºs. 105º. e 107º. do RGTI
Porque:
2.
Os factos pressupostos nas hipóteses dessas normas são factos cuja verificação empírica é modelada por normas tributárias, ou seja, são factos que se verificam por imposição dessas normas tributárias, maxime o disposto nos artºs. 1º., 2º. e 3º. do Dec. Lei nº. 103/80, de 9/5 e artº. 20º. da LGT.
Esses factos traduzem-se em relações jurídico-tributárias, em que a Pessoa a quem a injunção é dirigida é:
- sujeito de uma relação de prestação de trabalho, que não escolheu livremente, não remunerada;
- sujeito de uma relação de natureza patrimonial-obrigacional, que os direitos e deveres têm natureza pecuniária, de cuja análise se verifica que ele se constitui em deveres de prestar quantia certa e no poder de exigir quantia certa.
3.
As normas em causa, em absoluta contradição com as normas que modelam a ocorrência dos factos a que aludem, pressupõem:
- não uma relação patrimonial-obrigacional, cuja existência assim recusam;
mas
- uma relação patrimonial-dominial ou patrimonial-real.
E, assim, e desse modo, tutelam a prisão que prevêem:
- a prestação de trabalho não remunerado e não livremente escolhido;
- o incumprimento de dívidas pecuniárias.
4.
Tais normas, ficcionando a tradição de uma ‘res’, a constituição de um depósito regular, bem como a apropriação dessa ‘res’, quando as normas tributárias, que induzem a produção do facto, provocam:
- a transmissão da dívida do trabalhador para a entidade patronal (transmissão singular da dívida); e
- a transmissão do crédito da Segurança Social sobre o trabalhador para a entidade patronal (cessão de crédito).
5.
Esta clara violação do princípio da unidade jurídica é eticamente desproporcionada.
6.
E manifesta-se ainda quando, por força dessas normas, e no que respeita aos administradores da pessoas colectivas, nas contradições seguintes:
- o administrador, pelas normas tributárias, só responde se a dívida, em execução, reverter contra ele;
- por esta via, foi condenado sem dever.
Se contra ele for deduzida a reversão:
- se for procedente, a S.S. tem novo título executivo - pela mesma dívida;
- se for improcedente, está constituído devedor sem nada dever.
Mas há mais:
Mesmo que viesse a ser constituído devedor, pela via da reversão:
- teria direito a pagar o capital em dívida, sem juros nem custas, e a exigir a excussão prévia da devedora principal;
- as normas em causa recusam-lhe (não lhe reconhecem) esse direito.
7.
Na medida em que essas normas tutelam a prisão por dívidas decorrentes de trabalho não remunerado e que não foi livremente escolhido e ficcionam,
‘transmutando’ relações obrigacionais em relações reais, essas normas violam o disposto nos artigos:
- 1º., 27º. 1, 58º. 2 b) e 59º. 1, a) da CRP;
- 4º., 9º. e 23º. da Dec. Un. D. Hom.;
- 8º. do Pac. In. Dtos., Ec., Soc. e Cul.;
- 8º., 9º. e 11º. do Pac. In., Dtºs Civ. e Pol.;
- 5º. da Com. Eu. Dtºs Hom. e 1º Prot. nº. 4.
8.
Por isso, o Recorrente imputas às referidas normas do RJIFNA e do RGIT os vícios de inconstitucionalidade, e, subsidiariamente, o vício de violação de lei supraordinária (artº. 70º. 1, a) da Lei nº. 28/82).
9.
Na medida em que essas normas contradizem os institutos que modelam a produção dos factos que geram a relação jurídica verdadeira e ficcionando uma que a realidade não comporta, violam os princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade e da interpretação da lei em conformidade com a Constituição.
10.
Por não terem reconhecido os vícios invocados, as doutas decisões recorridas julgaram a douta acusação pública procedente, contra o sustentado pelo Recorrente.
11.
O Recorrente suscitou aqueles vícios nas motivações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, nos pontos nºs. 16 a 24, e nas conclusões 4ª. a 17ª’.
2. Entende-se ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82.
Assim, em primeiro lugar, no que concerne ao recurso «subsidiário», por intermédio do qual se intenta a apreciação da ilegalidade dos normativos especificados no requerimento apresentado na sequência do convite que ao impugnante foi dirigido neste Tribunal, do mesmo não se tomará conhecimento.
Na verdade, tratando-se, como se trata, de um recurso esteado - aquando do requerimento de interposição do recurso interposto do acórdão tirado no Tribunal da Relação de Guimarães - na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, possível não seria a sua «convolação» para um recurso ancorado na alínea f) dos mesmos número e artigo.
Por outro lado, mesmo que porventura se entendesse que, na redacção utilizada naquele requerimento, houvera, da parte do recorrente, lapso na não indicação de outra alínea que não só a dita alínea b), quando, afinal, pretendia também a apreciação «subsidiária» da ilegalidade normativa de entre uma das formas de impugnação inserível nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, o que é certo é que uma tal impugnação nunca poderia fundar-se, como agora o recorrente diz no requerimento apresentado na sequência do convite constante do despacho do relator deste órgão de administração de justiça, na alínea a) do indicados número e artigo.
2.1. Sublinhar-se-á também que, como resulta inequivocamente da decisão tomada pelo Tribunal colectivo de Barcelos, confirmada pelo acórdão ora recorrido, o impugnante foi considerado autor de um crime de abuso de confiança fiscal (estando em causa contribuições devidas à Segurança Social), cuja previsão consta dos artigos 27º-B (introduzido pelo Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho) e 24º, números 1 e 4 (na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº
394/93, de 24 de Novembro), ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90.
A convocação do nº 1 do artº 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei nº 15/2001, efectuou-se, e tão só, para efeitos de determinação da pena concreta a aplicar, após se ter considerado que a pena aplicável nos termos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras era, no caso, menos favorável do que a que resultava do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Isso significa, pois, que o desenho da infracção pela qual o recorrente veio a ser condenado se suportou nos indicados artigos 27º-B e 24º, números 1 e
4.
Ora, porque o que é posto em crise pelo recorrente, do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional, é a tipificação criminal constante desses preceitos e não, independentemente de tal compatibilidade, o modo como, atenta a sucessão de leis no tempo, haverá de ser, num determinado caso, dada aplicação ao que se dispõe no nº 4 do artº 2º do Código Penal, há-de convir-se que, para efeitos do vertente recurso, o que unicamente releva é o que se estatui nas normas previsoras da incriminação.
Assim sendo, o recurso em apreço deverá incidir somente sobre as normas precipitadas nos já falados artigos 27º-B e 24º, números 1 e 4.
2.2. Teve já este Tribunal ocasião de se pronunciar, por mais de uma vez, sobre a compatibilidade ou não compatibilidade com a Lei Fundamental por parte dos referidos normativos.
Fê-lo, verbi gratia, nos seus Acórdãos números 312/2000 (publicado na II Série do Diário da República de 17 de Outubro de 2000), 516/2000 (publicado nos mesmos jornal oficial e Série, de 31 de Janeiro de 2001) 389/2001 e 427/2002
(disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/).
Nesses arestos concluiu-se pela não enfermidade constitucional dos mencionados preceitos, sendo que a corte argumentativa nos mesmos utilizada responde ao que, pelo impugnante, é esgrimido, na motivação de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães e nos requerimentos de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e naqueloutro apresentado na sequência do convite que aqui lhe foi dirigido, para pôr em crise a sua harmonia com o Diploma Básico.
Aliás, nem sequer se lobriga em que é que a epitetada contradição com
‘os institutos que modelam a produção de factos que geram a relação jurídica verdadeira’, violando a ‘unidade do sistema jurídico’, ainda que existisse, poderia brigar com normas ou princípios constitucionais, sendo que não se descortina, minimamente que seja, em que é que os normativos em apreço possam violar os artigos 27º, 58º, nº 2, alínea b), e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição, ao que se adita que a obrigação de a entidade patronal pagar à Segurança Social, no mês seguinte àquele que disser respeito, as percentagens, efectuadas por via de desconto, estipuladas no artº 1º do Decreto-Lei nº
140-D/86, de 14 de Junho, não resulta dos preceitos em causa, mas sim dos artigos 5º e 6º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio.
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa e justiça em seis unidades de conta”.
Da transcrita decisão reclamou o arguido, o que fez por intermédio de mui extensa peça processual.
E, na real impossibilidade de se efectuar uma síntese da panóplia do que nela se escreveu em jeito de alinhamento de argumentos com vista a infirmar o que consta da decisão em crise, transcreve-se o que na mesma foi dito:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
A
DAS RAZÕES (ABREVIADAS) DA RECLAMAÇÃO Parece ao Recorrente que o presente recurso foi rejeitado, no essencial, porque este ALTO TRIBUNAL, por várias vezes, já se pronunciou pela constitucional idade do disposto nos artºs. 24°. e 27°. B do RGIFNA.
É certo que o despacho em apreço entretece-se em mais algumas considerações, que, no modesto entender do Recorrente, caso fossem decisivas na sorte dos recursos, era caso para dizer que, para o Direito, mais importante que a VIDA e a LIBERDADE do HOMEM, eram os esquemas processuais (com ressalva do respeito devido). E por isso teria razão o cientista que, em pleno auditório televisivo, dizia:
‘sendo assim o direito, se alguma consideração científica ele merece, não é das coisas de que trata mas dos jogos que permite’ (cita-se de memória). Sendo doloroso dizê-lo, a verdade é que, muitas vezes, o facto dá-lhe razão.
2. O Recorrente sabe que este ALTO TRIBUNAL já, por várias vezes, declarou a constitucional idade do que dispõem os artºs. 24°. e 27°.do RGIFNA. E seria isto razão para conformar, e não se dirigir a este Alto Tribunal? Talvez fosse se nada de novo tivesse para dizer. Mas tinha. Já o disse, em parte, ao longo deste processo.
3. E tinha como se diz, em parte (pois muito mais teria a dizer, mas estes breves
10 dias não o permitem) na segunda parte deste requerimento, que antecede com esta síntese:
1ª. O caso dos autos é um fenómeno sócio-jurídico que se situa no âmbito de relações sócio-jurídicas, que se formam por imposição da lei; cujos sujeitos são o tomador de trabalho subordinado ou equivalente, o dador de trabalho e a SS, estando na origem dessas relações uma relação de trabalho subordinado ou equivalente. Na composição dessas relações, em que a SS é parte, entram pois elementos empíricos (os factos praticados pelas partes) e elementos jusnormativos (as imposições e modelações impostas pela lei).
2ª. A partir da relação laboral (ou equivalente), estabelecem-se pois duas outras relações jurídicas, em que a SS é parte, em que:
- na primeira, o dador de trabalho, no termo de cada período da relação laboral, constitui-se no dever de prestar quantia certa à SS, e esta constitui-se, assim e correspectivamente, no poder de exigir o pagamento dessa quantia, em que esse
‘quantum’, da dívida e do crédito correspectivo, é equivalente a uma percentagem da remuneração que o tomador de trabalho deve ao dador (em regra 11 % do valor dessa remuneração). Por isso, o dador de trabalho é o devedor originário.
- na segunda, o tomador de trabalho é constituído no dever de fazer a liquidação
(cálculo) do crédito da SS sobre o dador de trabalho, e é constituído no dever de prestar à SS a quantia certa a esta devida pelo dador de trabalho, que assim substitui no dever de satisfazer o crédito daquela. É por isso um devedor que substitui o devedor originário, passando a ser o devedor directo. Estes fenómenos operam-se, em concomitância, no termo de cada período da relação laboral, e produzem ainda os efeitos seguintes:
- O dador de trabalho, enquanto devedor originário à SS, fica exonerado do dever de pagar a quantia de que esta entidade é credora, transmitindo-se essa obrigação para o tomador de trabalho (transmissão singular de dívida}
- o crédito correspectivo, da SS sobre o dador de trabalho, transmite-se para o tomador de trabalho, como contrapartida da obrigação do dador de trabalho, que lhe foi transmitida (cessão de créditos). Ainda em concomitância, a eclosão daqueles fenómenos ou efeitos jurídicos produz outro fenómeno ou efeito jurídico, este agora na relação laboral, e que se traduz na constituição do tomador de trabalho no direito de compensar o crédito que lhe foi transmitido, originariamente pertencente à SS, por contra partida da obrigação que lhe foi transmitida, na sua obrigação de pagar ao dador de trabalho a remuneração devida pela prestação de trabalho que deste adquiriu. Estes efeitos jurídicos, decorrentes das relações estabelecidas entre o dador de trabalho e a SS, o tomador de trabalho e a SS, e da relação laboral que origina aquelas, resulta da análise da estrutura e da função de cada uma daquelas relações, preordenadas na lei, em que algumas palavras utilizadas nessas normas, mormente as palavras retenção, e entregar não são apropriadas, ou seja, não são significantes dos fenómenos que a estrutura individual e sistemática dessas normas provoca. Os efeitos que aqui se detectam decorrem do disposto nos artsº. 1º., 2°. e 3°. do Dec. Lei n°. 103/80, de 9.5 e normas das contas 642, 2622, 245 e 11 do Plano Oficial de Contabilidade e art°. 20°. da LGT. A análise crítico-analítica do sistema decorrente daquelas normas revela que estamos perante relações jurídicas patrimonial-obrigacional, de natureza pecuniária, e não de relações jurídicas de natureza patrimonial-dominial.
3ª. A partir dos significantes verbais impróprios (‘inter alia’, retenção e entrega de prestação), o sistema jurídico-penal, sem o proclamar expressamente, pressupõe a existência de uma relação patrimonial-dominial de depósito de uma
‘res’, em que:
- o dador de trabalho entregaria ao tomador uma quantia em dinheiro, para este entregar à SS, em cujo domínio já estava integrada.
- o tomador aceitava voluntariamente (sem ‘voluntas’ não há constituição de uma relação de confiança) fazer entrega ao “dominus” da quantia que já lhe pertencia. Partindo destes pressupostos falsos (para serem verdadeiros seriam falsos os das relações anteriormente analisadas), o legislador, no caso do tomador de trabalho não pagar à SS a quantia a cujo pagamento foi vinculado, engendrou a violação de uma inexistente relação de confiança, ficcionando que:
- ao tomador de trabalho foi entregue uma ‘res’ com a obrigação de entregar à SS.
- o tomador de trabalho aceitou receber a posse daquela ‘res’ e assumiu voluntariamente a obrigação de a entregar ao dono.
- o tomador de trabalho ficou assim investido na posse precária da ‘res’ que lhe foi entregue pelo dador de trabalho.
- o tomador de trabalho inverteu o título de posse precária em posse jurídica, apropriando-se assim daquelas quantias. Caso estes factos tivessem ocorrido, o comportamento do dador de trabalho relevavam negativamente a dois níveis:
- violação do dever de entregar a ‘res’ que recebeu;
- violação da confiança que nele foi depositada. Como não ocorreram, nem podiam ter ocorrido, a lei tipifica criminalmente uma conduta que não pode ocorrer.
4ª. A partir daí disparam as aporias do sistema, em clamoroso afronto aos princípios da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade e da interpretação das leis conforme a Constituição, com graves atropelos aos princípios fundamentais da Constituição, e aos direitos fundamentais do cidadão, violações ainda mais clamorosas quando o tomador de trabalho é uma pessoa colectiva, pois repercute-se na esfera pessoal e patrimonial dos que a representam
(administradores, gerentes), que são pessoas humanas, como é o caso dos autos.
A violação de um dever só pode legitimar a aplicação de uma sanção jurídica. Com a ‘coabitação’, pretendida pelo legislador, nas situações da espécie, as sanções possíveis são como os cogumelos, muito especialmente no que respeita às pessoas colectivas, com repercussão na esfera pessoal e patrimonial do seu representante, que as pode sofrer, em mais que uma instância, com base na
‘coabitação’ dos sistemas patrimonial-obrigacional e patrimonial-dominial. Assim: a) Tomando-se por base o sistema patrimonial-obrigacional, os mecanismos coercivos desenvolvem-se assim:
- no que respeita à pessoa colectiva: verificado o incumprimento, os competentes Serviços de Finanças instauram a competente acção executiva para pagamento de quantia certa, e não cara entrega de coisa certa. As questões jurisdicionais são da competência dos tribunais tributários.
- no que respeita ao seu representante: este só se constitui responsável subsidiário caso, naquele processo de execução, se verifique a insuficiência do património do devedor directo para satisfazer o crédito tributário, e se prove, em procedimento de reversão tributária, adrede contra si instaurado, que ele foi culpado pela insuficiência do património do devedor directo para solver o crédito tributário. Mas mesmo que se provem os requisitos da reversão, o agora constituído devedor subsidiário ainda tem os direitos de exigir a excussão prévia do devedor directo e de pagar a dívida com dispensa do pagamento de juros e custas (art°s. 23°, e 24°. da LGT). Nesta situação, a reversão e a execução, contra o devedor subsidiário, correm nos mesmo Serviços de Finanças, e as questões jurídicas dirimem-se nos tribunais tributários. b) Tomando-se agora por base o sistema patrimonial-dominial, cujos mecanismos coercivos supõem a violação do direito à propriedade e a violação da confiança depositada no depositário, os mecanismos coercivos desenvolvem-se assim:
- no que respeita à pessoa colectiva; esta é julgada em tribunal penal pelo dano que causou e pela confiança que violou (abuso), em pena de natureza penal e em obrigação de indemnizar pelo valor do dano - que é o “quantum” correspondente ao crédito e aos juros vencidos e vincendos.
- no que respeita ao seu representante: também é julgado no mesmo tribunal penal, com punição penal e na mesma indemnização, esta solidariamente. Abstraindo-se aqui a qualificação jurídica, o mesmo facto empírico torna-se assim objecto:
- da jurisdição tributária.
- da jurisdição penal. No que respeita à pessoa colectiva pode ter as seguintes consequências:
- ser condenada no processo tributário.
- ser condenada no penal pela mesma quantia (cumulação de títulos executivos), a par da punição penal. No que respeita ao seu representante:
- pode sofrer condenações idênticas.
- perde o direito à excussão prévia e o direito a pagar a dívida sem juros. Mas o que ainda é mais grave, e ninguém repara nisso, é que o representante pode:
- ser condenado no processo penal. sem ainda ser devedor (falta da reversão, como é o caso dos autos);
- ser condenado no processo penal, e a reversão, caso a haja, improceder no processo tributário. Esta duplicidade faz gemer não só a justiça. como o princípio de não contradição.
5ª. Mas como ‘nihil est sine ratione’, depois do logro da tese do depositário impossível, esta remanesce a par do princípio do Estado material social e de direito democrático (em que esta última expressão inculca a possibilidade de vigência do direito antidemocrático) para legitimar a prisão por dívidas, artilhando-se o fundamento com argumentos do tipo: a dívida é legal e não contratual, ao incumprimento juntam-se outros factos. a punibilidade assenta na apropriação dolosa da prestação e os fins do Estado social. Como o sistema não tem salvação possível, os argumentos caem pela base. Assim:
- uma dívida legal, por ser imposição, não merece tutela mais forte que a contraída voluntariamente. Pelo contrário.
- a lei não diz quais são os factos que se juntam à incapacidade de incumprimento. E quando o incumprimento abre as portas à sanção penal, são os factos que o causam (p. ex., dissipação dolosa dos bens, como nas situações de falência) que ligitimam a punição.
- a apropriação da prestação é uma indefensável logomaquia. Se o devedor originário (o dador de trabalho) pagasse, pagava com dinheiro dele; transmitida essa dívida para outrem, este, se pagar, paga com dinheiro seu.
- o argumento do Estado Social vale o que valem os ‘sócios’ que a esse Estado dão carácter. Numa sociedade dominada por um Estado que não é social (e haverá Estados que o sejam?), mas com a estrutura típica do capitalismo monopolista de Estado, não são os fins do povo que este prossegue. Para o povo vão as migalhas que o alienam. O fundamento, a que nos conduz o seu princípio (‘nihil est sine ratione’), mostra-nos que a razão a que nos conduz é uma má razão. Mas mesmo que fosse uma boa razão, os fins não justificam os meios.
6ª. Os meios que o legislador procurou são os descritos nos dois sistemas contraditórios descritos anteriormente. Por eles sujeitam os cidadãos à prática de trabalho não remunerado, a prisão por incapacidade de pagamento de dívidas, e à cumulação de condenações pelo mesmo facto. As invalidade constitucionais estão referidas nos pontos 351 e segtes. Deste requerimento. B DESENVOLVENDO RAZÕES I Generalidades
1. Foi no início da década de 90, do Século XX, que o legislador introduziu o denominado crime de abuso de confiança fiscal, no ordenamento jurídico português, que, depois, alargou a situações relativas à Segurança Social, através do chamado RJIFNA (art°s. 24°. e 27°. B deste diploma), depois substituído pelo RGIT (nos art°s. 105°, e 107°. deste). Apesar de denominados crime de abuso de confiança fiscal (em relações, sobretudo, de IRS e IVA) e crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social (relativo a contribuições de trabalho dependente ou equiparado, cuja obrigação de prestar, se transmite dos dadores para os tomadores de trabalho), o paradigma de todos estes tipos (subtipos) é sempre o mesmo. Por isso pode dizer-se que o legislador deu forma ao que podemos chamar CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA TRIBUTÁRIA. Como as formas de concretização em pouco variam, a compreensão de qualquer delas é sempre reconduzível ao paradigma comum, quase se podendo dizer que uma forma não se perceberá plenamente, nos seus momentos fenoménico-científico e fenoménico-filisófico, sem a compreensão das demais. Por isso, consideramos todas (ou quase todas) as formas de crime de abuso de confiança tributária.
2. A lei revogada (RJIFNA) dizia que quem se apropriar de prestação tributária deduzida nos termos da lei a que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com a pena de...
3. A lei em vigor (RGIT) diz que quem não entregar à administração tributária prestação tributária deduzida ou recebida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de...
4. A alteração cinge-se à eliminação da palavra apropriar - pois, no essencial, tudo se mantém idêntico.
5.
(Mas a supressão dessa palavra tem dado um enorme fôlego à jurisprudência!).
6. Todavia, o facto que o legislador relevou penalmente, porque considerou merecedor de repressão penal, é um facto que também é regulado por outras disposições legais, as quais têm dimensão pública, em parte, e civil-patrimonial, em outra parte, devidamente sistematizadas em pertinentes institutos.
7. A espécie de facto aludida nos autos releva pois perante dois institutos jurídicos, como as normas atrás referidas, aliás, referem, em que o de natureza civil-patrimonial funciona primeiro (está como que a montante) e o penal está depois (a jusante).
8. O sistema civil-patrimonial tem como categorias jurídicas informaciais a de retenção, de quantias, a dedução de quantias, a de entregar quantias, a de devedor, a de credor, a de obrigação, a de crédito.
9. O sistema penal - depois de deixar cair a categoria apropriação- entretece-se, expressamente, com as categorias abuso, confiança, dedução, entrega. credor e prestação; e, implicitamente, pressupõe as categorias retenção, tradição, posse, inversão da posse e apropriação (esta, deixada cair, continua a ser utilizada para falar da apropriação (?) de um não comportamento (!) Ou, na melhor das hipóteses, de um comportamento).
10. O sistema civil-patrimonial é um manancial de contradições, quanto aos significantes que usa; o sistema penal é um emaranhado de logomaquias e de ficções para prever o impossível.
11. A ‘mens legislatoris’, objectivamente (e a subjectividade pouco importa no domínio do direito objectivo), revela uma intencional idade ético-juridicamente insustentável, para sermos lisonjeiros, subvertendo os princípios-base de uma ordem que se reclama do ‘quale’ jurídico (do JUSTO e da JUSTIÇA), começando a subversão pelo uso impróprio dos termos para sugestionar a existência de factos de ocorrência impossível.
12. Com as palavras utilizadas expressamente ou supostas implicitamente, a esmo, sem critério unificador e contraditório, o legislador ofende crassamente as luzes da razão, formulando epistemes inexistentes, mesmo epistemologicamente insustentáveis, e que a gnoseologia repudia.
13. Como ensina Martin Heidegger, aprofundando o que Leibniz já tinha descoberto,
‘nihil est sine ratione’, ou seja, é o princípio de que nada é sem fundamento, seja uma boa ou má coisa.
14.
‘Hic et nunc’, mais que o fundamento (mas também) da subversão operada por via legislativa, importa encontrar a juridicidade do caso dos autos, mas também da espécie que ele concretiza.
15. Uma procura que só analiticamente se alcança embora saibamos que o método merece pouca estima, nestes lúgubres tempos de pensamento único, em que as profecias de Orwell carecem consumar-se.
16. Por isso, essa procura terá de ser feita por diversos mundos, começando-se pelo paradigma (ou paradigmas), e seguindo-se pela análise lógico-filológica, e seguindo-se pela análise dos subsistemas em confronto e suas contradições entre si e perante os valores ético-jurídicos a que se devem subordinar, culminando, depois de se tocar nos fundamentos em que se louva, na relevância constitucional. II Os paradigmas do sistema
17. Neste capítulo vamos procurar perceber o paradigma que a lei utiliza, que, melhor dizendo, são dois paradigmas: um de concepção civil-patrimonial, o outro de recorte penal . a) O paradigma ou sistema civil-patrimonial
18. Dissemos atrás que o sistema civil-patrimonial se entretece com as categorias retenção, quantias, dedução de quantias, entrega de quantias, devedor, credor, obrigação, crédito.
19. Mas insinuámos que nem todas essas categorias, pelo menos filologicamente, correspondem aos elementos constituintes da relação económico-jurídica que essas normas estabelecem.
20. O modo como essa relação se estrutura, bem como a função que estabelece, mostra-nos que, nas situações de trabalho dependente ou independente, no termo de um dado período de trabalho ou duma prestação de trabalho, o tomador do trabalho constitui-se devedor e o dador de trabalho constitui-se correspectivo credor de uma determinada quantia em dinheiro (remuneração), e que, no mesmo momento, o trabalhador constitui-se devedor e a Fazenda Nacional credora (IRS) de uma determinada fracção (v. g., 20%) do ‘quantum’ de que o trabalhador é credor em relação ao tomador do seu trabalho (e o mesmo esquema se aplica às relações com a Segurança Social, que toma a posição da Fazenda Nacional).
21. Nas relações de locação imobiliária, também no termo de um dado período, o locatário (arrendatário) constitui-se devedor e o locador (senhorio) constitui-se correspectivo credor de uma determinada quantia em dinheiro
(renda), e que, no mesmo momento, o locador constitui-se devedor e a Fazenda Nacional credora (também, v.g., 20%) do ‘quantum’ de que o locador é credor em relação ao locatário.
22. O trabalhador e o locador são assim os devedores originários em relação à Fazenda Nacional.
23. Todavia o esquema engendrado pela lei, no termo do período em que se vencem as prestações laborais e locatícias referidas, transmite as prestações devidas pelo trabalhador e pelo locador para o tomador do trabalho e para o locatário, operando assim a transmissão das dividas destes para aqueles, e, concomitante e consequentemente, a extinção das dívidas do trabalhador e do locador, e o ingresso dessas dívidas na esfera jurídica do tomador do trabalho e do locatário, em que estes se constituem em devedores substitutos.
24. Este esquema legal revela a existência de duas relações económico-jurídicas, em que a primeira se opera entre sujeitos de direito privado ou nessa veste, e a segunda entre estes e a Fazenda Nacional.
25. No aspecto que aqui releva, no termo do período laboral ou do período locatício, o trabalhador ou o locador têm direito a uma quantia certa sobre o tomador de trabalho ou locatário (que é um poder de exigir), estes têm a obrigação (dever de prestar) de pagar aquela quantia.
26. Isto revela que o objecto imediato da relação, do lado do trabalhador ou do locador, é o poder de exigir o pagamento, e o objecto mediato é a quantia em dinheiro.
27.
‘Mutatis mutandis’, no termo do período da relação de trabalho ou da relação locatícia, a Fazenda Nacional constituiu-se por força da substituição do devedor originário pelo devedor substituto, no direito ao ‘quantum’ de IRS que aquele lhe deve, que também se traduz num poder de exigir o pagamento (objecto imediato) daquele ‘quantum’ (objecto mediato), em que a correspectiva obrigação de pagar até se vence em momento posterior .
28. Aos fenómenos descritos junta-se um outro de relevância capital, que a jurisprudência, abundante mas desfocada, teima em não reparar, apesar de adrede impetrada, e a ténue doutrina existente nem é capaz de aludir.
29. Na verdade, no termo do período laboral ou locatício, e como vimos, o dador de trabalho e o locador têm direito a uma retribuição pelo trabalho dado ou pelo uso do prédio, mas têm o dever de pagar uma fracção do valor pecuniário desse direito à Fazenda Nacional.
30. Como também vimos, a lei, no termo desse período, extingue esse dever de prestar do dador de trabalho ou do locador e transmite-o para o tomador do trabalho ou para o locatário que, assim, assume essa dívida.
31. Todavia, e correspectivamente, o tomador de trabalho e o locatário, ao assumirem a dívida do trabalhador ou do locador à Fazenda Nacional, adquirem os créditos que esta tinha sobre o trabalhador e o locador .
32. Por essa razão, o tomador de trabalho e o locador ficam constituídos no direito de compensar esses créditos nas dívidas de trabalho adquirido ou na renda a pagar, que assim ficam parcialmente extintas.
33. A compensação, como é tão sabido quanto aqui tem andado esquecido, é forma de extinção de obrigações.
34. De tudo isto resulta que as palavras retenção, dedução e entrega usadas no sistema civil-patrimonial são absolutamente impróprias, pois o que está em causa são relações de crédito (entre credores e obrigados), com um sistema de transmissão de dívidas e cessão de créditos, com operações de compensação, em que os objectos imediatos são poderes de exigir e o dever de prestar, e os objectos mediatos são quantias em dinheiro (coisa fungível).
35. A estes factos importa juntar outro aspecto daquelas relações, a que se encontra a montante (empregador/trabalhador ou locador/locatário) e a que se encontra a jusante (empregador/trabalhador - fisco, locador/locatário - fisco) e que configuram:
- a primeira - uma relação estabelecida ao abrigo da liberdade contratual;
- a segunda - imposta pelo Estado (em veste própria ou de Segurança Social).
36. O que não é despiciendo - mas por outras razões, que não as que pensam que o Estado quer ser o Verbo (à boa maneira hegeliana), mas ao contrário deste, não estava no Princípio, (não se fez carne), não estava nem era Deus (quando muito o seu contrário).
37. Esta relação imposta implica trabalho, por parte do devedor.
38. Na verdade, o devedor é coagido a liquidar ao devedor originário as quantias que este deve à Fazenda Nacional ou Segurança Social, e a esta fazer os respectivos pagamentos.
39. Para o efeito dispende trabalho e consome meios materiais, que a Fazenda Nacional ou a Segurança Social não lhe paga.
40.
É por isso coagido ou forçado a prestar trabalho não remunerado, sob a ameaça de sanções contra-ordenacionais e penais.
41. As relações de IVA estruturam-se através de um sistema em forma de relação jurídica em conta corrente, na qual entram como partes a Fazenda Nacional e os produtores de bens e serviços, investidos por lei no papel de agentes do Estado na liquidação do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), em que este é um imposto sobre o consumo. mas que o Estado cobra, em grande medida, adiantadamente, não do efectivo devedor originário. mas desses ‘liquidatários’ que, assim, são constituídos em devedores directos.
42. Na verdade, quando o bem é transmitido ao consumidor, este paga ao transmitente final o IVA devido pela aquisição do bem que vai consumir, mas os produtores/transmitentes parciais do bem, ao longo da cadeia de produção foram adiantando ao Estado, à sua custa, grande parte do NA devido pelo consumidor final.
43. Este facto pode exemplificar-se do seguinte modo, pressupondo-se o bem X que o produtor /transmitente final vendeu ao consumidor por 100, em que a taxa de IVA
é de 19%, e que no ciclo produtivo intervieram 4 produtores:
PREÇO IVA
- A transmite X a B, por 20
3,8
- B transmite X a C, por 40
7,6
- C transmite X a D, por 60
11,4
- O transmite X a E, por 80
15,2
- E transmite X ao Cons., por 100 19
Isto mostra várias coisas, nomeadamente que:
- no momento da transmissão ao consumidor, o Estado já tinha arrecadado 15,2, sem ainda ser efectivo credor desse imposto sobre o consumo;
- só não tinha, na sua mão, até ao momento da transmissão do transmitente final, a quantia de 38 por causa do sistema de compensação a que cada transmitente tem, no momento em que transmite, de compensar o que pagou na aquisição que fez anteriormente.
44. Isto demonstra que o transmitente que, em regra, é adquirente/produtor/transmitente, sendo constituído como liquidatário deste imposto, simultaneamente: a) Quando adquire um bem ou serviço é:
- devedor ao transmitente, do IVA que lhe é liquidado;
- credor do Estado, desse IVA que lhe foi liquidado. b) Quando transmite um bem ou serviço é:
- credor da pessoa a quem transmitente, do valor do IVA que lhe liquida;
- devedor ao Estado, da quantia de IVA que liquidou à pessoa a quem transmitiu.
45. Por isso, o adquirente/produtor/transmitente e o Estado estão vinculados numa relação jurídica de conta corrente, que é liquidada no termo de cada mês ou trimestre (conforme os casos), em que, no termo desse período, por essa liquidação (apuramento ou cálculo), se verifica quem é devedor de um saldo - que, ou é o adquirente/produtor/transmitente, ou é o Estado.
46. Se o saldo demonstrar que o adquirente/produtor/transmitente é devedor, este deverá pagar, no prazo previsto na lei, ao Estado esse saldo - não as quantias recebidas, que até podem não estar recebidas, como, em regra, não estão -; se for o Estado o devedor, o adquirente/produtor/transmitente tem o direito de compensar esses saldos em débitos posteriores do Estado, ou de exigir deste o pagamento desse saldo, indevidamente chamado reembolso.
47. O modo como a lei preordena o desenvolvimento destas relações, demonstra a impropriedade do uso das palavras prestação tributária recebida e obrigação de entregar, porque o adquirente/produtor/transmitente: a) quando liquida IVA, constitui-se credor desse montante em relação ao adquirente, e constitui-se devedor desse montante em relação ao Estado; b) no período em que a relação jurídica de IVA é liquidada (mensal ou trimestralmente) ele
(adquirente/produtor/transmitente) ou é devedor ou é credor de um saldo - mas nunca é devedor nem credor do que recebeu ou pagou (em relação ao Estado).
48. Disto resulta que o adquirente/produtor/transmitente, quando recebe o valor de IVA, recebe aquilo que tem direito de receber, como, quando paga o IVA que lhe é liquidado, paga aquilo que deve.
49. Mas estes direitos e obrigações, em relação ao Estado e ao adquirente/produtor/transmitente, constituem-se independentemente deste ter pago
àquele de quem adquire ou de ter recebido daquele a quem transmite.
50. E, quando paga ou recebe, paga ou recebe quantias pecuniárias, não entregando nem recebendo uma ‘res’.
51. Por isso as palavras receber, prestações de outrem e não entregar, são palavras impróprias para retractar os fenómenos a que respeitam.
52. Estes fenómenos, tal como nas relações de trabalho (F.N. e S.S.) e prediais ou equiparadas configuram:
- relações jurídicas estabelecidas ao abrigo da liberdade contratual (as respeitantes às trocas de bens e serviços);
- relações jurídicas impostas pelo Estado (as respeitantes à liquidação de IVA).
53. As primeiras condicionam as segundas, em que estas, sendo relações impostas pelo Estado, implicam, por parte do adquirente/produtor/transmitente de bens e serviços, o dispêndio de trabalho não remunerado, em favor da Fazenda Nacional.
54. Também nestas relações o adquirente/produtor/transmitente despende trabalho e consome meios materiais que a Fazenda Nacional não lhe paga.
55. Também por isso é coagido ou forçado a prestar trabalho não remunerado, sob ameaça de sanções contraordenacionais e penais. a) O paradigma ou sistema penal
56. Dissemos também que o sistema penal compreende, de modo expresso, as palavras abuso, confiança, não entrega, dedução, credor e prestação; e, de modo, implícito, as categorias retenção, tradição posse, inversão da posse e apropriação.
57. O sistema penal não acrescenta mais facto algum aos previstos no sistema civil-patrimonial, por exemplo, desvio ou dissipação do património do devedor, para este se colocar, dolosa ou negligentemente, na situação de inadimplência. Este sistema sente-se satisfeito com aqueles factos; mas dele tira conclusões contrárias.
58. Ora, o sistema civil-patrimonial, a partir de relações constituídas ao abrigo do princípio da liberdade contratual (ou é expressão do inato princípio do poder de autodeterminação da pessoa humana - a esmo esquecido pelos novos ‘maitres penseurs’, arvorados em legisladores), forma-se em meras relações de débito/crédito de quantias pecuniárias, ainda que sob a forma de imposição.
59.
É pois uma imposta relação de débito/crédito, em que um e outro são relativos a quantias pecuniárias ou coisas fungíveis, em que o ‘quantum’ a que o impositor tem direito se constituiu pela via da transmissão de uma dívida pecuniária, e com a constrição de trabalho não remunerado.
60. Neste conspecto, se há abuso - e há! - é no falar-se de abuso de confiança, confundir-se falta de pagamento com não entrega, dedução em vez de compensação.
61. Mas o que ainda é mais grave é ficcionar-se a existência de uma ‘res’, para daí se arrancar para as noções (ainda que não expressas) de retenção, tradição da coisa, posse e inversão do título de posse e apropriação, supondo-se assim uma relação patrimonial-dominial ou real, de existência impossível, quando a relação existente é meramente patrimonial-obrigacional.
62. A subversão opera-se pois a partir da palavra.
63. E as palavras centrais, que a lei usa para atingir a estratégia político-legislativa são:
- a retenção (de que a entrega, a posse e inversão do título de posse são meros corolários);
- a confiança (de que o abuso é corolário).
III As logomaquias filológicas do sistema
64. As palavras centrais são, como dissemos, as palavras retenção - (com entrega, posse e inversão do título de posse) e confiança (com o seu corolário de abuso), mas também receber e entregar.
65. O legislador, ao utilizar as referidas palavras, induz o intérprete em erro.
66.
É certo que os intérpretes não devem proclamar a existência de conteúdos significativos, inculcados por palavras impropriamente usadas, quando esses conteúdos não existem.
67. Mas a verdade é que, por razões históricas, sócio-económicas, cientificas (má ciência) e culturais, os intérpretes outra coisa não têm feito que corroborar o erro do legislador .
68. E o erro patenteia-se logo ao nível lógico-filológico, em que as palavras dizem uma coisa e pensa-se noutra.
69. A lei é formada por palavras que representam factos e situações susceptíveis de ocorrerem no mundo empírico, e um juízo valorativo dessa ocorrência - que é ordem de aprovação, proibição ou imposição.
70. A lei, a norma, é pois uma dupla representação - tornar presente -, pois torna presente:
- um facto ou situação possível;
- um juízo que valora ou aprecia a ocorrência desse facto.
71. Mas essa representação só é possível de se formar na consciência representativa e valorativa, dos entes dotados dessa consciência - o ser humano.
72. A representação ainda supõe que os factos e situações e juízos de aprovação, proibição ou imposição, sejam entendidos da mesma maneira pelos destinatários da lei.
73. Por isso os conteúdos representados têm que ter os mesmos significados e os mesmos significantes para os destinatários, pois, doutro modo, generaliza-se o equívoco.
74. Só assim é possível constituir a comunidade comunicante de que fala Baptista Machado, só assim assumem objectividade os significados e os seus significantes, só assim estes se transformam em elementos racionais, comunicáveis pela palavra
.
75. A psicologia, hoje fortemente apoiada pela neurociência, demonstra que o objecto cognoscível, forma-se por imagens (visuais, sonoras ou outras formas sensitivas) que partem do ‘exterior do cérebro para o seu interior’, quando o observamos, ou
‘do interior para o exterior’, ‘quando reconstruímos objectos a partir da memória’, como ensina António Damásio (o Erro de Descartes e o Sentimento de Si).
76. Mas como ele e outros autores o demonstram, a imagem é intransmissível enquanto não se encontra a palavra adequada, e é quase impossível definir a imagem quando não temos palavra que a represente.
77. Abreviando, é patente que o objecto oferece-se à consciência compreensiva e representativa pelos elementos ou notas que o compõem, em que cada um deles se dá por uma imagem, a qual se transforma em ideia.
78. Através das ideias constroem-se os conceitos - que são formas de conceber, como ensina Giovani Sartori - que se comunicam quando adquirem objectividade.
79. O nosso inef[ ]ável legislador deu tratos de polé, ao aludir, nas leis em apreço, aos conceitos de retenção e confiança, ao modo como se forma o conhecimento.
80. Por essas regras, inviamente criadas (e, por ser lei, pouco interessa a intenção dos que a escreveram), conseguiu, sem problemas de consciência, consagrar a prisão por dívidas pecuniárias.
81. Todavia, os significantes dessas normas – RETENÇÃO E CONFIANÇA, bem como de RECEBER e ENTREGAR - supõem factos ou situações impossíveis de ocorrer.
82. Os factos que ocorrem, por imposição legal, são os que atrás vimos sob a epígrafe ‘o paradigma ou sistema civil-patrimonial’, que ocorre por imposição da lei.
83. No papel de RETENTOR, é colocado o dador de trabalho ou o locatário de um imóvel, a quem a lei impõe a assumpção do dever de prestar quantia certa, devida por outrem, mas que a lei desonera através daquela impositiva transmissão da sua dívida; no papel de RECEBEDOR de IVA é colocado quem apenas pode ser devedor de um saldo, que, geralmente, quando constituído devedor ainda não recebeu o valor do saldo que deve.
84. Assim sendo as coisas, se o devedor originário não pagasse a sua dívida, e caso ela se transmitisse pela forma conhecida, ele era apenas devedor dessa quantia.
85. Como a dívida se transmite para o tomador de trabalho ou locatário ou liquidatário de IVA, estes não são mais nem menos do que ocupantes da posição do devedor originário.
86. Para que o devedor substituto fosse retentor do crédito correspectivo, tornava-se necessário que o devedor originário lhe passasse para a mão a quantia que devia ao correspectivo credor, e ainda com a condição de que o devedor substituto ficasse constituído em depositário, em sentido próprio, e não apenas sujeito passivo de um depósito irregular.
87. Ou seja, para que o devedor substituto fosse retentor ou recebedor, teria de ser constituído depositário de coisa alheia, e não devedor de uma quantia pecuniária, e, assim, a Fazenda Nacional (ou a S.S.) já passaria a ter essas quantias no seu activo dominial (o direito real sobre aquele dinheiro) e não no seu activo obrigacional.
88. Ora, as coisas são exactamente ao contrário: o devedor substituto nada recebe em depósito, nesse momento, e, no activo da Fazenda Nacional, apenas entra um crédito sobre o devedor substituto e não uma ‘res’ (idem, quanto à S.S.).
89. Para ser alcançado o desiderato, de submeter os devedores substitutos à pressão da ameaça de prisão, em caso de incumprimento, e para não carregar o odioso da prisão por dívidas, a lei não teve outro remédio que não fosse o de ficcionar factos e situações (os significados), para poder utilizar palavras que retratam realidades diferentes (para o perceber, não é necessário ser especialista em Maquiavel, nem Kafka).
90. As palavras chave da subversão são as palavras retenção e confiança. Pois bem:
91. A palavra retenção é um substantivo feminino que significa acto ou efeito de reter, ou seja, é expressão ou consequência de um movimento ou comportamento anterior, que propiciou o ter na mão do retentor, por acção dele ou de terceiro.
92. Esse acto ou efeito pressupõe uma predicação verbal, que é dada pelo verbo reter
(re-ter), que é um verbo transitivo, isto é, um verbo que pede complemento directo, em que este é formado por palavras que designam o objecto sobre que directa e imediatamente recai a acção significada pelo verbo.
93. O verbo reter, etimologicamente, é formado pelo prefixo ‘re’ (puxar para trás) e pelo tema ‘ter’ (possuir), o que inculca os significados de não largar, manter, deter, possuir um objecto (sobre o qual recai a acção de não largar, manter, deter, possuir).
94.
É assim manifesto que a retenção é consequência duma acção de alguém sobre um objecto, em que a acção é movimento mecânico (que implica o dispêndio de energia
- química ou mecânica), não sendo, por isso, um movimento meramente ideal, e o objecto terá de possuir características físicas ou corpóreas.
95. A acção de retenção é a acção do RETENTOR, e o objecto da acção só pode ser uma
‘res’.
96. O objecto, por seu lado, e sendo uma coisa, tanto pode ser coisa do retentor como de terceiro, mas tem que ser coisa que está na mão daquele, ou porque a criou ou adquiriu (quando é dele), ou porque a apreendeu ou lha colocaram na mão
(por acto anterior à acção de retenção).
97. Só depois de ter a coisa ou o objecto na sua mão, é que o retentor pode exercer a acção de re-tenção (de manter a tensão-propósito-e tensão-pressão- de puxar para trás).
98. Ora, nos casos da espécie, o devedor substituto assumiu (‘rectius’, foi-lhe imputada) uma dívida pecuniária, ou seja, foi-lhe atribuído um dever - o qual é uma posição passiva -, que, por evidência ‘a priori’, não é passível de apreensão mecânica, não é passível de actos retentórios.
99. Sendo assim as coisas, e não podem ser doutro modo, não havendo coisa corpórea, não pode haver posse de coisa de outrem, não pode haver tradição dessa coisa para o retentor nem inversão do título de posse, muito menos qualquer obrigação de entregar (mas sim, de pagar a dívida que lhe foi transmitida).
100. Idêntica sorte tem a noção de CONFIANÇA (menos as pessoas que caem na alçada da noção).
101. A palavra confiança é um substantivo feminino que revela três acepções que são, essencialmente, sentimentos:
- a confiança em si próprio (ou endógena);
- a confiança que alguém manifesta merecer (ou exógena);
- a confiança relacional
102.
É manifesto que, na espécie, só a confiança relacional releva, porque só esta é passível de abuso.
103. A confiança em si próprio ou pessoal, não é passível de abuso mas de perda (o artista perdeu a confiança na sua capacidade); a confiança em alguém, com quem não se estabeleceu uma relação de confiança, também não é passível de abuso, mas de frustração (já não acredito no projecto daquele político).
104. A confiança relacional pressupõe uma acção prévia, expressa no verbo confiar, na forma transitiva, que significa entregar ou comunicar alguma coisa a alguém sem receio de a perder ou sofrer dano.
105. Ou seja, o confiante entrega uma coisa a outrem com a convicção de que ele a guarda e devolve.
106. Se aquele em quem o confiante não devolve a coisa ao confiante ou não a entrega a quem ele lhe disse que a devia entregar , abuso de confiança daquele.
107. A confiança relacional pressupõe, antes do abuso, uma acção prévia de duas pessoas - do confiante e do merecedor da confiança - e um objecto – a coisa ou a mensagem entregue a este.
108. Nos casos da espécie, não há uma nem outra coisa, ou seja, não houve declaração nem aceitação, não houve coisa nem comunicação, houve e há, apenas, imposição de assumpção ou imputação de uma dívida pecuniária, imposição do dever de a pagar num dado prazo.
109. Por isso não foi estabelecida qualquer relação de confiança, porque o que se impõe, sob ameaça de prisão, é, por definição, (evidente, ‘a priori’) o contrário da confiança.
110. Assim sendo, o abuso não reside no acto da pessoa que não cumpre, o abuso é da lei que proclama o impossível, o inexistente.
111. Resumindo: mesmo do ponto de vista linguístico, não é possível a retenção, nem foi estabelecida qualquer relação de confiança.
IV Análise das regras jurídicas do sistema a) O regime do paradigma ou sistema civil-patrimonial
112. Por razões de oportunidade e conveniência do Estado Administrador, e baseado no paradigma do tipo legal de crime, do Direito Penal comum, que é o abuso de confiança, o legislador cunhou um tipo legal de crime, a que poderemos chamar ABUSO DE CONFIANÇA TRIBUTÁRIA, com os subtipos, ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL - estes com base em pretensas retenções de IRS de adiantamentos de impostos devidos por terceiros ou de recebimento de impostos também devidos por terceiros
- e ABUSO DE CONFIANÇA EM RELAÇÃO A SEGURANÇA SOCIAL – este também com base em pretensas retenções de contribuições devidas por terceiros à Segurança Social.
113. O facto jurídico susceptível de relevar penalmente, nos domínios desse tipo geral - abuso de confiança fiscal tributária -, é um facto jurídico compósito que contém elementos empíricos (p. ex., as concretas actividades da relação laboral, da relação locatícia, ou da transacção comercial) e elementos jurídicos
(p. ex., o dever de fazer liquidação e pagamentos periódicos do IRS e da contribuição para a Segurança Social pelo devedor directo ao devedor originário, de liquidar IVA nas transacções ocorridas e de pagar o saldo devedor respeitante a cada período legal), ou seja não são factos em que a pura empiricidade cobra qualificação jurídica, mas em que a norma não entra na composição do facto, sendo sim factos cuja produção é induzida pela própria norma (como ocorre em todos os factos impostos por lei).
114. Nas relações de trabalho dependente ou independente e nas relações locatícias, desde a formação delas, passando pelo momento da liquidação dos pagamentos por conta, originariamente devidos pelos dadores de trabalho e locadores, até ao momento do vencimento destas obrigações e ao seu cumprimento ou incumprimento, os elementos jurídicos, a par dos elementos empíricos, estão sempre presentes na formação e modelação dos factos tributários da espécie, com específicas estatuições jurídicas.
115. As estatuições de maior relevo, atinentes a estes factos tributários, que tocam os tomadores de trabalho e os locatários, os dadores de trabalho e locadores, e a Fazenda, que se produzem no momento do vencimento, em plena concomitância, das remunerações periódicas devidas aos dadores de trabalho e aos locadores, são: a) A constituição do dador de trabalho ou locador na obrigação de fazer pagamentos por conta no termo de cada período laboral ou da relação locatícia, do imposto sobre os rendimentos obtidos na execução dessas relações, como decorre do disposto no CIRS: quanto ao trabalho dependente, dos art°s. 2°.1, a) e 100°.; quanto ao trabalho independente, dos art°s. 3°.1, b) e 101°.1 , b); quanto aos rendimentos da locação art°s. 8°.1 e 2 e 101°.1, a). b) A constituição do tomador de trabalho ou locatário no dever de liquidar ao dador de trabalho ou locador, que são os devedores originários à Fazenda Nacional daqueles pagamentos por conta, e em nome desta, aquelas quantias (artº.
98°. do CIRS). c) A transmissão da obrigação de fazer aqueles pagamentos por conta, dos devedores originários à Fazenda Nacional (trabalhadores e locadores), para os tomadores de trabalho ou locatários, que assim se constituem devedores directos
à Fazenda Nacional (art°. 98°.2 e 3 do CIRS e art°. 20°. do LGT). d) A extinção da obrigação dos trabalhadores e locadores referidos fazerem à Fazenda Nacional os pagamentos por conta referidos. e) A transmissão dos créditos de pagamentos por conta referidos, da Fazenda Nacional, sobre os dadores de trabalho e locadores também referidos, para os tomadores de trabalho ou locatários (art°. 98°.1 do CIRS e art°. 20°. da LGT).
116. Do modo como a lei predispõe os factos jurídicos da espécie revela que: a) O tomador de trabalho e o locatário ficam constituídos no direito de, imediatamente, compensarem o crédito adquirido, nos termos referidos na al. c) do artigo anterior , ao contrário de todos os fenómenos jurídicos referidos nesse artigo, não se vence nesse momento (em que tudo o demais se opera em concomitância). b) A prestação transmitida ao tomador de trabalho ou locatário, nos termos referidos na al. c) do artigo anterior , ao contrário de todos os fenómenos jurídicos referidos nesse artigo, não se vence nesse momento (em que tudo o demais se opera em concomitância).
117.
É pois manifesto que as normas ora invocadas, que predispõem ou ordenam os factos e relações referidas, provocam factos típicos de relações obrigacionais pecuniárias que são puras relações de crédito e débito, em que os, respectivamente, poderes de exigir e dever de prestar, são quantias em moeda de curso legal, por isso coisa fungível, cujos créditos só podem ser satisfeitos com dinheiro do devedor.
118. Esses factos e relações são ainda assim qualificados pelo Plano Oficial de Contabilidade (POC), que, muitas vezes, até parece que não é entendido como lei da República.
119. Ora, lendo-se as normas do POC, relativas aqueles factos e relações, e tomando como referência o trabalho dependente (as situações de trabalho independente e de locação têm idêntico tratamento, apenas havendo uma ou outra pequena alteração do número de conta). em que podemos figurar o tomador de trabalho como T, o dador como D, a Fazenda Nacional por FN, e supondo que no termo do período da prestação laboral o património de T é de 100 (unidades monetárias), que tem em CAIXA, que a remuneração de D também é de 100, e a dita retenção
(adiantamento periódico de D, em IRS), é de 10 unidades, na perspectiva da situação patrimonial de T (que é idêntica à da sociedade arguida), pelas normas do referido POC, é a seguinte:
Conta nº. Débito Crédito Saldo/D/C
1) No termo da prestação laboral em causa a situação de T é:
- Dinheiro em caixa 11 100
100D
- Remuneração a D 642 100
100C
Situação líquida
000
2) Nesse mesmo momento, T liquida a D.O. adiantamento que este deve a FN, e resulta a transmissão para T:
- da dívida de D à FN 245 10
- do crédito da FN para T 2622
10 Situação líquida
000
(Neste momento lógico:
- o caixa mantém 11
100 100D
- Mas o crédito de D é de 642
90 90C
- Porque a FN já é credora de) 245
10 Por isso, situação líquida
000
3) Ainda no mesmo momento, admitindo-se que T paga a D o que este tem direito:
- Pagamento em dinheiro 11
90 10D
- Extinção do crédito de D 2622
90
(Neste momento lógico:
- o caixa baixou para 11 10
10D
- o débito à FN mantém-se, porque
não vencido 245
10 10C Por isso a situação líquida é de
000
120. Aquilo que as normas do CIRS e da LGT já mostraram, as normas do POC (que qualificam (conta 11) o dinheiro em caixa como disponibilidades directas e imediatas do tomador de trabalho ou locatário) também mostram que estamos perante relações de débito/crédito de natureza pecuniária, e que o dinheiro que aí se movimenta, quando recebido pela entidade que liquida o IRS é dinheiro que passa a ser dela, e quando ela paga, paga com dinheiro dela. o mesmo ocorrendo nas relações com a Segurança Social.
121. Nestas relações falar de retenção, no sentido de retenção de coisa alheia. é cometer-se uma grave logomaquia, como falar-se de dedução é uma impropriedade linguística que leva a confundir-se a compensação de uma dívida de outrem, adquirida por força de lei, num crédito daquele de quem se adquiriu a dívida.
122. Ora, a lei é uma organização lógica de relações ou situações económicas, sociais ou culturais; por isso deverá ter um sentido ou significado lógico.
123. As palavras não são despiciendas na formulação do sistema; todavia, o sentido do sistema não se cobra do sentido de uma ou outra palavra que ele utiliza, mas do seu contexto significativo.
124.
É patente que o contexto das normas que se acabam de referir (LGT, CIRS e POC), os adiantamentos do IR5 devido anualmente por dadores de trabalho dependente e independente e por locadores de imóveis ou equiparados, são originariamente dívidas destas entidades, que lhe são liquidadas (acto tributário) pelos correspectivos tomadores de trabalho e locatários, em que estes, no momento da liquidação referida, adquirem por transmissão a dívida do devedor originário, que se obrigam a pagar posteriormente à Fazenda Nacional, mas, concomitantemente, também adquirem o crédito que esta tinha sobre o devedor originário ( e o esquema de pagamento das contribuições mensais devidas pelos trabalhadores à S.S., é exactamente o mesmo).
125. Como o devedor originário é credor da remuneração de trabalho ou da renda pela locação que lhe é devida pelo adquirente daquela dívida e daquele crédito, fica assim constituído no direito de compensar o crédito adquirido na dívida que tem para com o dador de trabalho ou locador.
126. Que algumas palavras impróprias que a lei utiliza (retenção, dedução)induzem em erro, é facto.
127. Mas a ciência existe para desfazer os erros.
128. A análise científica do sistema desmantela o erro e evidencia a verdade.
129. Incontornavelmente!
130. Nas relações de IVA relevam as normas, constantes do CIVA, que definem os elementos seguintes:
- operações tributáveis: artºs. 1º., 3º., 4°., 5°. E 6°.;
- adquirentes/produtores/transmitentes, coagidos à prática de liquidação de IVA: artº. 2°.
- momento da constituição do direito e obrigação de IVA (que a lei, falsamente, diz que ‘se torna exigível): artºs. 7°. e 8°.;
- critérios de cálculo do IVA: artºs. 16°. a 18°.;
- esquema por que se formam as relações adquirente e transmitente e liquidatário de IVA (adquirente/produtor/transmitente) e Fazenda Nacional do qual resulta uma relação jurídica de conta corrente entre o liquidatário e a Fazenda Nacional: artºs. 19°. a 25°.;
- momento em que se vence o crédito de um saldo pecuniário de IVA da Fazenda Nacional: artºs. 26°. e 40°.
- momento em que se vence o crédito de um saldo pecuniário de IVA do adquirente/produtor/transmitente: artºs. 22°. e 71º.
-pecuniaridade das obrigações e créditos de IVA: ‘inter alia’, artºs. 16°. a 1
8°.
131. Da análise destas normas resulta que, a partir do momento em que uma pessoa jurídica é coactivamente investida no dever de fazer liquidações de IVA, é instituída uma relação Jurídica de conta corrente de obrigações pecuniárias, entre essa pessoa e a Fazenda Nacional, pois ambas têm ‘de entregar valores uma
à outra’, ficam assim obrigadas ‘a transformar os seus créditos de ‘deve’ e
‘há-de-haver’, de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação’ será exigível, tal como no contrato de conta corrente (cf. artº. 344°. do C.Com.).
132.
É pois manifesto que as normas ora invocadas, que predispõem ou ordenam os factos e relações referidas, provocam factos típicos de relações obrigacionais pecuniárias, em forma de conta corrente, que são puras relações de crédito e débito, em que os, respectivamente, poderes de exigir e dever de prestar, são quantias em moeda de curso legal, por isso coisa fungível, cujos créditos só podem ser satisfeitos com dinheiro do devedor .
133. Estes factos são também qualificados pelo POC.
134.
À luz do POC podemos verificar o acima asserido, com as ilustrações que se seguem.
135. Assim, imagine-se um dado adquirente/produtor/transmitente, que é uma sociedade comercial, iniciou a sua actividade em 1.1.2003, e está colectado no regime de pagamento mensal de IVA. Em termos constantes adquire mensalmente e no início da cada mês, bens e serviços do valor de 1000, pagando o preço e o IVA, este à taxa de 19%, a contado, pagando assim 1190. Até ao fim de cada mês adquire trabalho dependente no valor de 2000 (abstraímos aqui o problema de compensações de IRS e SS., bem como as prestações devidas). No último dia de cada mês, a sociedade em causa vende o seu produto (o que adquiriu e o que acrescentou) pelo valor de
3000 (abstraímos aqui outros custos, bem como perdas ou ganhos), a prazo de 4 meses, ou seja, os clientes pagam-lhe o preço de 3000 e o IVA liquidado de 570 no último dia do 4°, mês após a entrega. A sociedade iniciou a sua actividade com o capital de 3190. Como faz as aquisições a contado, no 1°. dia do mês a que essas aquisições respeitam, e paga trabalho de cada mês no último dia do mês, como só recebe a 4 meses após a venda, a partir do 1°. mês, e como neste esgotou a liquidez resultante das entradas de capital, só pode continuar a sua actividade, durante alguns meses, se obtiver financiamento alheio das compras
(com o IVA) e mão de obra, menos para pagar o IVA que foi creditando ao Estado. Perante este exemplo, vejamos como as coisas se qualificam, no termo do 1°. mês, em face do POC:
Conta n°. Débito
Crédito Saldo D/C Como iniciou a sua actividade com capital de 3190, e pressupondo-se que o adquirente
/produtor /transmitente é uma sociedade comercial, a situação patrimonial, nesse momento, é:
- capital 51
3 190 3190C
- caixa 11 3190
3190D Admitindo-se as aquisições em simultâneo, no período considerado:
- compra de factores 31 1000
1000D
- FN-IVA 243 190
190D
- Pagamento de compras e IVA 11 1190
2000D Admitindo-se as vendas em simultâneo e a aquisição do trabalho também no período considerado) e no seu termo:
- Vendas (a 120 dias) 71 3000
3000C
- EN- IVA liquidado 243
570 380C
- Clientes 21 3570
3570D
- Trabalho adquirido 642
2000 2000C
- Pagamento de salários 11
2000 0000
- Pagamento de salários 642 2000 Em termos de Balanço:
- Capital 51
3190C
- Devedores 21 3570
3570D
- FN 243
380 380C
No termo desse primeiro mês de actividade, a situação da sociedade, em termos de balanço, é equilibrada. No entanto, deve à FN 380, e já lhe pagou 190, e por isso tem um crédito de 570. Mas vejamos agora o que vai suceder, p. ex., em 6 meses, ficando-nos apenas pela relação de IVA, na conta 243, que tem como sujeito de imputação a FN:
Quantia F.N.
Débito Crédito Saldo/D/C Data/Recebi. Data/Exig. compras 190 Janeiro vendas 570 380C 570/31.5.03
380/20.3.03
compras 190 Fevereiro
vendas 570 760C 570/30.6.03
380/20.4.03
compras 190 Março vendas 570 1340C 570/31.7.03
380/20.5.03
compras 190 Abril vendas 570 1720C 570/31.8.03
380/20.6.03
compras 190 Maio vendas 570 2100C 570/30.9.03
380/20.7.03
compras 190 Junho vendas 570 2480C 570/31.10.03
380/20.8.03
Como vimos, do exemplo dado, só em 31.5.03, a sociedade recebe o primeiro preço da sua produção (que inclui o IVA): Nessa altura, a sociedade, apesar de ter desembolsado IVA no valor de (5 x 190)
950, deve IVA no valor de 1 900 (5 x 570 - 950), mas ainda só recebeu 570. E assim continuaria, se a sua actividade não tivesse lucros nem prejuízos, infinitamente, sem poder pagar pontualmente, e a ser assim uma
‘criminosa-abusadora’, acusada de receber o que não... recebeu, mas que até pode pagar quando receber, que receberá.
136. Mas o que acima se ilustra permite-nos variáveis sem conta, em que todas levam ao mesmo resultado.
137. A primeira verificação é a detectada, no artigo em que se fez a demonstração do modo como o POC qualifica estas operações, a qual nos mostra que a exigibilidade do saldo credor da FN, em regra, forma-se antes do devedor. ter recebido essas quantias do seu cliente, quando as suas vendas são feitas a crédito.
138. Por isso, incriminar a conduta da falta de cumprimento pontual, ou mesmo de incumprimento, como não entrega do recebido, é uma intolerável logomaquia, porque a actividade legisferante não pode considerar o impossível para o punir com prisão.
139. Por outro lado, a leitura dos textos das contas 11 e 12 mostra-nos que o liquidatário do IVA, quando recebe essas quantias, em dinheiro ou outros títulos, recebe-as como coisa sua e não como coisa alheia.
140.
É o que a lei diz!
141. E o modo como ela estrutura essas relações revela que assim terá de ser, porque o liquidatário, no termo de cada período de apuramento do saldo da conta corrente de IVA, tanto pode ser devedor como credor, em relação à FN.
142. A ilustração feita permite-nos ainda averiguar outras situações. com que algumas teses peregrinas pretendem demonstrar o impossível e até contraditório, mormente quando as empresas devedores de IVA têm créditos de cobrança duvidosa, nos quais se incluem todos ou parte dos montantes de IVA, por cujo incumprimento a FN denuncia os devedores directos e não os devedores originários.
143. Com essa tese, pretende-se demonstrar que o devedor directo deve, pelo menos, ser incriminado pelos valores que recebeu e não pagou.
144. Essa tese não procede face aos três grandes momentos da actividade jurídico-cognitiva - seja esta judicativa ou qualificadora -, ou seja, aos seus momentos científico, técnico e filosófico (a desconsideração de um qualquer destes momentos, é um crasso erro metodológico).
145. Na verdade, e como vimos. a relação de IVA tem como objecto imediato o poder de exigir e o dever de prestar; como objecto mediato, tem coisa fungível (quantias pecuniárias).
146. Mas como a relação está preordenada em estrutura de conta corrente, o titular do poder de exigir transforma o seu crédito em artigo de deve, e o titular do dever de prestar transforma-o em artigo de ‘há-de-haver’ (no futuro!).
147. Isto tem consequências que são fáceis de ver pelo prisma científico (que nos orienta na análise), técnico (que nos mostra as categorias operatórias) e filosófico (os valores que atropela).
148. Nomeadamente, vemos que as quantias recebidas pelo devedor directo até podem ser inferiores às que pagou, enquanto devedor a outros devedores directos, quando faz aquisições, àquelas que recebeu, e vemos (aqui, talvez melhor , não vemos) que, dada a fungibilidade, é impossível detectar o que foi recebido e não pago
(abstraindo-se aqui o facto de o recebimento ser feito em nome próprio).
149. Mas há ainda outro aspecto a considerar quando o devedor directo tem quantias de IVA a receber que tanto podem ser uma parte do que deve, como pode ser igual ou até superior .
150. No caso dele não receber o que lhe devem, pode deduzir esses montantes ao que deve ao Estado...
151.
... mas só depois da sua comprovação por via judicial.
152. Que pode levar anos e anos, como muitas vezes leva.
153. Ou seja, o direito à dedução do seu crédito ao que deve, que pode ser de ordem a provar-se que não deve nada, ou não deve tudo, só se torna eficaz depois de provado em instância executiva ou falencial, instaurada contra o seu devedor, que deste não recebeu quantias de IVA.
154. O que pode levar a esta macabra, e não meramente teórica, situação, de a prova de que não deve vir depois de ser acusado, condenado e preso!
***
155. O sistema legal que constitui as pessoas jurídicas, que liquidam IRS ou contribuições à SS, de outros devedores originários ou de IVA devido por adquirentes de bens e serviços, em devedores directos. em caso de incumprimento dessas dívidas ( a par... ou antes?), prevê um regime coercivo civil-patrimonial, ou seja, sujeitas à execução do seu património (art°. 103°. da LGT e todo o Título IV do CPPT).
156. Esse sistema civil-patrimonial prevê ainda um esquema de garantias de outras pessoas jurídicas, quando o devedor directo é uma pessoa colectiva, no caso de devedor directo (pessoa colectiva) não dispor de bens suficientes para pagar essas dívidas.
157. Essas garantias estão legalmente constituídas, entre outros, pelos administradores da pessoa colectiva devedora.
158. A esse fenómeno jurídico, a lei chama responsabilidade tributário subsidiária.
159. Essa responsabilidade tributária está regulada no disposto nos artºs. 23°. e
24°. da LGT.
160. Entre os demais pressupostos da constituição da responsabilidade dos administradores da pessoa colectiva, cujo património é insuficiente para pagar as dívidas da espécie, situa-se a cuida dolosa ou negligente do seu administrador pela insuficiência do património do devedor directo para satisfazer os créditos tributários.
161. Por essa razão. essa responsabilidade subsidiária tem natureza extracontratual, aquiliana ou delitual. não sendo, por isso, responsabilidade contratual nem objectiva.
162. A responsabilidade subsidiária não se constitui pois pela mera verificação de insuficiência do património do devedor directo, pessoa colectiva, ou seja, para que o administrador se constitua na responsabilidade subsidiária daquelas dívidas é necessário que se verifique
- o facto ilícito,
- o dano,
- o nexo de causalidade,
- a culpa (do administrador).
163. Para que o administrador da pessoa colectiva se constitua devedor subsidiário, a Administração Tributária terá de fazer prova dos elementos constitutivos do seu direito contra o devedor directo, bem como dos elementos por que se constitui e efectiva o seu direito contra o administrador daquele devedor, ou seja, do que vem disposto nos referidos art°s. 23°. e 24°. da LGT, no procedimento pertinente
(a reversão tributária).
164. As referidas normas mostram-nos que o procedimento tributário de reversão fiscal contra o administrador, tendente à verificação da existência ou inexistência dos pressupostos da sua constituição como responsável subsidiário são: a) A existência da instauração da execução tributária contra o devedor directo; b) Comprovação, nessa execução, da insuficiência do património do devedor directo para satisfazer o crédito tributário reclamado naquela execução.
165. Verificados estes pressupostos, o processo de reversão, que é incidente daquela execução, tem como elementos: a) Um despacho inicial, dado pela Autoridade Fiscal. que descreva a verificação dos pressupostos da reversão, os elementos fundantes da constituição do administrador em devedor subsidiário, que são os factos que integram o facto ilícito, o dano, o nexo de causalidade e a culpa do administrador. bem como a intenção de reversão da dívida contra o administrador; b) A notificação do administrador para este exercer, no prazo legal, a sua defesa e oferecer prova de que ou não se verificam os pressupostos da abertura do procedimento ou não existem os factos constitutivos da sua responsabilidade; c) No termo do prazo da oposição do administrador, e caso este ofereça meios de prova, deve proceder-se à produção da prova, o mesmo devendo ocorrer mesmo que ele não conteste ou conteste e não ofereça prova, porque, nestas matérias, não há condenações de preceito. d) Concluída esta fase, a Autoridade Tributária profere despacho de reversão da dívida contra o devedor subsidiário, caso logre fazer prova dos factos constitutivos dos elementos da reversão, ou de arquivamento do procedimento.
166. No caso da Autoridade Tributária proferir despacho de reversão. o administrador tem o direito de recorrer desse despacho para os Tribunais Tributários (art°.
191°. d) da LGT), nos termos previstos no CPPT.
167. Revertida a dívida contra o administrador, a Autoridade Tributária deve citá-lo para a reversão. tendo o administrador: a) O direito de, também aí, mesmo que tenha exercido o seu direito de defesa no procedimento de reversão, e sem sucesso, de se opor à execução, nos termos da lei; b) Pagar a dívida sem pagamento de juros de mora e custas (art°. 23°.5 da LCT, podendo fazê-lo com reserva do direito de oposição à execução;
c) Exercer o direito à excussão prévia do património do devedor directo, quando se verifiquem os pressupostos do n°, 3 do ref. Artº. 23°. da LGT.
168. No caso dos autos, os Reqtes. nem sequer foram sujeitos do procedimento de reversão fiscal.
169. Por isso não são responsáveis subsidiários pelo pagamento da suposta dívida de que o Estado se arroga.
170. Mas mesmo que tivessem sido constituídos, reversoriamente, devedores daquela quantia, como a dívida é meramente obrigacional-patrimonial, de natureza pecuniária, a responsabilidade deles é meramente patrimonial e não penal. b) O regime do paradigma ou sistema penal
171. No início da década de 90, o legislador entendeu que devia sancionar penalmente algumas formas de infracção verificadas no âmbito das relações tributárias, tendo criado. a partir de alguns paradigmas do direito penal comum os tipos de crime denominados ‘fraude fiscal’, ‘abuso de confiança fiscal’ e ‘frustração de créditos fiscais’, regime esse que ao longo dos tempos foi sofrendo as conhecidas alterações.
172. A história desta penalização demonstra que não havia nem há qualquer necessidade de criar tais ‘crias’, porque os tipos comuns existentes eram suficientes para sancionar penalmente o que merecia tal sanção, como era o caso, p. ex., da burla, da falsificação de documentos, do abuso de confiança, da frustração de créditos. etc..
173. Aquilo que, em princípio, parecia ser para agravar, depois de muita luta forense, jurisprudencial e doutrinária, descambou em boa sorte de alguma ‘fruta grande e gorda’ e azar do pé descalço, eleito em ‘abusador’ e ‘defraudador’.
174. O ‘decoro’ do resultado, não é nada ‘decoroso’.
175. Assente a poeira, a par de alguma ‘defraudação’, ostenta-se o ABUSO DE CONFIANÇA na sua ‘magnificência’, ou pesca do peixe-míudo.
176. Mas o facto é o facto.
177. Aquele que atrás se retractou pelos seus paradigmas jurídicos, pelos seus significantes linguísticos...
178.
...mas, sobretudo, pela sua preordenação jurídica impositiva (alínea anterior deste capítulo).
179. Essa preordenação (de quem pode!) entretece-se em puras relações jurídicas pecuniárias (de débito/crédito), ou seja. o seu conteúdo (objecto imediato) consubstancia-se em puros poderes de exigir uma pecúnia e em puros deveres de prestar tal pecúnia (objecto mediato), em que a pecúnia pertence ao devedor. ou seja, e por outras palavras, o desejo é uma abstracção do credor, o ‘quid’ que o satisfaz pertence ao devedor .
180. Apesar disso, qual pontífice de um novo deus, o legislador transubstanciou o desejo em ‘res’, o ‘quid’ do devedor em ‘res’ alheia, e os sacerdotes destes mistérios não hesitam em proclamar esta ‘Boa Nova’ do pão se fazer carne e do vinho ser sangue. De um novo ‘senhor’.
181. E assim O RJIFNA e o RGIT transformaram-se em bíblias; que não anunciam Boa mas Má Nova, que não iluminam os caminhos do Céu mas abrem o fogo do Inferno.
182. Essas ‘bíblias’- a primeira com menos e a segunda com muitas mais laudas - dizem muitas coisas, das quais muitas mais se poderiam dizer.
183. Mas basta falar aqui dos ‘salmos’ (hinos em que se enaltece ou agradece a Deus) da confiança abusada. Assim:
184. Os artigos 24.º e 27.º B do RJIFNA que, respectivamente, elencam os elementos constitutivos do crime de abuso fiscal ou de abuso em relação à Segurança Social, dizem que: a) ‘Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor de prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido’ (abstraímos aqui os detalhes dos nº s. 2 a 6 do art°. 24°. porque não põem em causa a tese que aqui se defende). b) ‘As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estas legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24°.’.
185. Nos art°s. 105°.1 e 107°.1 do RGIT, a lei veio alterar aqueles dois tipos, cujas redacções são as seguintes: a) ‘Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com penas de prisão até três anos ou multa até 360 dias’
(também abstraímos aqui os detalhes dos nos. 2 a 7 do art°. 105°., porque não põem em causa o que aqui se defende) [ ] b) [‘]As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nº s. 1 e 5 do artigo 105°.’.
186. O novo regime revela duas alterações em relação ao anterior, uma quanto aos elementos do tipo. outra quanto à sanção, em que: a) do tipo desapareceu a noção de apropriação da prestação tributária; b) a sanção tornou-se mais ‘suave’.
187. Esta alteração mais não fez que reconhecer uma impossibilidade material - a apropriação de uma prestação pecuniária do próprio -, que, apesar dessa manifesta impossibilidade, a jurisprudência, dos tribunais de instância ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Constitucional, considerou, durante muito tempo, como existente, falando de tradição da coisa, de depositário. inversão do título de posse, como se de uma ‘res’ se tratasse.
188. Apesar de ‘corrigida’ a lei, o fulcro da questão está nas palavras ‘quem não entregar prestação tributária deduzida ou recebida’, ou em palavras de idêntico sentido, quando se trata de dívidas à Segurança Social.
189. Ora, os fenómenos em causa mostram-nos que nas situações de IRS e de contribuições para a Segurança Social, o que está em causa é uma dívida adquirida e não paga, enquanto nas situações de IVA é um saldo devedor, em conta corrente, e não pago no seu vencimento, que está em causa.
190.
É isto que, irrefragavelmente, podemos pelo facto jurídico que a lei preordena, através das normas que predispõe.
191. Por isso, e a todas as luzes, não houve retenção do que é de outrem (IRS e SS), nem recebido o que é de outrem (como não é o caso do IVA. Porque o transmitente de bens ou serviços, quando o adquirente paga os montantes respeitantes a IVA, satisfaz um crédito do transmitente e não do Estado).
192. Nas situações de IRS e SS o devedor adquire uma dívida de outrem, nas de IVA o transmitente apenas recebe o que é seu.
193. Assim sendo, o regime penal em causa prevê sanções penais pelos não pagamento de uma prestação pecuniária, porque supõe um ABUSO DE CONFIANÇA.
194. O infractor - ou quem actua em seu nome - é punido por não pagar uma dívida.
195. Na senda da doutrina mais recente do TC, e terminada a peregrinação da tese da apropriação de uma ‘res’, os paladinos do impossível vêm dizer que a prisão pelo não pagamento de dívidas é possível quando:
- a dívida não é contratual mas legal;
- quando à impossibilidade de pagamento se junta algo mais;
- há apropriação da prestação de outrem.
196. Disto, e desde já. não se pode deixar de dizer que tudo o que toca no Estado, torna sempre as coisas mais complicadas, raiando a sacralização.
197. Demonstrar o erro, nem é tarefa difícil; difícil é o preconceito.
198. Apesar disso, e como a luta pelo Direito e pela Justiça, a luta pela Vida contra a Força, ainda estão na sua pré-história, não há lugar a desfalecimentos.
199. Por isso vamos a ela...
200. O incumprimento de uma dívida pecuniária, por impossibilidade de incumprimento, não pode ser sancionada com pena de prisão - diz a jurisprudência; mas, diz a mesma fonte, assim não deve ser quando a dívida é legal (como é o caso da espécie), mesmo que haja impossibilidade de cumprimento.
201. Pois bem; a dívida pecuniária, contraída pela via do contrato, é uma assumpção,
é um acto voluntário do assumptor; a dívida pecuniária, contraída por imposição da lei, não é um acto voluntário, é uma constrição.
202. A dívida contraída contratualmente é uma promessa de pagamento.
203. A dívida contraída por força da lei, por ser imposição, é uma violência. Ora:
204. O devedor que não paga por não ter com que pagar frustra a confiança do credor; todavia, a frustração não é sancionada penalmente porque não há vontade de não cumprir.
205. A dívida contraída legalmente, não altera estas coisas.
206. Por isso, a ameaça da prisão, por dívidas legais. que o devedor não pode cumprir, objectivamente é um estímulo à anomia moral (‘não tens, rouba, furta...’).
207. Eticamente é mais censurável o incumprimento da promessa de pagamento, do que o incumprimento, por impossibilidade, do que foi imposto.
208. Avança também a jurisprudência que o incumprimento de dívida pecuniária pode ser punido, quando ao incumprimento se junta algo mais.
209. Aceita-se, e dá-se uma ajuda ao discurso que não diz qual é o ‘algo mais’ (p. ex., o insolvente que não paga dívidas, o devedor de alimentos ao filho necessitado).
210. Todavia, os tipos que aqui exautoramos, não prevêem esse algo mais (que, nos exemplos dados, são a dissipação ou extravio doloso ou negligente, do património que responde pelas dívidas não pagas, com intenção e representação do prejuízo que assim causam ao credor).
211. Mas mesmo que prevessem esse algo mais, nas formas exemplificadas ou noutras, perverteria o sistema, deslocando para a ordem tributária o que é próprio da ordem patrimonial-falencial (voltaremos a este assunto).
212. Ora, o algo mais que não se lobriga, que supõe (porque mais que dito) a jurisprudência. não é algo que se vem juntar à impossibilidade de cumprimento, mas que só poderia ser algo que estivesse antes da impossibilidade.
213. O que só poderia ser a prévia dissipação ou extravio doloso ou negligente do património que garantia a satisfação do crédito do credor!
214. Mas isso tanto vale para a satisfação dos créditos constituídos pela via contratual (mas até mais para estes!) como pela via da imposição.
215.
(Ou será que o Estado vale mais que as pessoas? - Conhecemos o contra-argumento; mas não vale... Porque os fins do Estado são sempre os seus fins. Que o digam os
‘sem abrigo’.).
216. Diz, finalmente, a jurisprudência que, nos casos da espécie, há apropriação da prestação de outrem - que mais não pode ser que a prestação do devedor originário.
217. Já o dissemos, mais que uma vez (mas todas nunca são demais perante o erro feito verdade, insistentemente proclamado como coisa sublime) que a prestação do devedor originário é um dever de prestar quantia pecuniária.
218. Antes de nós, assim o esquematizou a lei, embora tenha mesclado os textos com palavras impróprias, como se estas servissem para afirmar uma coisa e o seu contrário.
219. Nesse dever de prestar, nas relações impropriamente chamadas de retenção, a lei extingue o dever do devedor originário, no momento em que ele se extingue, e transfere-o para o devedor directo, enquanto nas relações de IVA, no momento em que este crédito se constitui, constitui-o como crédito do devedor directo que, concomitantemente, se constitui devedor de igual quantia perante o Estado.
220. Foi assim que a lei estruturou essas relações jurídico-económicas, ou seja não as estruturou em relações reais (mas obrigacionais), em que o adquirente de trabalho doutrem ou locatário de bens doutrem, ou transmitente de bens ou serviços ficasse constituído, para além da função de liquidatário de impostos em:
- cobrador de impostos,
- consignatário de bens ou dinheiro do Estado, com a obrigação de, logo que recebidas aquelas quantias, as entregar ao dono.
221. Mas não é isso que acontece: o que acontece é que o liquidatário é que é o devedor, sendo impossível a apropriação do que é seu.
222. A afirmação do contrário, é uma brutal logomaquia.
223. Para a tese ter sustentação gnoseológica, a lei - a que lança os tributos e a que qualifica aos operações (POC) - teria que estar ordenada doutra forma, ou seja, teria que ser ordenada em forma de consignação imposta (cuja violação nunca seria abuso de confiança, mas, quando muito de violação da imposição de fidelidade).
224. Para funcionar, o liquidatário teria de possuir em caixa ou conta bancária pertencente ao consignador, de modo que, nas ditas retenções, o dinheiro consignado fosse colocado naquelas caixa ou conta, pelas quais também seria pago e recebido o IVA a pagar ou receber.
225.
(Porém, e, mormente, nas relações de IVA, o Estado só receberia saldos efectivos e não meramente contabilísticos, e não se financiaria à custa alheia).
226. A afirmação de que há apropriação da prestação de outrem é pois uma afirmação que viola o princípio da identidade, gnoseologicamente insustentável, porque não
é doutrem o que é do próprio.
227. Os factos que a lei prevê como integradores de um abuso de confiança são de impossível ocorrência, mais não configurando que uma forma mascarada de prisão por dívidas.
228. Abstraindo agora esses aspectos, a materialidade relevada toca ainda em outros domínios:
- o da insuficiência ou inexistência de património do devedor directo para pagar aquelas dívidas tributárias;
- o da imputação da factualidade.
229. Tudo isto justifica ponderação e apreciação jurídica.
230. A qual vai ser ensaiada a seguir.
231. O devedor directo ou não tem património, ou esse património é insuficiente para pagar a dívida tributária, pois, se for suficiente, a Administração Tributária nem precisa de o denunciar criminalmente: executa esse património, recebe o capital, juros a 12% ao ano e lautas custas do processo.
232.
0 incumprimento é um excelente negócio tributário, se o devedor não for insolvente.
233. Isto mostra-nos que os casos vão ao tribunal penal quando o devedor está insolvente.
234. E se o devedor está insolvente, então a sua situação passa a ser regulada por outros institutos, um civil e outro penal, cuja raiz é a sua situação falencial.
235. A falência do devedor pode ser requerida pelo próprio, por um qualquer credor ou pelo Ministério Público em representação dos interesses do Estado.
236. Caso a falência seja requerida e declarada (e outra coisa não pode ser porque o devedor não tem património para pagar as dívidas fiscais), uma de duas:
- a falência ou é casual,
- ou é culposa.
237. Esta constatação vai-nos mostrar, para além das já vistas, outras perversões do sistema. Assim:
238. No caso de se provar que a insolvência ou falência foi casual, o falido será absolvido (e até pode não ser acusado nem pronunciado), porque não teve culpa na falta ou insuficiência do património para pagar as suas dívidas, inclusive as fiscais, mas é condenado por não ter pago as dívidas fiscais.
239. Mas se for condenado pela falência ter sido julgada culposa, não só é julgado pelas razões falenciais, como é julgado e condenado por razões fiscais, em processos relativos aos mesmos factos, em que até nem é considerado o concurso de infracções (real ou aparente, pouco importa).
240. Ou seja, o devedor é:
- julgado duas vezes!
- condenado (pode ser) duas vezes!
241. Pelos mesmos factos!
242. Mas se isto é assim no domínio dos factos, passemos agora a ver o que se passa nos domínios da referida imputação.
243. O devedor directo dos factos da espécie pode ser uma pessoa humana como uma pessoa colectiva.
244. Cada vez mais, os devedores directos são pessoas colectivas, que agem, por serem meros centros de imputação de relações jurídicas, através de pessoas humanas, que são os seus administradores (do património em que se consubstanciam).
245.
É por isso que a lei imputa directamente a prática dos factos à pessoa colectiva e aos que agem em nome dela.
246. A pena de prisão, pela natureza das coisas, só pode ser aplicada aos devedores directos que são pessoas humanas e aos representantes das pessoas colectivas.
247. Ao tratarmos do regime civil, na alínea precedente, tivemos oportunidade de demonstrar que o representante da pessoa colectiva, normalmente o seu administrador, só responde pelas dívidas daquela quando, no procedimento de reversão fiscal. se prove que teve culpa pela insuficiência ou inexistência do património do devedor directo para satisfazer os créditos do credor tributário e assim tenha sido constituído devedor subsidiário.
248. E aí ainda pudemos ver que, enquanto não for constituído devedor subsidiário:
- não responde pelas dívidas tributárias da pessoa colectiva;
- não pode por elas ser executado
249. Mas, aí há mais, e muito mais, nomeadamente que, mesmo constituído devedor subsidiário, tem o direito, dentro do prazo para se opor à execução contra ele revertida:
- pagar a dívida,
- sem juros,
- sem custas do processo.
250. Apesar disso - ou seja, sem ser responsável, pelo pagamento -, pelo sistema penal, não só está sujeito
- a pena de prisão,
- a pagar o que não deve,
- a pagar os juros do que não deve,
- às custas do processo.
251. E mais: mesmo que tenha sido constituído responsável, e desde que esteja na fase da oposição à execução:
- num processo não paga juros nem custas (no tributário),
- no penal paga juros e custas.
252. E ainda: se tiver sido constituído responsável, e tiver pago na fase da oposição
à execução, com o benefício do não pagamento de juros e custas, no processo penal será condenado:
- a pagamento de juros,
- ao pagamento de custas,
- a uma sanção penal.
253. E como se tudo isto fosse pouco, pode ser condenado a pagar, no processo penal, e vir depois a reversão e ser novamente condenado a pagar!
254. Se há subsistemas (ditos) jurídicos em Portugal, que façam da lógica o absurdo, do equilíbrio o seu contrário, e que assim violem os princípios da razão suficiente, bem como os princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade e da interpretação das leis conforme a Constituição este subsistema dificilmente será sobrepojado.
255. Por isso não admira que, na jurisprudência, se cruzem interpretações que vão da suposição de uma relação patrimonial-dominial ou real, que é meramente patrimonial-obrigacional, com os seus corolários de posse, tradição de coisa e inversão de título de posse, supondo consensos de confiança em vez de imposição, até à ‘tábua de salvação’ da dívida não contratual e legal, com apropriação do que diz ser doutrem mas é do próprio.
256.
0 resultado é confrangedor: quer do ponto de vista lógico, axiológico e até estético.
*** V As contradições lógicas e éticas do sistema
257. A análise científica permite-nos, pela observação e comparação (pois estamos no domínio da realidade social), observar o objecto sobre o qual vai actuar o sistema ou instituto jurídico que se cria, e que assim também é objecto de observação. Estas duas realidades, que se oferecem em forma de sistema, têm a sua estrutura e função, que, cognitivamente, se apreendem por categorias elaboradas pela consciência racional. A realidade social estrutura-se pela interacção dos seus elementos constituintes, e a sua transformação é conduzida em função da força ou energia dos seus componentes. 0 sistema jurídico é um elemento que se introduz num dado sistema social, cuja função é introduzir alterações funcionais neste sistema social, para que os seus ‘produtos’ ou
‘resultados’ sejam diferentes daqueles para que propende o ‘natural’ funcionamento do sistema social em análise. Por isso, um sistema jurídico é sempre uma intencionalidade - um resultado ou objectivo que se pretende alcançar
- e uma estratégia - uma predisposição de meios, tecnicamente ordenados, para alcançar aqueles fins. E foi isso que percebemos na análise precedente.
258. Essa análise, contudo, revela-nos (e isso nos revelou) a instrumentalidade utilizada pelo sistema jurídico, e as finalidades que ele persegue, mas não nos dá o ‘quale’ nem o sentido da juridicidade, ou seja, não nos diz o que é o Direito, pois não nos leva ao seu âmago. A racionalidade científica, é cognitivamente neutral, é verificativa, mas não nos diz o que é o Direito, quando muito diz-nos que ele é uma ‘intentio’, que estrategicamente quer concretizar essa intenção, mas não nos dá o valor da intenção concretizada.
259. A JURIDICIDADE cobra o seu ser pela consagração do princípio de DIREITO e pelo princípio de JUSTIÇA (veremos isso, melhor, a seguir).
260. Metodologicamente, a compreensão da juridicidade não recusa a análise científica e técnica, pois mostra-nos a estratégia e a intenção que o sistema, por que se estrutura, implementa, todavia, essa forma de compreensão não nos dá o critério de validade, dá-nos apenas os critérios de aferição da eficácia, salvo se a validade for uma validade meramente utilitarista, que sempre cederá aos objectivos do mais forte
261. O Direito e a Justiça não recusam o acolhimento dos valores de utilidade; mas sob pena de cedência à devorosidade social, neles não se situam os critérios primeiro e último do seu carácter, mas sim os critérios éticos. Por isso, o Direito é um universo de valores de utilidade e de estética, mas em que todos estes se subordinam aos valores éticos. Também por isso, sendo o Direito uma intenção constituenda, mas que, por se constituir assim, quando se oferece em sistema e quando se realiza no acto ‘constituens’, mormente nesta última fase, para concretizar a sua ‘intentio’, terá de abrir-se ao conhecimento filosófico, que não é apenas um conhecimento racional, mas uma emocional e aberta vivência axiológica.
262. Por isso, e já neste momento, pode dizer-se, sem qualquer rebuço, e até sem apelo ao saber filosófico, que o sistema em apreço, nas suas vertentes civil-patrimonial e penal, mesmo dos pontos de vista técnico e científico, é um clamoroso acervo de violações ao princípio da identidade e ao princípio da não contradição.
263. Como este sistema é assim, o modo como está estruturado revela que mais não é que uma estratégia maquiavélica, que a análise técnico-científica, na sua frieza, desnuda de forma incontornável, em que se torna difícil de perceber, e por isso desculpar, como tantos (quase todos), que prometeram fidelidade ao Direito e à Justiça, como nos tempos de Galileu, continuem a dizer que o Sol gira à volta da Terra, e assim parece que não querem ver o evidente.
264. Filosoficamente, a seguir, melhor veremos como este sistema é um atentado à EMINENTE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, em que o mais grave até não é consagrar-se e aplicar-se a prisão pelas dívidas que o devedor está impossibilitado de pagar; o mais grave é fingir-se que, para além dessa impossibilidade, e a essa impossibilidade se junta algo mais (que não sabem dizer o que é!).
265. Por isso têm razão os que pensam e dizem que se, para ALÉM deste desavergonhado mundo, nada mais há que, pelo menos, mostre o erro aos teimosos, esta vida é uma fraude.
266. No capítulo imediatamente anterior, vimos como a lei regulou juridicamente uma dada realidade da vida social. A mesma realidade, é pois regulada por dois sistemas jurídicos opostos, contraditórios entre si.
267.
0 Direito é, por definição, noção de recto, justo, ordem, cosmos; recusa por isso as noções de torto, arbítrio, desordem, caos. 0 direito é identidade; recusa a contradição.
268. A noção de Direito revela que ele não é para si, e tem um modo-de-ser; por isso postula um fundamento e uma ‘intentio’
269.
0 fundamento só pode ser um ente que o assuma e adopte a sua ‘intentio’.
270. A evidência mostra-nos que só o Homem pode assumir o Direito.
271. Por isso o Homem é o fundamento do Direito.
272. E assim o Direito só é direito quando serve a realização do Homem.
273. Pelo que, e por esta perspectiva, o direito é um princípio estratégico.
274. O Homem não é, como a evidência também mostra, um ser isolado; é e realiza-se em comunhão, em com-vida, entre-si e com-o-meio.
275. A estratégia do Direito é pois o serviço da VIDA, cuja dinâmica se processa entre pólos desagregantes.
276. O Direito é pois princípio de estabilização, de harmonização, de equilíbrio, nisto residindo a sua materialidade, enquanto princípio.
277. O desvio aos paradigmas enformadores, a subversão dos significantes linguísticos e, sobretudo, a clamorosa contradição de regimes jurídicos, geradores de perversões normativas, com graves repercussões para a liberdade das pessoas, para além da sua insustentabilidade epistemológica, noeticamente evidenciada, atinge o cerne ou as traves-mestras do próprio sistema, enquanto sistema, nomeadamente, os seus princípios da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade dos meios, e da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, mas fere de morte, sobretudo, o próprio Princípio de Direito (no seu fundamento - o Homem -, na sua intenção - a Justiça).
278. O sistema penal instituído é pois uma estratégia ínvia do poder político, que não respeita o fundamento e a intenção do Direito.
279. Com essa estratégia o legislador, através do medo, induz e estimula o responsável a tudo fazer, mesmo que ilícito, para obter meios financeiros, quando os não tem, para pagar dívidas tributárias, mesmo quando por elas ainda não é - e até pode não ser - responsável.
280. Essa lei não é lei em sentido jurídico, porque oblitera os princípios por que se estrutura uma ordem que se reclama do jurídico, mormente os que ora se invocam, e até viola aqueles em que se louva.
281. Este corpo de regras, pelas aporias que manifesta - e de que até parece alimentar-se -, vai ao ponto de não só subverter os princípios da razão suficiente, formando assim um atoleiro que só a paciente investigação analítica permite desnudar, como um dos princípios em que parece querer fundar-se - o da
ética da responsabilidade -, formando, sem a coragem de o confessar, um princípio que é o seu contrário - o princípio pragmático-utilitário, feito de oportunidade e conveniência.
282. Por isso não é propriamente uma lei jurídica; é sim um corpo de regras de coerção económico-política, que a coberto e a ajuda de um pensamento acrítico e que perdeu o sentido das exigências éticas, afana-se na procura de uma validade jurídica, que o princípio de direito, no seu fundamento e intenção, lhe recusa.
283. Tudo isto se patenteia perante os princípios sistémico-formais, de modo mais brutal, face aos princípios materiais a que o sistema deve obediência. Assim:
284. Esta lei viola o princípio da unidade do sistema jurídico, porque a sua incoerência contradiz as ideias de estabilidade, continuidade e equilíbrio dinâmico, manifestando incontornáveis oposições, ou seja, o axiológico versus teleológico-funcional, validade versus finalidade, fundamento versus finalidade, fundamento versus efeito, prático-normativo versus pragmático-utilitarista (C. Neves, Digesta, p. 117 , 119, 167 e 135).
285. Viola também o princípio da proporcionalidade, porque a desmedida ou transmutação do obrigacional em real, ‘inter alia’, demonstra os exageros da intenção do legislador.
286. Viola ainda o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, a vários títulos, nomeadamente as normas que acolhem os princípios de direito (que não admite golpes lógicos), da justiça (que supõe a verdade), e da dignidade da pessoa humana (que é o sujeito e não objecto do direito), que assim cedem perante os interesses economicistas do Estado. VI O (falso) fundamento do sistema
287. Esta lei, como já se pronunciou, corre atrás dum fundamento, para sancionar penalmente as condutas da espécie.
288. E o fundamento que, pomposamente, esgrime são os fins do Estado-de-direito social, a justiça social...
289. E como não há ‘humanista’, ‘socialista’, ‘nacionalista’, ‘direitista’ ou
‘esquerdista’ (e todos os ‘istas’ que se prezem), que não seja ‘estatista’, todos acreditam que a espórtula imposta é a salvação dos pobres e oprimidos (por isso, os excluídos, os sem abrigo, os desempregados, só não estão salvos porque não querem, porque rejeitam o maná que o Estado ‘social’ recolhe, copiosa e quotidianamente).
290. Por isso o puré está ‘au point’.
291. Os próceres do cujo - e não nos confundam como defensores do Estado liberal, porque de estados estamos falados - atribuem-lhe as virtudes de promotor da justiça social, dos direitos fundamentais da pessoa humana - como se estes não tivessem sido proclamados como reacção à violência dos estados -, em suma como o grande - único - ente capaz de assegurar o exercício da liberdade plena e da efectiva e não formal igualdade entre os homens.
292. A força deste verbo é de tal ordem, que mesmo os espíritos mais brilhantes já não concebem a vida fora dessa máquina, e que ela é a causa das profundas desigualdades humanas e dos atentados à liberdade.
293.
(Procurámos demonstrar tudo isso em ‘O Abuso de Confiança Fiscal - Ou a razão de Estado contra a razão da verdade?, maxime no seu cap. I, e nos breves ensaios anexos, Da Modernidade à Posmodernidade e o Instrumento do Monstro.).
294. Uns conscientemente, outros porque não reparam ou não se informam, não consideram que a sedentarização do homem não implicou o estabelecimento de relações de domínio/servidão, de que ainda se encontram laivos, e que aquelas relações foram provocadas por hordas selvagens que, ‘primitivamente’, assolaram e submeteram as comunidades pacíficas, que assim dominaram, e passaram a tributar. E as coisas nunca mais mudaram. Apenas se hipertrofiaram.
295. Entre muitas mais coisas, o estudo da génese do estado mostra-nos que ele sempre foi uma estrutura de poder para que as minorias vivessem à custa das maiorias, que a satisfação do desiderato sempre se fez pela via do tributo, e que o instrumento de obter essa satisfação foi o do uso exclusivo da força.
296. Os idealistas do Estado-de-direito social acreditam, contudo, que este Estado se transmutou. Equívoco total.
297. Os Estados actuais apenas estão a dar razão a Marx e Lenine. Como se sabe, cerca de 300 multinacionais dominam os meios de produção. Em cada país, mesmo nos que não ‘produzem’ as ‘multi’, apesar de a elas submetidos, mimeticamente opera-se do mesmo modo. Em Portugal são cerca de 30 arremedos daquelas, mas suficientes para pôr o povo em estado de servidão, e trazer o Estado pela arreata.
298.
É o Estado dominado pelo SUPERCAPITAL.
299. Cá em baixo estiola a população. Em que o universo das micro, pequenas e médias empresas está tecnicamente falido, e essas empresas não têm meios para investirem na sua modernização.
300. Por seu lado, a população está endividada até à medula.
301. O Estado arrecada cerca de metade do produto nacional, em impostos e contribuições que o povo paga.
302. O Estado ‘premeia’ o SUPERCAPITAL com isenções e benefícios fiscais e tantos
“fundos” perdidos. Estes pagos com impostos do Povo.
303. Seria suposto, face a tal espórtula tributária, que o Estado assegurasse metade do investimento nacional e assegurasse a satisfação de metade das necessidades do povo.
304. Aqui e agora, valerá a pena demonstrar algo mais sobre a acção deste Estado?
305. Pensamos que não. Dizendo apenas que a sua acção social se confina ao estritamente necessário à evitação da revolta.
306. Para que o CAPITALISMO MONOPOLISTA DE ESTADO, que instituiu e garante, não seja submerso na onda revolucionária.
307. O Estado não é social nem de direito. Nenhum estado, por definição, o é. A social idade e a sociabilidade não se fazem sob o império da força, ao contrário do que pensavam, p. ex., os também contraditórios entre si, Hegel e Marx e Lenine. O Estado, como monopólio do uso da força, também não pode ser centro de formação do direito. O direito é justa razão; o poder ou força é brutalidade, é violência.
308.
É evidente que o Estado não se confessa assim. É normal e natural.
309. A serpente também encanta! Para que a presa lhe ‘cante’ no papo.
310. Por isso, acreditar no maná que o Estado oferece é o mesmo que acreditar no valor do veneno que o presente contém.
311. O discurso falacioso do Estado tem dois tons, no tempo que passa:
- a promessa da justiça social;
- a colecta de impostos.
312. A dramática situação sócio-económica do povo foi causada por este Estado devorador, prenhe de pessoal e ‘afilhados’, protector do SUPERCAPITAL.
313. E o povo não tem mais para dar. Mas ele quer mais.
314. Como é um Estado com muitas tribos à sua volta, que se degladiam para aí assentar o seu pessoal, (pois quanto à finalidade última que é o serviço ao SUPERCAPITAL, as divergências são poucas), e precisa de mais e mais, carrega no povo. Com impostos. O poder de compra caiu, o povo não consome. As empresas que, desde há muitos anos, submergiam à voragem do SUPERCAPITAL – que domina a finança e todos os sectores estratégicos, desde a montante e a jusante -, entraram no ponto da ruptura.
315. Como qualquer ser vivo - e porque aí está a vida de pessoas, desde os seus donos aos assalariados -, procuram resistir.
316. A resistência da empresa passa, necessariamente, pela solvência dos créditos dos fornecedores e trabalhadores.
317. Por isso, os impostos e contribuições ficam a aguardar melhores dias.
318. Que não chegam.
319. Dir-se-á que essa não é - e não é! - a solução.
320. Mas isto é fácil de dizer a quem tem o ‘fim-de-mês’ e a reforma assegurada.
321. E só tem isso seguro os que o recebem do Orçamento Geral do Estado.
322. Quem luta pela sobrevivência, dia a dia, de noite e de dia, minuto a minuto, sabe lá qual é a solução!
323. O causador do Estado da Nação é o Estado e os ‘Senhores’ que serve - o SUPERCAPITAL.
324. Situação que é orientada, executada e dirimida por leis, a que chamam direito.
325. Contra isto ainda pode vir o argumento da democracia. Como se isto fosse governo do povo, pelo povo e para o povo.
326. Para se perceber que o povo nada tem a ver com isto nem força para isto alterar, não é preciso ser especialista da teoria dos sistemas.
327. E se dúvidas houver, faça-se um referendo a perguntar às pessoas se estão:
- satisfeitas com a situação;
- e sentem ter força para a alterar .
328. A resposta mostraria o sentimento de impotência.
329.
É manifesto que o fundamento invocado, contendo, enquanto ideia, densidade axiológica, não é um fundamento sufragável. Por duas ordens de razão.
330. A primeira razão é da verificação de que uma boa ideia não é garantia de concretização prática. E como é uma ideia que não se pratica, não passa de falácia e propaganda ideológica.
331. A segunda e mais forte razão é a de que uma ideia, em regra, não se fundamenta em si própria (cf., cap. I destas alegações). Carece de um princípio superior.
332. Por isso a ideia do Estado-de-direito social, acima de tudo, tem que se fundar no próprio direito, em que este nem em si também se funda.
333. Ora, o fundamento do direito outro não é que a pessoa humana e a sua eminente dignidade.
334. A pessoa humana expressa-se na liberdade, que não é uma esfera de poderes com seus limites (responsabilidade), mas centro de irradiação de valências axiológicas positivas, que cobram essa qualidade no reconhecimento da liberdade do OUTRO, sem o qual não COM-VIVE. Por isso a PESSOA só cobra existência e realização em COMUNHÃO com o OUTRO.
335. Fora deste contexto, a pessoa é um mero indivíduo, um acidente ontológico, esmagável a qualquer momento por uma qualquer circunstância: não é o ‘quod est’
é o ‘accidens’ (o contrário de substância, não essencial).
336. Ao DIREITO compete, nesta fase histórica, estabelecer a comunhão, e as substâncias de que se faz.
337. O Direito, porém, tem sido subvertido pelos seus cultores, que assim o transformaram, com o seu culto (culto e ciência servil), em função político-económica, e não dimensão da vida comunitária ao serviço da pessoa.
338. As normas que aqui exautoramos, em que o tipo legal de ‘crime’ em espécie foi tipificado, são elemento táctico de uma diabólica estratégia estadual ao serviço de uma finalidade económica, alheia aos interesses do POVO, mas de interesse para outros sujeitos, à frente dos quais os titulares do SUPERCAPITAL, e, depois, da sobrevivência da máquina estadual, feita de meios físicos e humanos.
339. A sua criação obedeceu a um crasso pragmático-utilitarismo.
340. Durante muito tempo deu jeito ao Estado fechar os olhos ao incumprimento de impostos. Foi na fase da recomposição dos Grandes Grupos Económicos, e quando o desemprego grassava.
341. Depois as necessidades financeiras do Estado, mormente depois das
‘desnacionalizações’ ao desbarato, inculcaram não só o aumento dos impostos como a cobrança de outros vencidos.
342. A isso acresceu a entrada na CEE e a pressão da concorrência estrangeira, que demonstraram a fragilidades das empresas portuguesas.
343. Finalmente foi a incapacidade da máquina estatal, incapaz porque incompetente, para pressionar e exigir o pagamento pontual dos tributos, a par do pressentimento de que essa pontual exigência levasse ao desemprego generalizado.
344. Mas como o Estado está primeiro, momento houve em que ele deixou de poder facilitar.
345. Entretanto chegou também o momento de perceber que os devedores não tinham meios para pagar, e que a máquina não tinha capacidade de resposta.
346. A solução foi fácil.
347. Penalizou esses comportamentos para que as pessoas, para evitar a prisão, tudo fizessem para pagar, mesmo que isso implicasse o não pagamento a fornecedores, e abrissem mão de tudo o que precisam para viver.
348. Foi este o caldo cultural que gerou o crime de abuso de confiança fiscal e em relação à Segurança Social, em que o Estado.
1°.) Submete as pessoas a trabalhar para si, a título gratuito, e sob a ameaça da prisão;
2°.) A ficcionar uma relação de confiança que nunca foi livremente assumida;
3°.) A ficcionar a existência de relações reais quando elas são efectivamente obrigacionais, para consagrar a prisão por dívidas.
349. Ao agir, assim, legislativamente, a lei viola o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da unidade da ordem jurídica e o princípio constitucional da proporcionalidade, através da criação do disposto nos art°s. 24°. e 27°. B do RJIFNA e 105°. e 107°. do RGIT, violando ainda, especificamente, as normas constitucionais e outros diplomas referidos adiante.
350. Por isso o fundamento invocado, pelo desvirtuamento que introduz, renega o fundamento do Direito - que é o HOMEM - e a sua intenção - que é a Justiça. E contra isto, a vontade do legislador nada vale, para aqueles que têm a consciência do papel do jurista no nosso tempo, (vide C. Neves, Digesta, 1°., 9 segts., onde traz à colação Dominedó e Nietzche, em que aquele dizia que a
‘fractura entre o direito e o homem’ era (e é) a ‘heresia do século’, e este dizia que ‘o direito, o pensamento jurídico está por fundamentar, pois é utopicamente idealista na teoria e astutamente materialista na prática’. Por isso, o passa culpas para o poder político ou para o povo que vota, não desculpa, como desculpado não foi um tal (tragicamente) famoso Pôncio. VII As invalidade materiais do sistema
351. Os tipos legais de crime, previstos nos artigos 24°.1 e 27°. B do RJIFNA e
105°.1 e 2 e 107°.1 do RGIT, pressupõem a retenção ou recebimento de quantias da mão de outrem, cuja impossibilidade está demonstrada, mas, com esse falso pressuposto, consagram uma estratégia político-económica, que assim captura, em seu benefício, a coercibilidade jurídica-penal na cobrança de dívidas pecuniárias.
352. Por isso essas normas não comungam das ideias de Direito e Justiça, porque contrariam o princípio axiológico por que se formam.
353. Essas invalidades manifestam-se também ao nível constitucional, nomeadamente, os já invocados princípios da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade e da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, bem como as normas constitucionais e supra-ordinárias que a seguir se indicam.
354. Na verdade o sistema penal instituído para tutelar os interesses tributários do Estado, cuja acção precípua tem por finalidade a sua subsistência enquanto máquina de opressão ao serviço do poder económico monopolista, e contra os interesses do povo, submetido aos ditames do Estado e do poder económico que serve.
355. A justiça social que invoca e a solidariedade social que proclama, são feitas das sobras e na medida necessária para que os submetidos não se revoltem contra os opressores, que assim são económica e socialmente alienados.
356. Por isso, o sistema civil-patrimonial e o sistema penal de que aqui se tratam enfermam de vícios que importa eliminar porque contendem com os princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico, da proporcionalidade e da interpretação das leis conforme a Constituição, e com as normas constitucionais e supra-ordinárias que, adiante, se invocam, em que estas consagram os princípios de direito, o princípio de justiça, o princípio da eminente dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais da pessoa à liberdade, à escolha de trabalho remunerado, da não sujeição a trabalho imposto, o direito de ser sujeito e não objecto.
357. Assim sendo, as palavras das normas tributárias aludidas ao longo deste texto, mormente aquelas que impõem a liquidação de impostos a outros devedores de impostos e a contracção das dívidas destes, que significam deveres de reter e entregar, apropriação de prestações pecuniárias doutrem, confiança e abuso (de confiança), bem como os implícitos significados de tradição e inversão do título de posse e depositário, devem ser julgadas não escritas ou significantes impróprios de, e respectivamente, compensar (não reter), pagar (não entregar) contracção de dívida (não apropriação), expectativa (não confiança), incumprimento (não abuso).
358. E, assim, as pressupostas tradição e inversão do título de posse e constituição de depositário, perdem todo o sentido.
359. A da correcção daquelas normas resulta como satisfação dos princípios constitucionais invocados, mas também da qualificação jurídica dadas pelas normas (contas) do POC, que, ao longo deste texto, foram também invocadas.
360. As normas constitucionais violadas da Constituição são as seguintes: 1°., 2°.,
18°. 2, 19°, 4, 27°. 1, 27°. 3, g), 58°. 2, b), 59°. 1, a) e 266°. 2.
361. As normas supra ordinárias violadas, ex. vi art°. 8°. da CRP, são:
- art°s. 4°., 9°. e 23°. da Decl. Un. Dtos. Hom.;
- art°. 8°. do Poc. In. Dtos., Econ., Soc. e Cul.
- art°s. 8°., 9°. e 11°. do Pac. In. Dtos. Civ. e Pol.;
- art°. 5°. da Conv. En., Dtos. Homem., e art°, 1°, do seu Prot. n°.4.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Ouvido sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:-
“A decisão sumária proferida nos autos tem total cobertura legal no preceito do artigo 78°-A da Lei do Tribunal Constitucional.
2° A reclamação apresentada, pese embora a sua extensão, não abala os fundamentos do decidido, designadamente no que se reporta à conformidade constitucional das normas que se referem ao crime de abuso de confiança relativo às contribuições à segurança social.
3° Ao remeter para jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, a que adere, fá-lo ao abrigo da parte final do n°1 da citada norma da Lei do Tribunal Constitucional, não acrescentando o reclamante novos argumentos que ponham em causa o sentido da decisão”.
Por seu lado, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não efectuou qualquer «pronúncia» sobre a reclamação.
Cumpre decidir.
2. Não entrará, o Tribunal, como é por demais evidente, no debate da política legislativa (e dos «fundamentos» que a ela porventura subjazem) que conduziu à criminalização da actividade tal como se desenha nos artigos 24º, números 1 e 4, e 27º-B, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, preceitos esses que foram considerados na decisão em apreço como devendo constituir o objecto do presente recurso, ponto sobre o qual, aliás, a reclamação sub specie não incide. E não entrará, pois que tão só lhe compete aferir se uma tal criminalização se mostra, ou não, compatível com a Lei Fundamental.
Essencialmente, o reclamante esgrime com considerações das quais ressalta que, no seu modo de ver, a falada criminalização enfermará dos seguintes vícios:-
- constitui uma «prisão por dívidas»;
- viola o «princípio da unidade do sistema jurídico»;
- viola o «princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição»;
- viola o «princípio da proporcionalidade», visto ter havido, aqui, um «exagero» do legislador.
2.1. No que tange ao brandido argumento de a criminalização em causa constituir uma «prisão por dívidas», a decisão sob censura esteou-se na jurisprudência já tomada a este respeito pelo Tribunal, e da qual resulta que a consideração efectuada pelo reclamante não tem razão de ser.
Por outro lado, também naquela decisão foi impostada a questão da alegada violação do «princípio da unidade do sistema jurídico», sendo-lhe dada a resposta que da mesma consta e da qual se extrai que não se vislumbra em que é que, mesmo a aceitar-se essa violação, isso poderia contender com normas ou princípios constitucionais, designadamente os preceitos invocados pelo reclamante, que, de todo, não serão convocáveis para fundar, quanto a esta mesma questão, qualquer juízo de enfermidade constitucional.
Pelo que respeita a estas duas questões, o Tribunal entende que não merece censura a decisão em análise, sendo que o argumentário ora deduzido pelo reclamante não infirma os juízos que, nesse particular, ali foram levados a efeito, reafirmando-se, de todo o modo, a jurisprudência já tomada anteriormente por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade e cujas razões que a ela levaram se retomam.
2.2. Resulta da jurisprudência deste Tribunal que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, a quem se haverá que reconhecer uma larga margem de discricionariedade na matéria, só podendo uma tal liberdade de conformação ser limitada em casos que se apresente como manifestamente excessivo entender-se que, como meio de tutela dos bens jurídicos, haveria que perfilhar-se o trilho da criminalização (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números 211/95 e 527/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º volume, 957 a 965 e 32º volume, 17 a 26, respectivamente).
Ora, in casu, não se antevêem razões que, tendo em conta a necessidade de tutela do interesse (que deve ser perspectivado como relevando ao próprio interesse de toda a comunidade) da segurança social em receber as comparticipações devidas, quer pelas entidades patronais, quer pelos beneficiários trabalhadores (cujos salários são pagos por aquelas, neles tendo sido levados a efeitos descontos com vista a serem remetidas à Segurança Social as quantias correspondentes às suas comparticipações, não vindo, porém, a entidade patronal a entregar essas quantias), possam levar a considerar que a criminalização operada pelas normas apreciadas na decisão reclamada se apresente como algo de manifestamente excessivo.
Efectivamente, uma actuação consistente na efectivação dos descontos e na não entrega dos correspondentes quantitativos à Segurança Social (seja essa actuação imputável à empresa, seja aos respectivos responsáveis de gerência - e, note-se, sem o desenvolvimento concreto de acções levadas a cabo por este substracto humano só abstractamente se poderá falar em
«actuação» da empresa) não é, de todo, desprovida de censurabilidade penal ou, se se quiser, de dignidade punitiva criminal.
Neste contexto, não se poderá concluir pela ocorrência de um manifesto «excesso» do legislador ao proceder à incriminação em apreço.
2.3. De outra banda, não se cogita em que é que um denominado «princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição», ainda que se sustentasse que possa ele existir como fundamento directo de um juízo de inconstitucionalidade sobre os preceitos legislativos ordinários, seria violado pela incriminação de que ora se cura.
2.4. Por fim, e independentemente de se entrar na questão de saber se, para efeitos de um recurso do jaez do presente [baseado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82], poderá ser fundamento do mesmo a violação directa de preceitos de direito internacional comum ou pactício, o que
é certo é os invocados pelo reclamante em nada se diferenciam dos princípios ou normas constitucionais que, alegadamente, são por ele também tidos por violados, pelo que a solução conferida à questão de inconstitucionalidade seria também transponível tendo por referente o aduzido direito internacional.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 9 de Julho de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida